Castelobruxo escrita por Vilela


Capítulo 2
Capítulo um - A noite do chamado




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Com as caixas todas espalhadas pelo quarto, Alexandre se viu mais uma vez no meio daquela bagunça que era uma mudança. Era a quinta vez que sua família precisava mudar para outra casa, agora no centro-sul de Belo Horizonte, por causa do trabalho do seu pai; contudo, era a primeira vez que fizeram isso do jeito dos trouxas. Ele viu quatro deles colocarem todos os pertences da casa em caixas, e então transportá-las para um caminhão fechado; depois os móveis. Demorou a manhã inteira para que conseguissem carregar tudo, pois alguns objetos mágicos apresentaram resistência, como um arranjo de flor que não desgrudou da mesa. Mais um dia de viagem até BH e enfim estava tudo descarregado. Alex perguntara a seu pai Maciel os motivos de não usar magia.

            — Não podemos chamar atenção. É a primeira vez que vamos morar num bairro completamente trouxa — o pai respondera.

            Usaram magia para embalar suas roupas, pelo menos. Alex não sabia como seria se tivesse que dobrar todas as roupas manualmente. Quando chegaram na casa nova ele não pôde deixar de se sentir triste. Viu que alguns vizinhos vieram à porta saber da mudança, curiosos, ele não gostava nada de estar cercado por trouxas. Agora teria de se vigiar vinte e quatro horas por dia para que não fosse pego fazendo nada muito estranho. Tudo seria resolvido se pudessem enfeitiçar a casa, o que Heloísa, sua mãe, era completamente contra.

            — Não vamos morar nessa casa para sempre — dizia ela. — E feitiços ficam para trás... imagina que suplício seria para os trouxas?

            Alex encontrara um quarto no andar superior, o menor e o único que tinha as janelas voltadas para o quintal do fundo. Ali pelo menos ele não teria de se preocupar com os olhares dos moradores dos prédios do lado esquerdo e direito. As caixas com seu nome foram colocadas nesse quarto e ele ficou surpreso com a eficiências dos trouxas, apesar da demora. Assim que eles foram embora, Alex se trancou no quarto. Tirou o anel do bolso e o colocou no dedo indicador direito. A pedra vermelha brilhou por um segundo antes do aro de ouro se ajustar no seu dedo magicamente.

            Tirou uma mecha do cabelo preto cacheado que incomodava os olhos e levantou a mão direita espalmada em direção das caixas.

            — Moveante.

            As tampas de papelão de abriram e de lá flutuaram suas coisas. Os livros saíram da maior caixa e foram se acomodar na pequena estante à direita, enquanto que suas miniaturas dos jogadores da seleção brasileira de Quadribol foram voando em suas vassouras para a prateleira por sobre a cama. Tudo começou a se organizar da forma como era antes no seu outro quarto, mas em dado momento descobriram que isso seria impossível. Aquele quarto era muito menor e as superfícies, escassas. As roupas começaram a brigar por espaço dentro do guarda-roupa e Alex teve de impedir que uma calça arrancasse todos os botões da sua camisa favorita numa briga. Esse não foi o único conflito. Os sapatos pareciam preferir se atirar pela janela do que ficar amontoados no pequeno espaço do armário. Alex teve que separar outros tantos objetos, organizando-os manualmente.

            Quando terminou, nem parecia que tinha usado um feitiço tamanho o cansaço que sentia. A saudade da casa em Milagos, o povoado bruxo no interior de Minas em que nascera, era constante e parecia que jamais passaria. Deitou na cama e fechou os olhos. Tentou se concentrar na única coisa que importava naquele momento: a noite do chamado.

            Já era tempo. Esperara aquela noite desde que entendera que era um bruxo e o que isso significava. Depois que fizera quatorze anos, no entanto, a espera se tornou ainda mais angustiante. Ele sabia que um noiteado, o pássaro do chamado, irromperia pela sua porta na primeira noite do verão para fazer oficial a sua entrada na Escola de Magia de Castelobruxo. O pássaro faria o convite e ele deveria aceitar, curvando e piscando o olho direito. Era o que ele mais queria. Seu pai, por outro lado, pensava de outra forma. A noite do chamado sequer fora discutida por eles, uma vez que estudar em Castelobruxo estava fora de cogitação.

            — Não vou ter meu único filho internado numa escola que só estuda planta e bicho! — disse ele, na única vez em que Alex deixara soltar que queria estudar herbologia. — Usando varinhas e recitando feitiços estranhos.

