Castelobruxo escrita por Vilela


Capítulo 15
Capítulo quatorze - Assobio




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            Juan foi o primeiro caso sério de ataque envolvendo tentativa de suicídio. Ele usara em si mesmo um feitiço raríssimo de asfixia, e também tivera o cuidado de se prender no teto para que ninguém o impedisse. No entanto, ele não morrera. Ficou internado na enfermaria pelos dias seguintes, completamente inconsciente, apesar das enfermeiras dizerem que ele estava perfeitamente bem. Sua pele continuava pálida e ele respirava muito devagar. Ele não foi o único a cair nesse estado, entretanto.

            Houve uma comoção no castelo quando as outras vítimas do ataque repentinamente desmaiaram, entrando num estado quase vegetativo. Agora a enfermaria, que podia abrigar pouco mais de dez alunos, estava lotada. Os alunos se amontoavam ao lado dos doentes, e para acomodá-los todos um sistema de rodízio teve de ser criado. Os alunos de veracosta do primeiro ao terceiro ano podiam visitar os amigos na enfermaria nas primeiras horas da tarde do sábado. Nesse horário, Alex e Mateus se reuniram ao redor da maca onde Juan estava deitado. Nicolás não fora porque odiava hospitais.

            Alex tocou a pele do antebraço do garoto. Estava fria e áspera.

            — O que a gente tá esperando para contar? — perguntou Mateus, sussurrando.

            — Sofia — Alex respondeu. — Ela descobriu isso tudo, ela que tem que estar junto na hora que a gente for lá contar para a diretora.

            O garoto assentiu, um pouco contrafeito. Não sabiam como se comportar durante uma visita daquelas. Mateus acabou escorando na maca ao lado, depois desencostou quando se lembrou que ali também tinha um aluno desacordado. Duas macas à frente estava Sebastian, vestido com seu uniforme de Quadribol. Diziam que ele tinha caído inconsciente enquanto assistia ao treino da Goleeira, sentado na arquibancada. Ao lado dele estava Amélia, a mais pálida de todos. Com certeza ela era um assunto para se preocupar.

            Eles saíram da enfermaria com uma sensação de tragédia. Tinham ido visitar o garoto para averiguar o seu estado, e voltaram para o dormitório com a notícia de que não havia sinal de melhora. Castelobruxo estava mergulhado numa constante depressão. As pessoas estavam com medo e várias medidas de cautela foram aderidas à regra do vigia. Estava terminantemente proibido, dessa forma, ir até o deque. A professora Margarida os informou que lá era distante demais do castelo, e que por isso vários dos feitiços de segurança não funcionavam. Mateus sentia a necessidade de contar para a diretora, mas Sofia os impedira por alguns dias. Ela estava reunindo provas.

            Quando enfim ela estava pronta para contar para a diretora, os quatro se encontraram na noite de uma segunda-feira no pé da escada que subia para a área nobre do castelo. Todos tinham uma expressão séria de que estavam fazendo a coisa certa, mesmo que Mateus ainda os repreendessem por ter demorado tanto. Subiram todas as escadas que levavam para o gabinete da diretora. Não tinham agendado horário e Sofia achava que era melhor assim. Aquilo devia ficar entre eles.

            Bateram na porta do gabinete e aguardaram. Alex bateu mais uma vez. Não obtiveram resposta.

            — Talvez ela não esteja aqui — sugeriu Alex.

            — Ela tem de estar — disse Sofia, batendo na porta pela quarta vez.

            — A essa hora ela já deve estar no quarto dela.       

            — E onde é o quarto dela? — Mateus quis saber. — Na verdade, onde os professores dormem?

            Nenhum deles soube responder. Insistiram mais duas vezes e então se retiraram de lá. Só foram ficar sabendo o motivo no dia seguinte quando perguntaram para o professor Mervir. Ele disse que Raira estava naquele momento numa viagem a respeito dos ataques e que ele não podia falar mais do que isso.

            Os pajuantes e veracostas do primeiro ano estavam aprendendo naquele dia sobre Sonebarium, um dos primeiros bruxos europeus a fazer um acordo com os bruxos indígenas. Mervir falava sobre a forma como ele fora mantido em cativeiro até ganhar a intimidade suficiente para ter acesso às ruínas da antiga cidade bruxa de Machu Picchu. Ele foi o precursor da reabertura de Castelobruxo, anos mais tarde, passando a aceitar alunos europeus nascidos nas américas.

