Castelobruxo escrita por Vilela


Capítulo 21
Capítulo vinte - Magia atemporal




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            A rua era de pedras sextavadas fixadas muito juntas umas das outras. Havia passeios ao redor dela, mas além deles Alex não conseguia enxergar. Era como se a rua emitisse uma luz apenas para iluminar a si mesma, e qualquer coisa a mais de cinco metros ficava escondida na escuridão. Passaram na frente de fachadas de algumas casas e Alex se perguntou se ainda estavam dentro do castelo. Era verdade que ele não conhecia muitas das peculiaridades de Castelobruxo, mas era difícil de acreditar na existência de uma vila ali embaixo no andar dos porões. Ele não era o único: Mateus e Nicolás também olhavam em volta, atônitos. Mais tarde eles ficariam sabendo que era ali que todos os professores moravam em suas casas independentes.

            No final da rua os professores, que iam na frente, subiram no passeio e abriram um portãozinho baixo, entrando na propriedade. Raira foi a primeira a subir a escada do alpendre e abrir a porta da frente da casa. Com a varinha, ela foi acendo as luzes. Quando Alex entrou na pequena sala, ela já estava bem iluminada: os móveis estavam cobertos por panos claros e não havia enfeites ou porta-retratos por sobre as superfícies. O cheiro era de mofo e poeira; aquela casa com certeza estava fechada há um bom tempo.

            — Não podemos nos esconder aqui — lamentou-se Margarida, olhando em volta.

            — Não devemos esconder! — esbravejou Ruben. — Eu nunca dei as costas para a escola como aconteceu essa noite. O nosso lugar é lá em cima, protegendo os alunos e...

            — Você seria um servo agora, Ruben — disse Raira. Ela tirou um pano que estava cobrindo o sofá de três lugares. Fez um gesto para que os quatro alunos se sentassem espremidos. — Não fale bobagens. Você viu o estado que Leonino ficou, e a rapidez com que ele fora dominado! Teríamos já perdido essa batalha se tivéssemos ficado lá em cima.

            — Eu preferiria! — Ruben estava visivelmente irritado. — A essa altura quantos já não morreram?

            Raira olhou de relance para os quatro sentados no sofá. Ruben fez o mesmo. A partir de então ele abaixou a voz para não os assustar.

            — Se tivéssemos lutado e os impedido de usar as varinhas... — disse Guerda num tom de dúvida.

            — Não teria adiantado — Raira estava firme na sua opinião. — Além disso, muitos dos nossos colegas foram tomados quase que imediatamente. Não havia tempo para resposta a não ser a fuga. Agora, aqui em baixo e em segurança, podemos pensar numa estratégia que funcione.

            — Como? Ainda não temos ideia de quem é o responsável! — Ruben escorou num aparador nu no canto da sala. Guerda pediu licença e foi ao banheiro, enquanto Raira não parava de descobrir os móveis.

            — Descobrir a identidade dele seria o primeiro passo — disse Margarida. — A pergunta mais complicada é o que fazemos com ele depois disso. Devemos considerar matar um aluno?

            Ela perguntou num tom retórico, mas mesmo assim Sofia respondeu:

            — Se for um aluno, ele já morreu faz tempo.

            Os adultos olharam para a peruana. Não fizeram comentário, entretanto.

            — O que você sugere? — perguntou Ruben diretamente para Raira. — Além de nos esconder, é claro.

            — Podemos usar o feitiço do sono máximo. É complicado, mas eu acredito que se vocês três se unirem...

            — Isso não vai adiantar nada — Ruben balançou a cabeça. — Vamos atrasá-lo apenas. Nós precisamos achar um jeito de matar el Tunchi.

            — Uma criatura dessas jamais foi estudada — disse Raira. Ela era a autoridade em magizoologia naquela sala. — Não há uma forma conhecida de matar algo que até o ano passado era lenda para assustar trouxas. Nem maneira de libertar os alunos possuídos, enfermeira Rosita fez de tudo que estava dentro da sua capacidade.

            — Na verdade, tem sim — disse Alex. Eles olharam para os adolescentes novamente. Dessa vez Raira mostrou um pouco mais de interesse.

            — O que você quer dizer?

            — Nós descobrimos uma poção que afasta el Tunchi e que faz alguém acordar do transe — Alex olhou para os amigos buscando apoio. Sofia balançou a cabeça afirmativamente, por isso o garoto continuou: — Eu... eu sonhei com um aluno que tinha inventado uma poção que tem um cheiro que el Tunchi não gosta. A gente passou um pouco e eu acho que é por isso que não fomos dominados quando Amélia assobiou pela primeira vez; a gente estava bem do lado dela.

