Castelobruxo escrita por Vilela


Capítulo 18
Capítulo dezessete - Em guerra




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            Alex não sentia fome. Olhou para o pão e a geleia no prato e sentiu vontade de poder voltar para a cama. Queria cobrir-se até a cabeça e dormir o dia inteiro. Mateus também não estava com uma cara muito animada, apesar de estar comendo tudo o que tinha na mesa. Nicolás era o único dos três que estava se sentindo bem, pois ele não estivera na biblioteca quando Amélia desaparecera, nem estava preocupado com as consequências daquilo. Desde a noite anterior, Ronan simplesmente se trancara em seu quarto no dormitório dos pajuantes e se recusava a sair de lá. Alex sabia que não demoraria muito para que Amélia fosse dada como desaparecida, e isso ia ser complicado de explicar. Principalmente para o professor Ruben.

            Eles ainda podiam sentir o arrepio de quando ouviram a voz, o medo que o assobio da garota trouxera à tona. Nem mesmo Amadeus estava brincando com aquilo. Alex o viu se dirigir para seus afazeres com uma expressão séria, quase melancólica. Viu também João no refeitório, mas esse não quis trocar uma palavra. Não ficou surpreso, entretanto. Ele era apenas um aluno de intercâmbio.

            Sofia era a única que soube agir imediatamente após o que tinha acontecido. Ela fez anotações no seu caderno ainda dentro da biblioteca, escrevendo os nomes deles e as descrições dos assobios. Alex estava começando a achar que aquela investigação toda estava indo longe demais; ele sentia pena de Ronan, ele estava certo em não querer expor sua namorada àquilo. Ela não apareceu nos dias que seguiram, nem no final do mês. Finalmente Amélia foi dada como desaparecida, o boato circulou na escola e Ruben tratou de avisar os pais da garota. De algum modo, a fofoca tomou outras proporções e ela ficou conhecida como o próprio Tunchi.

            — Você não acha que é ela, acha? — Perguntou Mateus a Alex. Eles estavam em um dos terraços, o sol se pondo atrás das árvores.

            — Não. Quer dizer, não sei. Ela conversou com ele...

            — O que quer dizer que ele estava lá. Que era um de nós.

            — Sim — respondeu Alex. Ele se lembrava de ter tido consciência durante o processo, o que o deixava um pouco mais aliviado em relação a si mesmo. — Mas não diz isso perto da Sofia, ou ela vai ficar ainda mais chata.

            Alex, Mateus e Nicolás passaram a evitar a peruana o máximo que conseguiam. Quando o recesso acabara e as aulas finalmente voltaram, eles mal conversavam com ela em poções, e eram raras as vezes que Alex tinha algo a dizer para ela nas outras aulas. No entanto, ela não parara suas investigações nem por um instante. Estava sempre com a lenda e seu caderno debaixo do braço.

            Numa manhã ensolarada, Raira retornou ao castelo. Sem aviso, ela irrompeu pela porta norte e passou pelos alunos que estavam no jardim principal sem dizer uma única palavra, indo direto para o seu gabinete. Assim que ficou sabendo disso, Sofia bateu na porta do dormitório dos veracostas à procura dos garotos.

            — Eu não vou lá — disse Mateus. Ele nem desviou a atenção das cartas que estavam na sua mão. Eles passaram o fim da tarde inteiro jogando rouba-dragão. As pequenas imagens dos repteis respiravam fogo, e a fumaça subiam até o teto do quarto.

            — Nem yo — disse Nicolás, também imerso no jogo. — No quero desaparecer tambien.

            Alex não viu solução senão ir lá. Pousou suas cartas na cama, o que mais tarde ia descobrir que fez um rombo preto nos seus lençóis, e saiu do quarto. A garota estava parada no corredor com cara de poucos amigos. Ela com certeza sabia que eles estavam evitando ter contato com ela.

            — A diretora voltou — disse ela. — Temos que contar para ela!

            Aquilo realmente era importante. Eles estiveram esperando o retorno da diretora há semanas, e mesmo que estivessem sem se falar naquele período, ainda parecia sensato contar para a diretora os últimos acontecimentos.

            — Um minuto — disse Alex, fechando a porta. Subiu as escadas saltando degraus e entrou no quarto. Contou para os amigos o que a garota acabara de dizer, pediu opinião.

            — A gente tem que ir — disse Mateus, desviando da fumaça quente que uma de suas cartas soprou em seu rosto.

            — Também acho que sim — Alex concordou.