            — Ele deve saber alguma coisa sobre el Tunchi — sussurrou Alex para Sofia. — A gente devia falar para ele.

            — Não. Só para a diretora.

            — Parece que você não quer resolver essa história — sussurrou Mateus da mesa de trás, curvado por cima do tampo. — Você tá esperando um de nós ser atacado?

            Ela não respondeu. Alex ficou quieto durante todo o resto da aula. Mal prestou atenção quando Mervir finalmente comentou sobre o Dia de Sonebarium, festejado em janeiro, em homenagem aos serviços prestados pelo bruxo espanhol. Antes de saírem da sala, Mateus puxou Sofia antes que ela pudesse fugir e disse:

            — Se você não falar nada eu falo.

            Ela se livrou do aperto do garoto.

            — Pode falar. Ele não vai acreditar.

            Saiu de lá segurando fortemente a alça da mochila. Mateus não perdeu tempo: foi pisando duro para a mesa do professor, Alex e Nicolás o acompanharam. Mervir parou de guardar seus papeis e olhou para os garotos.

            — Estão interessados em entrar nas pesquisas sobre o livro perdido de Sonebarium? — ele perguntou.

            — O quê? — Mateus pareceu confuso. — Não. Estamos aqui para falar dos ataques.

            Mervir fez uma cara de tristeza.

            — Tem algum amigo seu na enfermaria?

            — Tem, mas não é sobre isso que queremos falar. Nós achamos que sabemos quem está por trás disso.

            Mervir olhou para o último aluno saindo da sala. O professor correu até a porta e a fechou, depois virou-se para os alunos.

            — O que vocês descobriram?

            E então eles disseram. Mateus contou sobre a lenda, Alex completou falando sobre o dia que se perderam na floresta e do assobio, e ainda disse que Juan foi quem respondeu, e agora ele estava desacordado na enfermaria. A expressão de Mervir passou de assustado para levemente preocupado, até que finalmente terminou sorrindo e balançando a cabeça. Ele, como Sofia previra, não acreditou em uma palavra do que eles disseram.

            — Uested sabes da lenda, professor — disse Nicolás.

            — Sim, eu conheço a lenda El Tunchi — Mervir estalou a língua, divertidamente. — E como o nome diz, é uma lenda. Na verdade, ela foi adaptada da versão oral para a escrita por Afondo del Rozzo, um famoso escritor do século...

            — Nós estamos falando a verdade! — disse Mateus.

            — Esquece — fez Alex quando percebeu que Mervir não iria mudar de opinião.

            Os garotos saíram da aula de tradições diretamente para o dormitório naquela tarde. Mateus nunca estivera tão nervoso. Ele continuava achando que deveriam ter contado para a diretora no momento em que descobriram o Juan pendurado no teto. Isso ajudou a criar uma desconfiança com relação à Sofia. Alex e Nicolás não compartilhavam disso; Alex preferia acreditar que ela fosse mais inteligente do que eles e que soubesse de fato a hora certa de contar para os professores.

            Mateus não se deu por vencido facilmente, entretanto. No dia seguinte durante a aula de transfiguração ele disse que ia conversar com o professor. Professor Vicente era tão velho que quase não escutava sem ajuda de uma grande corneta acústica que ele levava à orelha sempre que um aluno tinha uma pergunta. No entanto, ele era capaz de transfigurar uma casa inteira numa pena, e essa pena num avião. Quando ele escutou o que Mateus tinha a dizer, no entanto, fingiu que não compreendeu e continuou apagando a lousa.    

            O garoto não desistiu disso até ter falado com todos os professores que davam aula para ele e até com alguns que só ensinavam os mais velhos. Ninguém deu a menor atenção para a lenda, ou para os fatos que eles apresentavam. Nem mesmo Wellington e Ingrid pararam para escutar o que Mateus contara, logo eles que estavam ali para fazer uma investigação. No lugar, o que não foi uma completa surpresa, Wellington disse que Mateus só deveria ir conversar com ele se soubesse de algum contrabando de animais mágicos da floresta feito pelos alunos.

            Raira não tinha retornado dos seus afazeres, desse modo Ruben assumira o posto como a maior autoridade ali. Entretanto, ele era tão inacessível quanto a diretora. O fato era que no fim daquela semana nenhuma das vítimas tinha acordado (na verdade, outro garoto do sexto ano tinha integrado à lista) e, graças a Mateus, el Tunchi se tornou um boato. Não sabiam dizer como aquilo chegou ao conhecimento de todos os alunos, mas eles não falavam de outra coisa. Da noite para o dia El Tunchi se tornou o assunto mais pesquisado na biblioteca e os alunos odiavam não ter resposta, pois o único livro a respeito estava com Sofia, que se recusava a devolver.