            — Você disse que “sonhou”? — Ruben parecia não estar acreditando.

            — Sim — Alex não ia acrescentar nada, mas decidiu que não era mais o momento de esconder aquilo dos mais velhos. Talvez eles pudessem ajudá-lo. — Eu venho sonhando com coisas estranhas, como se eu fosse outra pessoa. Um garoto, na verdade, António Regas. Nesses sonhos eu... sei de coisas que não deveria saber, como se eu realmente fosse esse António. Lembro de aulas que nunca tive, de pessoas que nunca vi, como um professor chamado Enrique.

            — Enrique? — Margarida arregalou os olhos.

            — Sim. Mestre em poções.

            — Ele foi meu professor — Margarida olhou para os outros dois adultos. — E provavelmente Vicente também o conheceu.

            — Isso não prova nada. Qualquer um pode conhecer um ex-professor de Castelobruxo — disse Ruben.

            — Deixe-o terminar — pediu a diretora.

            — Eu me lembro principalmente de estar perdido na floresta. Eu não sei direito o que aconteceu com António Regas, mas o que eu entendi é que ele ficou perdido na floresta, foi atacado pelo el Tunchi e passou a ser assombrado por ele. Então ele inventou uma poção que o ajudava a afastar a criatura, mas então o professor Enrique o pegou roubando do estoque da escola e ele ficou proibido de fazer mais. Foi quando ele morreu: pulou de uma das escadarias do castelo.

            Os professores se entreolharam.

            — Você tem certeza disso? — Raira usou um tom sério. — Tem certeza de que você não leu uma notícia antiga, não conhece nenhum dos parentes dele ou tenha ouvido essa história em algum momento na vida?

            — Eu sou um errante, diretora — Alex foi sincero. — Eu me lembraria se tivesse tido contato com qualquer história dos bruxos comuns. Eu não conheço nada que não seja relacionado à minha tradição.

            Os três se entreolharam novamente no mesmo instante em que Guerda retornava do banheiro.

            — Você está pensando na mesma coisa que eu? — Raira perguntou a Ruben. — Isso é uma característica de magia atemporal!

            — Pode ser, como também pode ser coincidência — Ruben olhou diretamente para Alex. — Ou o garoto está mentindo.

            — Eu juro que não — Alex apressou para responder, não entendendo o que a professora quis dizer com magia atemporal. Ele só queria que os amigos tivessem tentado defendê-lo. Ruben parecia ser um bruxo bastante difícil de se lidar.

            — Se for verdade, se ele realmente sonha com o passado...

            — Você vai me desculpar, Raira — Margarida entrou na conversa. — Mas não é o momento para esse tipo de discussão. — Virou-se para Alex. — Vocês ainda têm essa tal poção?

            Eles entregaram os frascos que tinham sobrado para Margarida. Ela cheirou o conteúdo de um e os passou para os outros professores, principalmente Guerda, que era a melhor preparadora de poções ali. Ruben também era bom com poções, mas não dessa ordem. Ele lidava com plantas e bichos que forneciam venenos; um perfume era a última coisa que ele faria num caldeirão borbulhante. No entanto, ele foi enfático na análise:

            — Essa é a pior poção-perfume que já tive o desprazer de cheirar — apesar disso, ele sorriu. — Vocês usaram bluteria?

            — Sim — Sofia respondeu. — Com mirra, fisco e citrus.

            — Pois não deviam — Ruben destampou outro frasco.

            — Realmente não — concordou Guerda. — Se tivessem tido aula comigo iam saber que bluteria é um artigo que deve ser evitado noventa e nove por cento das vezes.

            — A gente só copiou a receita do António — Alex se defendeu.

            — E vocês têm certeza de que funciona? — Ruben era o mais desconfiado deles.

            — Absoluto — disse Nicolás. — Yo estaria controlado se não fosse a poción.

            — Muito bem — Guerda tampou o frasco que tinha em mãos. — Eu posso fazer uma versão melhorada. A base seria uma planta, não é?

            — Copos-de-leite — contou Sofia.

            — Eu tenho uma espécie rara crescendo no meu jardim, apenas algumas casas mais à frente — continuou Guerda. — Você vem comigo, senhorita. E você também Ruben, vamos dar um jeito de maximizar o cheiro da planta sem mascará-lo com outro odor.

            Ruben saiu da casa com passos duros, Guerda e Sofia atrás. Nicolás deu um pulo do sofá na mesma hora, acompanhando-os. Alex não gostou nada daquilo, sentia que devia ter sido ele a ir junto com a garota. Às vezes ele odiava Nicolás por sempre pensar mais rápido do que ele nesses momentos. Na pequena sala, ele, Mateus e as duas mulheres ficaram em silêncio. Margarida por fim pôs-se de pé e disse que daria um jeito de fazer um chá. Raira informou que ainda tinha algumas ervas na cozinha caso ela quisesse usar.