            Nicolás não estava tão certo, por isso ele ficou no dormitório e apenas Alex e Mateus acompanharam a pajuante até o gabinete da diretora. Raira tinha acabado de chegar, por isso Mateus achava que ela provavelmente não os atenderia. Porém, Sofia insistia que aquele assunto já esperara tempo demais. Não podiam deixar de falar daquilo com um adulto por mais tempo. Bateram na mesma porta de semanas atrás, dessa vez obtendo resposta imediata.

            Professora Margarida abriu a porta e encarou os três ali, muitos centímetros mais baixos que ela. Franziu o cenho e disse:

            — Não é um bom momento.

            Estava prestes a bater a porta na cara deles quando Sofia implorou:

            — É importante! A gente precisa falar com a diretora!

            Margarida fez sua cara ríspida de sempre, pronta para enxotá-los, quando a voz de Raira se fez ouvir lá de dentro:

            — Deixe-os entrar.

            Contrafeita, Margarida abriu a porta e deixou os três entrarem no seu gabinete. Era a primeira vez que eles viam o interior daquela sala, e com certeza ficaram deslumbrados. A pequena porta simples no corredor não dava prévia do que se encontrava ali dentro. Aquele recinto com certeza era o mais luxuoso de todo o castelo, com objetos, paredes, cortinas e moveis dourados. Era maior do que parecia à primeira vista, com duas escadas gêmeas subindo nas paredes laterais para um pavimento superior. Lá em cima podia-se ver imensas estantes de madeira, as capas dos livros também douradas. Ali era conhecido como a Sala d’Ouro, e somente o diretor eleito tinha o poder de permitir a entrada de alguém. Caso contrário, a pessoa abriria a porta apenas para ver uma sala de aula comum ou um corredor simples que dava em outro qualquer.

            Mas a sala suntuosa se tornou extremamente mais intimidante quando eles perceberam a presença dos melhores professores lá. Ruben estava em pé ao lado da mesa, Leonino sentado num sofá ao canto, Margarida à porta, Mervir de pernas cruzadas jogado à uma poltrona e Guerda, uma das professoras de herbologia, em pé no meio da sala. Raira estava escorada na mesa, uma capa de chuva de plástico por sobre os ombros com o capuz abaixado. Ela não parecia tão elegante como de costume. Era como se tivesse acabado de sair de uma tempestade, a julgar pelo seu cabelo desarrumado e molhado.

            — O que vocês querem? — ela perguntou.

            — Senhora diretora — começou Sofia. — Temos uma coisa importante para contar.

            — O que é tão importante que não pode esperar uma reunião de professores acabar? — Perguntou Ruben.

            — É sobre os ataques.

            Eles ficaram em silêncio, ninguém ousando mexer-se mais do que necessário. Sofia tirou da mochila o livro e levou-o até a diretora. Raira pegou-o nas mãos e abriu nas primeiras páginas, virando as folhas curiosamente. Ruben espichou os olhos para ver o que era aquilo, e provavelmente os outros professores quiseram fazer o mesmo. Leonino olhava para Alex do sofá com uma cara engraçada, quase como se estivesse achando graça daquilo tudo.

            — El Tunchi — sussurrou a professora.

            — Sim, esse é outro assunto que necessita discussão — Ruben apressou a dizer. — Os alunos vêm insistindo nesse assunto, um boato perigoso que só tem trazido a ignorância.

            Alex então supôs que eles estivessem ali para atualizar a diretora do que acontecera na escola durante a sua ausência.

            — Entendo — ela disse. — Mas não estamos falando de uma lenda.

            Sofia engoliu em seco.

            — Você não quer dizer que...

            — El Tunchi é real? — Raira interrompeu Margarida. — Sim. Tanto quanto nós nessa sala.

            — Raira, isso...

            — E isso não passou despercebido aos olhos dessas crianças, Ruben. Enquanto estive ausente, percorrendo o mundo bruxo atrás de soluções para problemas bem maiores do que os que tínhamos ao partir, descobri coisas terríveis. Segredos da floresta que muitos de vocês que entram nela jamais suspeitara. El Tunchi, ou O Comedor de Almas, é uma criatura maligna, perversa, que gosta de jogos mentais. Temo que estejamos de fato lidando com um nesse exato momento.

            — Nós tentamos avisar — disse Mateus. Ele queria dar um olhar duro para Mervir, Margarida e Leonino, pois eles mesmos deram as costas para Mateus quando ele contara sobre el Tunchi. No entanto, ele continuou olhando para a diretora.

            — E fizeram muito bem — ela devolveu o livro para Sofia. — Agora nós temos de cuidar desse assunto.