            As fofocas tinham certo fundo de verdade, mas também tinham um quê de fantasia. Alex escutou dizerem que el Tunchi na verdade era um vampiro que estava se alimentando das vítimas todas as noites na enfermaria, por isso eles estavam tão pálidos. Havia também quem dissesse que el Tunchi era uma caipora desgarrada que se revoltara contra as demais, e por isso eles não deviam chegar nem perto dos bichos vermelhos. E Tuany um dia veio contar que ela já tinha visto um Tunchi perto da casa dela uma vez, no interior do Rio Grande do Norte.

            Sofia escutava aquilo nervosa. Era exatamente aquilo que ela estava tentando evitar e Mateus tinha conseguido estragar tudo. Agora toda a escola conhecia o nome, mas a importância não. O resultado era que mesmo se eles tentassem falar com a diretora,

àquela altura ela provavelmente não acreditaria. Tinham voltado à estaca zero.

            Além de serem extremamente irritantes para os quatro, aqueles boatos também começaram a atrapalhar a rotina de Castelobruxo. Um dos primeiros a presenciar isso foi Leonino, o professor que adorava longas caminhadas na floresta. Em uma das aulas os alunos simplesmente se recusaram a entrar na mata.

            — Como não? — ele perguntou, cruzando os braços para os alunos. — Não tem aula se vocês não forem devolver esses araréus para o interior da Amazônia.

            — Eu não entro lá — disse uma das amigas da Tuany. — Não vim para essa escola para ser comida por um Tunchi.

            — Um o quê? Escutem aqui todos vocês. Se não entrarem nessa floresta agora e fizerem a tarefa do dia, vocês perderão pontos na minha matéria. É isso que vocês querem?

            Mateus foi o primeiro a abrir passagem por entre os alunos parados no limiar da clareira. Ele pegou uma caixa cheia de araréus e entrou na floresta. Alex e Nicolás o seguiram, cada um pegando uma das caixas com as pernas penduradas. Eles andaram calados fazendo o percurso que Leonino tinha dito para fazerem. Passaram por uma ponte de madeira e chegaram ao local onde os araréus costumavam ficar: um brejo coberto de teias.

            — No és assim — disse Nicolás, tirando um araréu da mão de Mateus. Ele apertou demais o bicho, quase levando uma mordida.

            Alex ficou olhando para trás o tempo inteiro. Não iria correr o risco de se perderem novamente, agora que tinham certeza que el Tunchi vivia naquela floresta. Outros alunos se aventuraram e chegaram ao local também, passando pela ponte. Não estavam conversando, entretanto. Eles faziam o que deveria ser feito o mais rápido possível para poderem voltar para a clareira. Ao todo apenas doze alunos entraram na floresta naquele dia, e somente um deles era uma garota.

            Continuaram soltando os araréus, que precisavam ser cuidadosamente colocados na área alagada até que eles pudessem desdobrar completamente as pernas articuladas. Até que Alex sentiu um arrepio forte, seus pelos do braço tornando-se eretos em aviso. Ele olhou ao redor e um vento soprou lá nas copas das árvores, o que fez ele olhar para cima. O sol provavelmente tinha se escondido atrás de uma nuvem, pois a sombra se tornou um tanto mais escura naquele momento. Ele cutucou Nicolás, mas o argentino não parecia estar sentindo nada. Alex apertou os olhos para enxergar por entre os galhos, sua mente já pregando peças por causa do medo. Foi nesse exato instante que um dos galhos mexeu de forma estranha, descolando-se demais. Ele não estava preso à árvore.

            Um assobio longo encheu a floresta. Todos os alunos levantaram suas cabeças para o alto, alguns não acreditando no que tinham acabado de ouvir. Alex imediatamente levou o dedo indicador aos lábios e fez “shhh” para os colegas. Eles ficaram congelados em seus lugares, amedrontados demais para tomar qualquer decisão. O segundo assobio foi mais alto, mais intenso e numa nota que sugeria perigo. Terminou com um sopro de ar quase asmático, e isso foi o bastante para fazer com que eles perdessem a calma. Todos saíram correndo do brejo o mais rápido que podiam, aos gritos.