            Então a diretora se levantou e foi até um cômodo lá do fundo, retornando com um quadro pequeno debaixo do braço. Pendurou-o na parede bem em cima do aparador onde Ruben estivera escorado e bateu repetidas vezes na tela, que era apenas um fundo marrom escuro. Pela lateral direita, um bruxo pintado apareceu no quadro usando um cocar de índio tão grande que as penas passavam do limite superior.

            — Mas quem ousa adentrar a antiga casa de nossa excelentíssima diretora?! — gritou o bruxo da pintura. — Ainda mais a essa hora, com todos dormindo! Você que não passa de um ladrão, um safado, ponha-se para fora dessa casa nesse instante ou eu... AH, DIRETORA RAIRA?!

            Ele pareceu sinceramente surpreso e terrivelmente envergonhado. Tirou o cocar da cabeça e segurou-o no peito em sinal de desculpas. Alex viu que seu rosto era moreno e ele tinha linhas pintadas nas bochechas. O índio, entretanto, usava um terno lilás.

            — Sim, meu caro pajé — disse Raira. — Preciso de um favor seu.

            — Sou seu humilde servo — respondeu a pintura.

            — Quero que vá direto ao meu escritório em sua outra moldura e tente ver se Leonino ainda está lá dentro. Também quero que percorra as outras telas que tem acesso dentro do castelo e me conte o que você vê de anormal.

            — Posso perguntar o motivo, inestimável diretora?

            — Estamos sob ataque, pajé. Procure por sobreviventes.

            Ele prontamente colocou o cocar na cabeça e desapareceu pela lateral.

            — Jurandir Melo — Raira explicou. — O quinquagésimo sétimo diretor de Castelobruxo. O melhor, na minha opinião. Que Benedita não nos ouça.

            Margarida retornou com o chá e os quatro foram para a copa tomá-lo. Alex tomou o seu rapidamente, apesar de estar bastante quente. Ele estava ansioso, não gostava nada de ficar ali embaixo enquanto sabia que el Tunchi circulava livremente lá em cima. Ele olhou para Mateus. Havia cinquenta por cento de chance de Amadeus ser el Tunchi, o que significava que em algum momento naquele ano ele tinha morrido. Alex nem imaginou como Mateus estava se sentindo; podia odiar Amadeus, mas ele ainda era seu irmão.

            O silêncio se tornou incômodo. Eles estavam apenas sentados na mesinha evitando se olhar. Alex sentiu uma necessidade urgente de falar alguma coisa.

            — Diretora Raira — ele chamou. Raira, que estivera fitando o teto da copa, baixou os olhos para ele. — O que é magia atemporal?

            — Ah, é bom que tenha perguntado — ela ignorou a cara que Margarida fez, como se tivesse chupado limão. — Magia atemporal é qualquer uma que transcenda o tempo e suas regras.

            — Você quer dizer que quando eu sonho eu viajo para o passado?

            — Não exatamente — ela respondeu. Fazia sentido, porém; havia uma série de formas de voltar ao passado, todos com ajuda de feitiços complicadíssimos. — Para um bruxo atemporal, passado, presente e futuro não existem. Vivem em ciclos e alguns conseguem enganar até mesmo a morte.

            — Um bruxo atemporal não pisa em Castelobruxo há séculos — disse Margarida, como sempre muito ríspida. — Ou em qualquer outro lugar do mundo, para ser exata.

            — Após os acontecimentos desse ano, minha amiga, eu não duvido mais de coisas que não são vistas há anos tornando a aparecer. Exemplo disso é um errante.

            Elas olharam para Alex. Sua mão do anel estava em cima da mesa, a pedra reluzindo levemente. Ele teve a súbita vontade de esconder a mão debaixo da mesa, mas achou que ia ser rude demais da sua parte.

            — Você morou em um acampamento? — perguntou Margarida. — Ou sua tradição é moderna?

            — “Moderna” é uma palavra que não existe na nossa tradição — Alex explicou. — Morei em vários acampamentos, mas nos últimos anos minha família se mudou para casas comuns. — Não mencionou que o motivo era o novo espaço conquistado pelo pai no Parlamento Bruxo. Ele tinha conhecimento o suficiente para poder ensiná-los sobre vários aspectos da sua comunidade, mas tinha outra coisa o intrigando. Não queria perder a chance da conversa. — Mas, diretora, o que ser um bruxo atemporal faria de mim?

