Castelobruxo escrita por Vilela


Capítulo 13
Capítulo doze - A regra do vigia




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            — Prova, prova, prova, prova! — gritavam os garotos em uníssono.

            Alex segurava o chiclete entre os dedos polegar e indicador com certo receio. Sorria, mas nunca sentira tanto medo em provar um doce antes. Ele era o último dos garotos no dormitório a não provar a criação de Nicolás, e o argentino estava ali disposto a mudar isso. Tinham se reunido no quarto com Juan e outros garotos do primeiro ano. Todos estavam em volta da cama de Alex, incentivando-o a finalmente provar aquele chiclete.

            Ele tirou a goma de dentro da embalagem, que nessa receita atualizada tinha uma cor rosa clara, e a colocou inteira na boca. Nem precisou mastigar, o sabor era intenso demais. Primeiro sentiu o gosto artificial de morango, que passou rapidamente por vários outros gostos, até fixar em menta. Deu a primeira mordida e sentiu o chiclete inchar na boca, tornando mais difícil de mascar. A sensação no corpo, entretanto, era muito mais estranha. Sentiu seus músculos se tencionarem e o leve incômodo nas costas desaparecer de imediato. Era como se ele tivesse dormido quando dera sono e acordado espontaneamente. Nunca havia se sentido tão bem.

            — Te gusta? — Nicolás perguntou.

            Alex fez que sim com a cabeça, mas ainda exibia o olhar desconfiado. Pelo menos agora eles sabiam os efeitos colaterais daquele chiclete. Descobriram isso quando Nicolás um dia não conseguiu acordar para ir à aula. Ele dormiu quase o dia inteiro, o que era demais até para a sua rotina de sono. O chiclete de fato tirava o cansaço, mas apenas por um tempo limitado. Um momento ou outro quem o tinha mascado deveria que dormir. Isso, claro, se você ficasse a noite toda acordado; do contrário não havia consequências negativas.

            O garoto cuspiu o chiclete numa folha de papel e provou o próximo. Nicolás tinha desenvolvido uma variedade de três sabores, mas todos começavam com a experiência tutti frutti. Era quase meia noite e os garotos finalmente retornaram para seus quartos e Alex pôde deitar. Mal fechou os olhos e se viu cercado por árvores. Ele estava dividido naquele sonho. Lembrava-se de ter se perdido na floresta dias atrás, e principalmente da forma como as raízes se manifestaram para mostrar o caminho. Porém, naquele sonho ele tinha certeza que algo como aquilo não existia. Tirou o copo-de-leite das vestes, ainda sentindo um tremor incomum.

            No dia seguinte Alex comentou com Nicolás sobre o chiclete não ter sido capaz de impedir seu pesadelo. Na verdade, ele dormira mais rápido do que de costume, como se não tivesse mascado três deles. Estavam a caminho da aula de poções quando ouviram um barulho estranho e completamente novo. Agudo e extremamente alto, ele encheu todo o castelo e imediatamente os alunos mudaram de direção.

            — O que é isso? — Mateus perguntou a um aluno que passava.

            — É o sinal, todos no jardim principal.

            Os garotos se encararam confusos, mas seguiram os outros alunos e procuraram um lugar para se sentar na arquibancada. Todos os professores também estavam ali, sentados na arquibancada da frente. Entre eles estava a diretora Raira, impecável como sempre, num vestido azul celeste. Quando todos os alunos haviam enfim se reunido, ela levantou de onde estava e chegou mais perto do jardim. Quando falou, sua voz ecoou por todo o anfiteatro e encheu o castelo.

            — Muito bom dia a todos. Pedi para que vocês fossem chamados aqui hoje por um motivo sério e que muito me perturba. — Ela olhou ao redor, os alunos escutavam com atenção. — Não é segredo pra ninguém que nossa escola está sendo ameaçada por... algo ou alguém. Vocês como alunos têm o direito de saber os riscos que correm quando se matriculam em nossa escola, e de fato a floresta é um dos lugares mais perigosos desse mundo. É por isso que eu tenho o dever de informar que ontem à tarde somaram-se dez os casos de tentativa de suicídio.

            O barulho foi inevitável. Todos tinham algo a dizer ou reclamar. Alex e seus amigos também ficaram surpresos, apesar de já saberem que os números eram maiores do que os outros achavam que eram.