            O fato era que a família de Alex era de uma tradição bruxa completamente diferente da maioria brasileira. Denominados bruxos errantes, eram nômades que usavam anéis com pedras mágicas para canalizar sua magia. O pai era ainda o porta-voz dessa comunidade, o que o fazia o centro das atenções sempre. Era praticamente inaceitável que alguém da família Maciel pudesse fazer qualquer feitiço que não com as mãos. Não que Alex não gostasse da sua tradição, mas o amor às plantas surgira desde que era pequeno.

            Ainda se recordara do dia em que sua mãe trouxera para casa uma planta carnívora. Tinha apenas cinco anos, mas ele passara horas observando a planta abrir as pétalas gentilmente, com seus minúsculos e afiados dentes, quando ele ia alimentá-la com baratas mortas. Ele ainda a teria, não fosse o fato deles terem de se livrar da maior parte das coisas mágicas na primeira vez que se mudaram para uma cidade trouxa. Era perigoso demais, dizia sua mãe. Não fosse o emprego do seu pai como diplomata entre o mundo trouxa e bruxo para o Parlamento, talvez eles pudessem ter uma vida de bruxos normais e Castelobruxo não fosse uma ideia tão díspar quanto era agora.

            Sua única esperança era aquela noite do dia 21 de dezembro. Sentiu um frio na barriga quando se lembrou de que provavelmente dentro de algumas horas ele seria enfim aceito em Castelo Bruxo. Já era fim de tarde quando Heloísa bateu na porta.

            — Já terminou de ajeitar as coisas? — ela perguntou. — Ótimo, vem me ajudar a preparar o jantar.

            Alex não se sentiu surpreso ao descer as escadas e perceber que a casa já estava completamente arrumada, e até com algumas paredes recém-pintadas. Mas, ao contrário do que se podia imaginar, a mãe não usava magia para cozinhar. Tampouco permitia que alguém o fizesse. Então seria ótimo se ela soubesse cozinhar, mas não era o caso. Normalmente ela se aventurava em receitas novas todas as vezes e sempre que podia Alex tentava ajudá-la para que os pratos não saíssem ruins demais. Naquela noite ela tinha prendido o cabelo preto como o do filho num coque, colocado os óculos de leitura e ficara pelo menos quinze minutos lendo a receita de guisado antes de começar a cozinhar. Alex a observava atento.

            — Bom, primeiro temos que cortar os legumes.

            Os três anéis em seus dedos brilharam, mas ela os ignorou e pegou uma faca. Começou a mutilar as cenouras, cortando em rodelas muito finas.

            — Não seria melhor lavar antes? — Alex perguntou.

            — Talvez.

            Ela jogou tudo o que picou e o que não tinha picado ainda na pia e abriu a torneira. Deixou que a água escorresse nos legumes enquanto ia até a geladeira. Abriu-a e pegou um pacote de carne. Não fazia ideia do que fazer com ele, por isso o colocou no balcão e pegou novamente a receita. Alex se adiantou e acendeu o fogão, pegou uma panela cheia d’água e colocou todos os legumes nela, do jeito que os achou na pia.

            — Nós não temos a maioria dos ingredientes, provavelmente nosso jantar não vai ser melhor do que as almôndegas do mês passado.

            Alex estremeceu. Fora a pior comida que comera na vida, e a única que sua mãe aceitara em transfigurar para algo mais gostoso.

            — Por que hoje está tão quente? — perguntou a mulher, limpando a testa suada com as costas da mão.

            — É o primeiro dia do verão.

            Alex percebeu o que falara tarde demais. Sua mãe levantou os olhos da receita para encará-lo. Crispou os lábios, depois disse:

            — A noite do chamado.

            O garoto não respondeu. Esperou que ela dissesse mais alguma coisa, mas ela voltou a ler a receita. Ele, contudo, não podia deixar que uma oportunidade dessa passasse.

            — Eu quero ir.

            — Onde?

            — Para Castelobruxo.

            Ela soltou uma risada sincera, como se ele tivesse contado uma piada. Depois percebeu que o filho estava cabisbaixo, e então acrescentou: — De verdade?

            — Sim, mãe. Tem sido meu sonho desde... desde que eu me entendo por bruxo. Não tem lugar onde eu possa aprender magia que...

            — Não fale bobagem, seu pai vem lhe ensinando magia desde seu aniversário. Até mesmo te deu um dos seus anéis!

            — Não é a mesma coisa, mãe.

            — Eu não entendo suas motivações... — a água com os legumes começara a ferver no fogão. — Eu pensei que você quisesse ser um diplomata, ter um espaço na comunidade errante e seguir os passos do seu pai.