            — Tudo — Raira sorriu. — Ou nada, é claro. Poucos são aqueles que conseguem dominar o que os fazem fortes. Nossos dons às vezes têm a tendência a se transformar em nossas piores maldições. Mas é melhor que você esqueça esse assunto por enquanto.

            Eles tornaram a ficar em silêncio, Alex remoendo o que tinha acabado de ouvir. Estava se sentindo estranho, pois era a primeira vez que achou possível se destacar entre os bruxos. Em casa ele não tinha idade o suficiente para fazer magia e na escola ele era como qualquer outro bruxo de quatorze anos. Se possuísse um dom raro, não ia pensar duas vezes antes de abraçá-lo. Ficou perdido nesses pensamentos até que, com um grito altíssimo, o pajé Jurandir chamou a diretora. Ele estava ofegante, apesar de ser uma pintura, e seu cocar estava torto na cabeça.

            — Não acreditarias! — disse ele, quando os quatro entraram na sala. — A Sala d’Ouro revirada, as camas dos pajuantes detonadas, quadros danificados e uma parede foi posta ao chão! Parece que uma guerra aconteceu ou um furacão atingiu essa construção pela primeira vez na história! E os alunos, por Jaci! Estão todos parados, imóveis, como se fossem feitos de pedra!

            — Tem algum morto? — perguntou Margarida.

            — Não. Pelo menos não que eu tenha visto. Mas tem alguns alunos escondidos na estufa interna, minha diretora. Estão aterrorizados, os coitados.

            — Mas estão bem?

            — Sim — ele recolocou o cocar na cabeça. — O petulante do Rodoaldo não me deixou ficar em sua moldura tempo o suficiente para falar com eles, mas pelo que vi, eles estão escondidos e em segurança.

            — Há algum sinal do monstro — Raira quis saber.

            — Não, mas eu não sabia pelo que procurar. Contudo a sua sala, Raira, aquela que já foi minha! Um horror, um crime bárbaro destruir artefatos tão raros, muitos deles que eu mesmo inventei!

            — Não se preocupe. Nós vamos dar um jeito nisso.

            — Eu espero que sim... o estado que ficou a minha moldura de ouro maciço... é de cortar o coração.

            — Obrigada pelos seus serviços — agradeceu Raira quando o pajé desaparecia pelo outro lado da tela.

            — Eu não consigo entender — disse Mateus pela primeira vez desde que entraram naquela casa. — Se ele está tão forte para fazer isso tudo, por que ainda não matou todo mundo? Por que será que ninguém morreu ainda?

            — Eu venho pensando na mesma coisa — Admitiu Raira. — Os planos dele ainda são nebulosos e traiçoeiros, mas eu acho que sei a resposta.

            Alex não chegou a ouvi-la, contudo. Momentos mais tarde Ruben abriu a porta da casa e entrou na sala. Foi encontrá-los na copa, onde colocou em cima da mesa o caldeirão que transportava pela alça de arame. Alex sentiu o cheiro do líquido, muito melhor do que a versão deles. Não era tão forte nem tão doce; parecia inclusive com um perfume de verdade. O garoto ajudou a enfrascar o perfume, tanto nos que eram de Nicolás quanto os que Guerda trouxe de sua própria coleção.

            — Eu e Guerda decidimos subir — disse Ruben quando já estava tudo pronto. — Você vem conosco, Margarida.

            — E qual o plano? — perguntou a professora de feitiços.  

            — Livrar o máximo dos alunos do controle. Dessa forma talvez enfraqueçamos el Tunchi o bastante para afugentá-lo ou matá-lo.

            — Pode funcionar — Raira concordou. — Eu também vou.

            — Não — Margarida ofereceu. — Não mesmo. Você ainda não está totalmente curada de sua viagem, Raira, pode ser terrivelmente perigoso.

            — O que é um veneno mortal perto do que estamos lidando aqui?!

            — Se o problema fosse apenas o veneno — Ruben olhou-a de cima, — você podia ir. Mas sabemos que sua força não está restaurada como antes.

            — Ele tem razão — Guerda complementou. — E, além disso, alguém tem que ficar de olho nos alunos aqui embaixo.

            Raira não disse mais nada, mas deixou que eles partissem. Quando Ruben estava prestes a sair da casa, ele gritou:

            — Daqui a uma hora já deve ser seguro subir. Se não dermos notícia, abandonem o castelo o mais rápido que conseguirem.

            Bateu a porta. Alex imaginou os três professores munidos da poção passando pela fenda na parede com a cena esculpida. Eles subiriam as escadas e então dariam de cara com os alunos possuídos. Dali para frente, entretanto, Alex só esperava que eles conseguissem terminar a missão vivos.


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