            — Não é só isso — Sofia insistiu. E então ela contou tudo, começando com os sonhos de Alex, que levaram à lenda, passando pelos assobios, os ataques e por fim terminando naquela noite terrível na biblioteca. Os professores fizeram caras assustadas enquanto ela contava. Nenhum deles suspeitara de que coisas como aquelas estavam acontecendo bem debaixo de seus narizes. Ruben mesmo não tinha mais lábios de tanto que ele os crispara.           

            — Era o que eu temia... — Raira olhava para o teto dourado. — Ele está mais forte do que eu imaginava. Não é a primeira vez que isso acontece. Há anos isso vem perturbando os diretores, alunos se perdendo na floresta, relatos de assobios estranhos e possessões momentâneas. Lembro quando era apenas uma aluna, quando el Tunchi se tornou boato pela primeira vez. Um colega acabou morto miseravelmente e a criatura se deu por satisfeita. O que está acontecendo agora, no entanto, está mais velado e misterioso do antes.

            — A gente acha que ele está no castelo — disse Alex, percebendo que Sofia não se lembrava de ter falado dessa parte.

            — Isso é tudo? Eu quero pedir que vocês parem imediatamente com todo o tipo de investigação sobre o assunto.

            — Mas...

            — Imediatamente. Isso não é algo que alguém com suas habilidades mágicas possam lidar. Agora, por favor, nós temos que terminar essa reunião. Obrigada por nós avisar.

            Alex, Mateus e Sofia saíram do gabinete se sentindo derrotados. Ao mesmo tempo em que estavam felizes porque finalmente alguém acreditara neles, era como se todo o esforço que fizeram tivesse ido por água abaixo. Os adultos assumiriam o caso e nada restava a eles senão sentar e esperar pelo fim daquilo tudo. Antes que terminasse, porém, quem mais poderia ser atacado ou sumir?

            Sofia não disse adeus. Quando chegou no corredor que levava à área dos pajuantes no castelo, ela virou a esquina e desapareceu. Alex não gostava disso, mas era melhor desse jeito. Não voltaram a falar no assunto, e até o dia seguinte, tudo parecia estar bem.

            Foram para a aula conjunta de transfiguração na manhã de sexta. A tarefa do dia era transformar um lápis em caneta, depois em lápis novamente com a cor trocada. Era mais difícil do que parecia, pois os detalhes do lápis contavam muitos pontos, e uma vez que tinham transformado o lápis em caneta, era quase impossível lembrar de todas as minúcias. Alex não conseguia fazer seu lápis exibir as ranhuras retas, o que estava estressando-o muito. Mas eram os burburinhos que de fato tiraram ele do sério. De uma hora para outra, Tuany veio até a mesa onde ele, Mateus e Nicolás estavam praticando.

            — Mervir é o Tunchi — disse ela. Colocou o seu lápis na mesa e apontou a varinha, transformando-o em um lápis muito maior do que o anterior.

            — O quê? — Mateus respondeu, num tom incrédulo. — De onde você tirou isso?

            — É o que todo mundo tá falando. Parece que alguém foi na biblioteca e descobriu que ele está ocultando informações. Hoje eu vou pressioná-lo.

            Os garotos não responderam. Do outro lado da sala os pajuantes também comentavam a mesma coisa, aos cochichos. Professor Vicente não escutava nada disso, o que era ótimo. Ele de vez em quando se aproximava das mesas para auxiliar os alunos, trocando seus nomes e às vezes os errando por completo. Quando a aula terminou, eles foram direto para o andar inferior, onde a aula de Mervir acontecia.

            Os garotos de veracosta estraram na sala de aula para a costumeira aula de tradições, tomaram seus assentos e esperaram o professor chegar. Mervir demorou mais do que o habitual, e a conversa ia de mal a pior. Alex escutou alguém dizendo lá atrás que eles deveriam estar preparados para qualquer coisa, pois provavelmente Mervir ia se revelar como o Tunchi. Quando ele entrou, no entanto, Alex não achava que aquilo ia resultar no que aconteceu a seguir: Tuany levantou a mão antes que ele pudesse dizer qual era o tópico do dia, dizendo:

            — Nós queremos saber sobre o Tunchi. Já tá mais do que na hora de sabermos a verdade sobre ele.

            — Me desculpe, Tuany, mas um Tunchi não é tema do primeiro ano nem uma personagem histórica...

            — Mas faz parte da nossa tradição — disse um garoto do fundo da sala. — Eu também quero saber sobre a lenda!

            — Naturalmente, mas tudo o que eu sei eu já respondi anteriormente em aula...

            — Mentira! — Tuany insistiu. — A gente sabe que você está escondendo alguma coisa. O único livro sobre o assunto está emprestado e a bibliotecária diz que a única pessoa que pode ficar tanto tempo com um livro é um professor. A gente sabe que é você.