            — Mas eu quero! — Não era inteiramente uma mentira. Alex usou uma colher de pau para mexer os legumes, sabendo que não fora o fogo que fizera aquela água esquentar tão rapidamente. — Mas quero também estudar plantas. É disso que gosto.

            Heloísa ficou em silêncio. Ele sabia o que isso significava, ela também, mas mesmo assim ela disse: — No momento em que você usar uma varinha você será completamente excluído da nossa tradição.

            — Talvez essa não seja minha tradição...

            — Como?!

            — Você mesma me disse que meu avô usava uma varinha, talvez eu tenha saído a ele. — Ela também dissera que o avô dele largara a varinha para se tornar um errante, mas isso ele omitiu. A água fervente respingou no fogão. A voz de Alex tornar-se um pouco sobressaltada, e ele teve de se controlar quando voltou a falar: — Herbologia é o que eu quero fazer.

            Ela não respondeu. Continuaram cozinhando até eles perceberem que a comida não estava saindo como o planejado. A mãe acabou servindo naquela noite legumes cozidos e a carne frita no óleo. Sentaram-se os três na mesa e começaram a comer.

            Alex escutou com atenção o pai contar como os trouxas daquele bairro eram legais, apesar de um pouco intrometidos. Ele disse que em uma simples ida ao portão da casa ele fizera amizade com uma senhora viúva que morava em frente e ela não parava de perguntar de onde eles tinham vindo. Gargalhou quando disse também que numa padaria ali perto ele do nada se vira conversando com outro cliente, como se conhecessem há décadas.

            — Não é incrível?! — ele perguntou.

            Alex não conseguiu relaxar nem por um instante. Ficou tremendo a perna debaixo da mesa e a comida de sua mãe parecia não ter gosto algum. Ele sabia que em algum momento naquela noite o noiteado chegaria, isso se ele fosse um bruxo de verdade. Começou a ter dúvidas disso, pois o jantar terminou e o pássaro ainda não tinha chegado. Se perguntou se havia alguma possibilidade do noiteado ir parar na sua antiga casa, já que se mudaram naquele dia, mas era impossível. Nenhum chamado deixava de ser feito, todos escutavam as palavras do diretor quando chegava a hora. Normalmente, as famílias bruxas que têm filhos que acabaram de fazer quatorze anos se reuniam nos jardins para esperar o pássaro. O costume de responder com uma reverência e a piscada de olho se tornara tão comum que era a única forma de confirmar a presença do novo aluno no ano seguinte.

            Seus pais foram para a sala tomar café e jogar conversa fora. Alex quis subir para seu quarto, talvez lá ele pudesse confirmar sua presença sem que seus pais soubessem. Uma vez matriculado, seria muito mais fácil explicar para ele eles o que queria fazer. Sua mãe, no entanto, não deixou ele subir. Talvez porque sabia da vinda do pássaro, ou porque queria mesmo a sua companhia. Alex se sentou numa poltrona, ainda duvidoso a respeito do chamado. Foi quando aconteceu.

            As luzes da casa nova se apagaram completamente e ouviu-se um estouro do fusível queimando. O pai dera um salto do sofá, a mão com seus múltiplos anéis erguida.

            — O que foi isso? — ele perguntou. Tentou acender as luzes estalando os dedos, mas não funcionou.

            — Ele está aqui — respondeu a mãe.

            A janela da sala escancarou-se por completo e no parapeito estreito pousou um pássaro. Tão pequeno quanto um beija-flor, ele poderia ter passado despercebido no escuro, não fosse as luzes que emanava. Suas penas eram coloridas e ele brilhava como se fosse feito de vidro e refletisse luz. Virou a cabecinha e as luzes dançaram no teto e nas paredes. Era mais bonito do que Alex jamais imaginara que fosse. Seu pai estava boquiaberto, ele se esquecera completamente de que seu filho também fazia parte da comunidade bruxa brasileira e, portanto, receberia o chamado.

            — Ele vai ser chamado... — disse, atônito.

            Alex se levantou e encarou o pássaro. Mesmo sem ter ouvido o que ele tinha a dizer, ia curvar-se e piscar antes que seu pai pudesse fazer alguma coisa.

            — Afaste-se, Alexandre! — gritou Maciel. Ele parecia ter recuperado a lógica, enfim. Apontou um dedo para o pássaro houve um estampido, seguido de uma fumaça roxa.