            — Silêncio — pediu calmamente a voz imponente da diretora. Imediatamente todos se calaram. — Muitos de seus colegas foram pegos fazendo coisas que não deveriam, que não tinham consciência. Nesse caso, uma nova regra será instaurada: a regra do vigia. A qualquer momento, em qualquer situação, se vocês virem um de seus amigos agirem de forma estranha, vocês têm total liberdade de usar o feitiço do corpo preso nele ou nela, até que um professor possa chegar ao local.

            Outro burburinho correu as arquibancadas.

            — Mais uma coisa. Até que o responsável por isso seja levado a justiça, eu temo que nós precisaremos de ajuda. — Alex reparou na professora que ele vira conversar com Ruben naquele dia. Antonieta estava sentada com as pernas cruzadas e exibia um sorriso satisfeita. — A partir da próxima semana, dois dos melhores aurores brasileiros serão enviados para cá para investigar o caso.

            — Ela conseguiu — disse Mateus para Alex. — O Parlamento Bruxo está interferindo.

            — Não acho que tenha sido ela — respondeu Alex. — A diretora não parece ser uma pessoa que faz alguma coisa ser ter bons motivos.

            — Vocês terão de conviver com eles — continuou Raira. — E também estaremos expostos ao mundo exterior. Por isso, aconselho que tenham cuidado.

            Todos sabiam do que ela estava falando: do comércio ilegal dentro de Castelobruxo, da postura dos professores com os alunos e principalmente da periculosidade da floresta. Histórias não eram nada até que se via de fato o que ocorria ali dentro, quando os boatos se tornavam notícias.

            — Estão dispensados — Raira disse por fim. — Para suas aulas.

            Todos se levantaram e as discussões foram imediatas. Foi difícil inclusive se concentrar na aula de poções depois daquele aviso. Enquanto Sofia misturava uma poção simples para limpeza instantânea, ela contou sobre um garoto do primeiro ano que sumira do nada das aulas por três dias, reaparecendo sem memórias de onde estivera.

            — Ele com certeza foi atacado — disse Alex.

            — Possuído! — Nicolás levantou as mãos para Mateus, querendo assustá-lo. O amigo empurrou o argentino, não achando graça naquilo.

            — Tuany, pode pegar na estante para mim o funcho preto? — pediu Sofia.

            Assim que a veracosta foi buscar o ingrediente mágico, Sofia parou de mexer o caldeirão e olhou para os colegas.

            — Não é só isso. Eu descobri una coisa importante! — Ela tirou da bolsa o livro de capa marrom que Alex tinha entregado para ela. — El Tunchi.

            Tuany retornou dizendo que não tinha funcho preto no estoque da sala; Sofia guardou o livro rapidamente, falando que provavelmente devia ter se enganado a respeito daquele ingrediente. A peruana lançou um olhar nervoso para os garotos e continuou misturando a poção, que àquela hora estava tão escura e grudenta quanto piche.

            Quando enfim a aula terminou, Sofia disse que tinha que fazer algo e deixou eles na porta da sala, saindo correndo pelo corredor. Alex, Mateus e Nicolás não entenderam o que ela queria dizer, mas não fizeram especulação. Foram para a segunda aula, magizoologia, e depois dela entraram no refeitório sentindo-se exaustos. Alex foi o primeiro a pedir para a carranca cuspir um prato de feijão tropeiro. Tinha acabado de começar a comer quando Sofia juntou-se a eles, sentando ao lado de Nicolás. Alex percebeu que tinha uma cadeira vaga ao lado dele, por que ela tinha que preferir sentar-se perto do argentino?

            — Desculpa, eu no confio na Tuany — ela disse, tirando mais uma vez o livro de dentro da mochila. — El Tunchi.

            — A gente já entendeu essa parte — disse Mateus, com a boca cheia.

            — A lenda, Alex — ela continuou, ignorando Mateus. — Eu li o livro todo. A criatura que habita as florestas e se alimenta das pessoas que se perdem nela. A única coisa que afugenta un Tunchi é o copo-de-leche. Tem a ver com tu sueño.

            — Tem — admitiu Alex. — É parecido.

            — Mas o que isso tem a ver as tentativas de suicídio? — Mateus quis saber.

            — Ela está pesquisando sobre a lenda porque talvez isso ajude com os meus pesadelos. — Alex esperava que isso fosse o bastante para mostrar para Nicolás que Sofia se importava com ele.

            — No, no — a garota respondeu. — É mais do que isso. Yo penso que és un Tunchi que está atacando aqui no castelo.

            Os garotos se entreolharam. Alex foi o primeiro a perguntar:

            — Por que você acha isso?