            Alex olhou para Sofia sentada muitas mesas à frente, mas a pajuante não moveu um músculo. Mateus cutucou Alex nas costelas e os dois se entreolharam. Eles sabiam o motivo do livro ainda estar emprestado: Sofia, quando findava os quinze dias do empréstimo, levava o livro de bom grado para a biblioteca e tornava a pegá-lo emprestado; João não era um aluno matriculado de Castelobruxo, por ser de Beauxbatons, então nenhum nome era registrado magicamente na lista. Dessa forma, não havia rastros do paradeiro daquele exemplar sem título.

            Mervir não soube o que dizer, ele era facilmente intimidado pelos alunos. Às vezes gaguejava, outras tinha que pensar por longos momentos antes de finalmente dar a resposta. Apesar de ser conhecido como um grande historiador mágico, ele se mostrava fraco sempre que aquilo acontecia. Sua aula não fora a primeira a sair fora dos trilhos por causa dos boatos, mas sem dúvidas foi a primeira a chegar tão longe no descontrole. Antes que outra pessoa pudesse dizer qualquer outra coisa, alguém gritou um feitiço no fundo da sala.

            O lampejo passou zunindo entre Alex e Mateus e acertou o professor Mervir em cheio no rosto. Ele deu uma pirueta para trás e bateu com as costas no quadro negro. A lousa se tornou mole como gelatina e engoliu as mãos e pés de Mervir, depois se tornou dura novamente, o que imobilizou o homem por completo. Seu rosto tinha afundado o suficiente para sua boca também ser tampada, uma palavra escrita em giz bem embaixo do seu nariz: “mas”. Alguns alunos se levantaram das cadeiras, outros abaixaram para o chão, mas só Mateus se pronunciou contra ao que tinha acabado de acontecer.

            — Quem fez isso? — ele também sacara sua varinha. Olhou para o fundo a sala e ninguém disse quem era o autor da maldição da presilha.

            Todos estavam surpresos e calados. Mervir não esboçara uma única emoção sequer, a não ser completo espanto transparecendo nos olhos castanhos. Estava completamente incapaz de responder ou fugir do aperto. Quando enfim começaram a falar, Alex ficou surpreso com a frieza.

            — Ele com certeza é o Tunchi — disse Tuany. — Não há dúvidas.

            — Concordo — uma garota pajuante disse, os olhos arregalados para Mateus.

            — Vocês estão doidos? Ele é nosso professor!

            — Você viu como ele ficou sem resposta — Tuany insistiu. — Com certeza está escondendo alguma coisa.

            Alex não esperou para ouvir o resto da conversa. Saiu pela porta da sala e foi buscar alguém que pudesse ajudar. Encontrou uma professora que dava aula de botânica encantada numa sala ao lado, e a pequena bruxa entrou na sala estupefata. Tirou a varinha do bolso e metade da parede rachou, virando poeira. Mervir caiu de cara no chão, em estado de choque. Ele foi levado para a enfermaria imediatamente, e a aula foi suspensa.

            — Mas que merda foi aquela?! — disse Mateus, realmente nervoso. — Cara, essas coisas só pioram a nossa situação.

            — Certeza de que a diretora vai fazer alguna cosa — disse Nicolás. Eles pegaram um corredor que levava direito ao refeitório, entrando pela parte de trás.

            — Coitado do Mervir — foi tudo o que Alex conseguiu dizer.

            Após as aulas daquela tarde, a consequência veio após o sinal de aviso do castelo. Todos os alunos se reuniram no jardim principal, onde Raira exibia uma cara de cansaço e preocupação. Ninguém conversava quando ela começou a falar.

            — Os avisos de hoje não são nada bons — ela começou. — Nessa manhã um dos nossos queridos professores foi atacado durante a aula por um aluno. Ele se encontra em seus aposentos agora, e a todos vocês que têm aula de tradições mágicas, os encontros estão suspensos até segunda ordem. Nunca em toda a minha história nessa escola eu vi coisa semelhante acontecer, nem de brincadeira. Por essa e outras razões, a regra do vigia está terminantemente extinguida.

            “Em trezentos anos, um diretor jamais fez um acordo tão interessante com as caiporas quanto o que eu fiz. Todos sabem que morar no castelo que elas mesmas construíram é seu maior sonho. Contudo, voltei quando descobri que elas partiram sem dizer o porquê. O que enfrentamos hoje pode ser mais sério do que vocês estejam achando.”

            Alex engoliu em seco.           

            — Presumo que estejamos em guerra.


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