            Todos os bruxos errantes matavam os noiteados que ousassem entrar em suas casas, mesmo assim a escola jamais deixara de enviar os pássaros. O noiteado, no entanto, voara antes que o feitiço o atingisse. Pousou no alto de uma cristaleira; de lá começou o seu discurso, na bela e melódica voz da atual diretora:

            — Senhor Alexandre Constantino Maciel, é mais do que uma honra informar que você é um dos incríveis bruxos que teve a sorte de ser selecionado para estudar no Castelobruxo...

            Outro estampido e o barulho de louça e vidro se quebrando. O pássaro voou, não deixando de reproduzir o chamado. Alex o seguiu para a copa e seus pais foram atrás.

            — ... onde a magia e a feitiçaria são ensinadas há quase um milênio.

            Mais um feitiço e parte duma estante virou pó. A fumaça roxa enchia a casa e tornou-se até difícil respirar.

            — Eles só podem ter deixado esses pássaros mais rápidos, meu pai matou o meu e dos meus irmãos com uma tentativa! — O pai berrava.

            — Espere! — pediu Alex.

            Ele tinha entrado na cozinha e o noiteado estava no chão. Ainda brilhava, mas parecia machucado. Alex ajoelhou ao seu lado e ouviu o resto do discurso, que agora saía em uma vozinha baixa e triste:

            — ...esperamos... no dia 15 de fevereiro... por você...

            Num segundo as luzes se acenderam e o noiteado já não estava mais lá. Alex arregalou os olhos.

            — Eu não respondi... eu não respondi...

            Virou-se para os pais.

            — Eu não vou estudar no Castelobruxo... — parecia surreal. De alguma forma ele sempre soubera que aquilo era possível, perder sua única chance. Mas quando acontecera de verdade, foi pior do que ele podia imaginar.

            Correu para fora da cozinha ignorando os pais e se trancou no quarto. Depois de baterem algumas vezes na porta, eles desistiram de tentar falar com Alex. Ele deitou na cama sentindo um peso nas costas fora do comum. Permitiu que seus olhos se fechassem antes que pudesse chorar e dormiu. Teve sonhos estranhos com folhas caindo do alto e uma voz que insistia em gritar por ajuda.

            O dia seguinte amanhecera extremamente quente e abafado. Alex acordou antes do nascer do sol e foi tomar banho. Ouviu o pai saindo para o trabalho e a mãe começando a bater as vasilhas na cozinha, provavelmente tentando cozinhar alguma coisa. Sentiu-se exausto e sem vontade alguma de fazer qualquer coisa. Mas não podia ficar no quarto por muito tempo. Acabou descendo para comer alguma coisa, mas não achou Heloísa. Passou pela sala já arrumada, apesar da estante da copa ainda estar carbonizada e faltando um pedaço, e saiu pela porta da frente. Sua mãe estava em pé perto do portão, tentando prender alguma coisa na grade.

            — Bom dia — ela disse, sem se virar para ele.

            — Bom dia.

            Ele se aproximou para ver o que ela fazia. Em uma das barras Heloísa tinha amarrado uma série de palhas claras ao redor da fechadura.

            — Não me olhe assim, eu sei o que eu disse sobre proteger a casa com feitiços.

            — Eu não disse nada — disse Alex

            — Isso é para que ladrões trouxas não consigam entrar aqui. É mais para a própria segurança deles... — Seu anel de pedra verde brilhou e a palha desapareceu, tornando-se invisível. Depois olhou para o filho: — Você está bem?

            — Não muito.

            — Entendo. — A mãe limpou as mãos na roupa. — Eu conversei com seu pai. Ele não sabia como você se sentia a respeito de estudar herbologia.

            — Ninguém nunca sabe como me sinto.

            — É por isso que você deve começar a falar mais. — Fez uma pausa. — Ele concordou.

            Alex piscou, confuso.

            — O quê?

            — Ele concordou em mandar você para Castelobruxo.

            Demorou segundos inteiros para Alex entender o que ela dissera; quando enfim a ficha caiu, ele a abraçou. Não podia imaginar que fosse ouvir aquelas palavras, muito menos depois do que acontecera na noite anterior. A mãe sorriu, contente com a felicidade dele.

            — Mas meu pai sabe quais são as consequências, ele sabe que não serei um errante mais...

            — Ele sabe, e é por isso que ele disse que há uma condição.

            — Diga — Alex insistiu.

            — Você não deve jamais abandonar suas raízes. Ele está nesse momento reunido com o Conselho para discutir sua educação mágica... Você vai aprender feitiços usando uma varinha, é inevitável, mas seu anel permanece onde está.

            — Isso não será problema — e a abraçou novamente.

            — E mais uma coisa: é bom que você se torne o maior herbologista que esse mundo mágico já viu.


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Notas finais do capítulo

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