            — Veja — ela se levantou e veio se sentar ao lado de Alex. Ele não conseguiu deixar de se sentir levemente contente. Sofia abriu o livro na frente dos dois e mostrou uma ilustração em tons de sépia de uma figura maligna com chifres pontudos como galhos. — Aqui diz que a criatura pode controlar as pessoas. Quanto mais desesperadas estão, mais fácil é de usar suas mentes. Quando el Tunchi finalmente tem o controle total da vítima, ele a induz à morte, suicídio. É quando se alimenta de su alma.

            — Bobagem — Mateus continuou comendo, fingindo desinteresse. Nicolás não fez comentário.

            Alex, por outro lado, sentia que aquilo podia fazer sentido. Porém, não conseguia ligar os fatos. Aquela lenda era para ajudá-lo a entender seus pesadelos, não os ataques. Suou frio ao perceber que talvez os dois estivessem conectados de alguma forma.

            — Além disso — Sofia virou as páginas até um momento na narrativa que ela tinha marcado com caneta, — descobre-se un Tunchi pelo assobio.

            — Hemos oído un assobio! — disse Nicolás, sendo mais rápido que Alex.

            — Sim, na floresta. Naquele dia que ficamos perdido, eu te contei.

            — Sí — Sofia fechou o livro. — Algun de vocês respondeu?

            — Claro que não.

            — Respondemos sim — Mateus entrou na conversa, olhando de lado. — O Juan perguntou quem era.

            — Ele provavelmente vai ser atacado.

            — Para, Sofia — Mateus agora tinha fechado a cara de vez; não estava gostando nada daquele assunto. — Isso não é brincadeira. As pessoas estão sendo atacadas de verdade.

            A pajuante olhou para Mateus por alguns segundos, depois se levantou e guardou o livro.

            — Bom almoço para vocês — ela disse, antes de sair.

            Alex almoçou pensativo. Em partes concordava com Mateus, pois sabia que não podiam se basear numa lenda que somente Sofia parecia conhecer. Contudo, ele também sentia que deveria acreditar na pajuante. Tudo fazia sentido, apesar de ser fantástico até mesmo para os bruxos. Sabia que el Tunchi não era uma criatura registrada pelos magizoologistas do castelo, uma vez que ninguém tinha considerado aquela possibilidade. Ficou se perguntando se isso podia ser possível, que uma criatura daquela magnitude pudesse ter ficado escondida na floresta por todos esses séculos.

            Apesar das novidades, a aula de espanhol naquele dia fora extremamente entediante. Estavam aprendendo alguns verbos e era sempre confuso, principalmente para Mateus. Ele não tinha se esforçado muito nos primeiros dias; isso até o dia em que descobriu que havia muitas aulas dos veracostas que só eram ofertadas em espanhol, assim como ele precisava passar naquela matéria para se formar. Desde então ele fazia questão de participar nas aulas, mas só conseguia passar vergonha.

            Como no dia em que confundira pero com perro e acabou chamando o professor de cachorro. Arrancou risadas de todos, inclusive de Alex, e rendeu também um sermão do professor. Ele tentou conversar com o professor de espanhol, pois seria mais fácil se ele pudesse entrar na aula de português dos latinos. Professor Enrique não quis ouvir falar naquilo, porque segundo ele Mateus já era um excelente falante da língua. Não restava outra opção, nesse caso. Ele saiu da sala naquela tarde sentindo-se esgotado.

            O caminho de volta para os dormitórios foi interrompido por mais um sinal do castelo. Os garotos foram se reunir no jardim principal, onde a maior parte dos alunos já estava se amontoando. Mas os professores não estavam presentes. A porta que dava para o corredor que levava ao átrio de entrada estava aberta, e de lá incontáveis feras pequenas e vermelhas vinham aos saltos pelo chão, paredes e teto.  As caiporas iam se espalhando pelo jardim principal, subindo as arquibancadas de dois em dois degraus.

            Primeiro os alunos acharam que elas estavam invadindo o castelo sem o consentimento. Isso era completamente proibido, salvo no início dos anos quando elas precisavam cheirar os alunos novos a fim de guardá-los. Depois ficaram sabendo que a diretora Raira tinha feito um acordo com as caiporas, permitindo o acesso ao castelo em troca de proteção. Alex sabia que as pequenas feras eram as protetoras de todos os seres vivos da floresta, atuando também como ponte para o equilíbrio entre ela e os bruxos. Essa era a segunda vez que um acordo desse era firmado em séculos. O primeiro, como contavam as histórias, terminara em uma quase guerra entre elas e os bruxos. Mesmo que todos confiassem em Raira, aquela decisão era duvidosa. Isso porque as caiporas eram extremamente ariscas.