            Mateus largou o araréu onde estava e correu na frente de todos eles. A ponte só permitia a passagem de uma pessoa, por isso a maioria deles teve de molhar os pés no riacho ou pular por cima das pedras. Chegaram à clareira para encontrar a maioria dos alunos sentados no chão e Leonino quase cochilando perto deles. Ainda aos gritos, eles tentaram contar o que tinha acabado de acontecer lá dentro da floresta.

            Os colegas acabaram decidindo que um deles tinha assobiado para assustá-los. Mateus acreditava que isso era possível, mas Alex sabia que não tinha sido esse o caso.

            — Eu vi! — disse o garoto, os três já na segurança do quarto. — Eu vi o chifre dele!

            — Você viu um galho — disse Mateus.

            — Vocês escutaram o assobio, era idêntico ao que o Juan respondeu naquele dia.

            — Ainda bem que ninguém respondeu dessa vez, então.

            Mateus enfiou-se debaixo da sua coberta até embrulhar a cabeça. Os outros dois não demoraram muito para fazer o mesmo. No dia seguinte a esse incidente, Sofia mandara avisar aos três que ela queria encontrá-los na biblioteca depois das aulas. Eles foram direto para as galerias subterrâneas e esperaram a pajuante em uma das mesas de grupo no interior da biblioteca, onde podia-se conversar. Sofia apareceu não muito tempo depois.

            Trouxe consigo o livro da lenda e também seu caderno de anotações. Alex sentiu saudades dos momentos em que os dois passaram juntos estudando herbologia naquele caderno. Com toda aquela confusão, as aulas extras tinham sido canceladas; até mesmo as que ele dava para ela sobre feitiços com varinhas. Sofia sentou-se e abriu o livro numa página com uma ilustração de uma pessoa deitada.

            — Tudo o que está acontecendo está registrado na história — ela disse. — Aqui estão as relações que eu fiz.

            Ela mostrou duas folhas do seu caderno com os fatos dos ataques e as relações que eles tinham com os acontecimentos da lenda.

            — Insisti com o professor Mervir e ele me disse que a diretora só retornará no mês que vem.

            — Mês que vem?! — Alex perguntou, surpreso.

            — Sí — Sofia abriu outra página do livro do Tunchi. — Até lá, sugiro que vamos atrás del Tunchi nosotros mesmos.

            — Concordo — disse Mateus.

            — Y como vamos fazer esto? — Nicolás quis saber.

            — No fim da lenda, el Tunchi se torna tão poderoso com o medo dos aldeões que passa a se disfarçar de humano para viver entre eles. A história termina quando descobrem quem é ele.

            — Então quer dizer que...

            — Sí — Sofia fechou o livro com violência. — El Tunchi pode estar entre nós. E se sim, precisamos descobrir quem.

            — Vocês têm certeza? — perguntou um garoto alto saindo de trás de uma estante. Ele tinha a expressão abatida, quase cansada, e Alex se lembrou dele daquele corredor na noite fatídica de duelos. Era o namorado de Amélia, a primeira vítima. — Vocês acreditam mesmo nessa história de que é um Tunchi?

            — Nós descobrimos isso — disse Mateus, ignorando o olhar acusativo de Sofia.

            — Eu quero ajudar — disse o garoto, sentando-se em uma das cadeiras vagas à mesa. — Meu nome é Ronan.

            — Também quero — disse outro garoto, saindo de trás da estante ao lado daquela. Seu cabelo era loiro natural e seus olhos, claros, mesmo à pouca luz da biblioteca. João sentou-se na última cadeira vazia da mesa e disse: — Se estais certos sobre isso. Eu sou o João.

            Os quatro do primeiro ano se entreolharam por alguns segundos. Nicolás não sabia o que dizer, Alex muito menos, então a decisão acabou sendo tomada na discussão entre Mateus e Sofia.

            — Não — ela disse.

            — Claro que sim, a gente precisa de ajuda. Principalmente de alunos mais velhos! — respondeu Mateus.

            — Fora de questão. Não.

            — E por que não? Eles foram os primeiros a acreditar na gente!

            Sofia olhou para os dois garotos sentados ali. Ronan parecia estar extremamente triste, tinha motivo para ajudá-los, enquanto João era um dos melhores alunos de Beauxbatons. Ela não queria aceitá-los, mas percebeu que seria minoria caso perguntasse a opinião de Alex e Nicolás.

            — Tudo bem. A biblioteca vai fechar em breve. Mañana aqui, nessa mesa, vamos decidir o que vamos fazer. Por favor, não contem a ninguém.

            Surgia ali a primeira investida real contra os ataques em Castelobruxo.


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