            Uma delas escalou a pilastra onde os garotos estava, virou o focinho vermelho-sangue para eles e cuspiu.

            — Cuidado! — gritou Nicolás, tirando Mateus da mira da cusparada.

            Assim o que líquido bateu no chão, uma nuvem preta se levantou e no lugar ficou um buraco na pedra. Àquela distância eles puderam sentir o cheiro de coisa queimada.

            — Desde quando elas cospem assim? — Mateus levou a mão ao peito, assustado.

            Não demorou muito e o castelo ficou infestado de caiporas. Elas gostavam de lugares mal iluminados, e tinham a tendência de fazer moradia nos mais variados lugares. No sábado seguinte Mateus estava se preparando para jogar Dorteaqua, apesar da chuva fina e dos raios, quando abriu a mochila e deu um grito. Alex foi ver o que era e uma caipora tinha adentrado a sacola e agora estava morando lá dentro, as garras enfincadas no pano grosso. Mateus fez de tudo para tirá-la de lá. Tentou oferecer comida, outra mochila, e até mesmo usou um feitiço, sem efeito algum. Mas a caipora permaneceu onde estava, mostrando os dentes sempre que alguém chegasse perto demais. Ela só parava de rosnar quando fechavam o zíper.

            — Como eu vou fazer? Meu livro de espanhol está dentro dessa mochila! — reclamou Mateus. Então ele percebeu o que tinha acabado de dizer; sorriu, deixando aquele assunto para lá.

            Nicolás também não estava tendo bons momentos com as caiporas. Sua primeira ideia ao vê-las era a de que podia domesticá-las, mas descobriu que isso era impossível. Atraiu uma para o quarto deles, e assim que ela entrou, imediatamente passou a farejar algo. Foi no meio das cobertas do argentino e descobriu lá a preguiça desmalte adormecida. Por pouco ela não saiu de lá com o bicho na boca, provavelmente para devolvê-lo à floresta. Nicolás salvou sua preguiça e desistiu dessa ideia idiota.

            O único contato de Alex com as caiporas fora terrível. Estava voltando sozinho da biblioteca um dia quando uma horda delas passou pelo corredor, aos saltos e grunhidos. A primeira derrubou o garoto no chão e as demais passaram por cima. Ele se levantou rapidamente, olhando ao redor para ver se alguém tinha visto. O mais curioso nessa história toda era o fato das caiporas serem dotadas de fala. Aprendiam com facilidade qualquer idioma humano, passando a reproduzir com exata entonação. Porém, elas não consideravam os bruxos dignos de conversa, por isso ninguém vivo jamais ouvira a voz de uma caipora.

            Estavam justamente discutindo isso quando pela terceira vez naquela quinzena o sinal tocou.

            — De novo não — disse Alex, largando seu pão no refeitório e indo para o jardim principal.

            Quando todos já estavam sentados, Raira tomou a palavra mais uma vez. Apesar da expressão séria, era com um sorriso que ela cumprimentava os alunos mais próximos. Ao lado dela estavam dois bruxos usando capas, completamente desnecessárias naquele calor infernal que estava fazendo.

            — Quero apresentar Wellington Nascimento e Ingrid Linhares, os aurores que estarão conosco nesses próximos dias. — O homem que estava à direita, Wellington, era alto e careca, com uma barba que atingia o peito; no rosto usava óculos de lentes escuras e pequenas. Ingrid parecia ser bem mais amigável, com suas bochechas gordinhas e os olhos enormes. — Peço que vocês cooperem com o trabalho deles e que mostrem a hospitalidade de Castelobruxo.

            — Obrigado, diretora — disse Wellington, com uma voz de trovão, mesmo eles não sabendo por que ele estava agradecendo. — Pretendemos pegar o engraçadinho que está pregando essas peças perigosas o quanto antes. Não vamos dormir, cochilar, ou até mesmo piscar enquanto o culpado por expor vocês a esse perigo não for levado à justiça do Parlamento Bruxo Brasileiro.

            Raira crispou os lábios. Se o auror esperava aplausos, não os obteve. Após alguns segundos de puro silêncio, Raira os dispensou e todos puderam voltar a seus afazeres. Nicolás ao invés de voltar para o café da manhã, dobrou o corredor da direita e correu para o dormitório. Ninguém sabia ao certo quando os aurores chegariam, o que significava que ninguém estava realmente pronto. Muita coisa ainda tinha de ser escondida ou jogada fora. Eles não podiam estar mais certos.


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