A noite tranquila de sono me fez acordar de bom humor. Abri meus olhos e me deparei com o quarto um pouco escuro, pois a luz do sol não penetrava as grossas cortinas escuras nas janelas. Sentei-me na cama confortável, me sentindo bem melhor depois de um merecido descanso. Meu corpo já não doía mais como no dia anterior.

Ao lado da cama, sobre uma mesa, havia algumas poucas roupas dobradas, na qual fui checar como eram as minhas novas vestimentas.

Havia apenas duas peças de roupa ali, um vestido simples de cor roxa e um casaco de cor preta. Tratei logo de me vestir com as roupas novas, para não ficar andando de pijama pelo lugar.

Não havia nenhum relógio por perto, e nem fazia ideia se naquele lugar existia relogios para marcar as horas, mas a julgar pelo sol que vi ao abrir as cortinas do quarto, um sol fraco e calmo, considerei que ainda estava de manhã.

Já havia aprendido o caminho para o refeitório, era um caminho reto e sem erro, e foi para lá que me dirigi ao sair do quarto. Era estranho andar por aquele lugar sem companhia, o lugar poderia ser aconchegante e amigável, mas ao mesmo tempo era um tanto sombrio, o que me causava um pouco de medo.

Andei um pouco rápido pelo corredor até chegar ao refeitório, vi Fioras e Vareth comendo e conversando na mesma mesa da noite passada, e localizei Shamelf estava se servindo em uma grande mesa cheia de comida. Me dirigi até ele, tanto para cumprimenta-lo quanto para me servir.

Lorelay: Bom dia, Shamelf! -Sorri amigavelmente para ele ao me aproximar. Ele me olhou e retribui o sorriso enquanto colocava uma fruta estranha em seu prato.

Shamelf: Ah, bom dia, Lorelay! Você acordou cedo, hein? Pensei que fosse dormir até mais tarde.

Lorelay: Acho que meu relógio biológico está tão acostumado a acordar cedo que não me permitiu dormir mais. -Ri levemente, o que fez Shamelf rir junto.

Shamelf: Entendo... Gostou das suas roupas novas?

Lorelay: Sim! Parecem um pouco com as minhas antigas, bem confortaveis!

Shamelf: É uma roupa temporária, ou pra usar quando estiver de folga

Lorelay: De folga?

Shamelf: É! Você não vai poder usar isso quando for treinar, sabe? Não é uma roupa muito adequada para isso.

Lorelay: Oh sim...

Shamelf: Não se preocupe! As suas roupas de treino vão ser tão confortaveis quanto essas.

Lorelay: Eu espero que sim -Sorri levemente e olhei para a mesa. A coisa mais comum que vi ali era pão.

Shamelf: Quer ajuda para escolher seu café da manhã?

Lorelay: Sim, por favor, a única coisa que conheço aqui é pão -Ri suavemente, pegando um prato e colocando algumas fatias de pão dentro.

Shamelf: Bem, ouvi dizer que no seu mundo também tem leite -Ele apontou para uma jarra.

Lorelay: Sim, bem, eu não havia visto!

Shamelf: Certo. -Ele riu. -Talvez você goste disso aqui -Ele pegou uma fruta amarela para me mostrar. -É uma fruta de mel.

Lorelay: Ah! Mel eu também conheço... Deve ser bem doce essa fruta, não?

Shamelf: Sim, mas é uma delícia. -Acabei por pegar a fruta e colocando no meu prato, para experimentar depois. Shamelf também me apresentou outras frutas e vegetais na mesa, assim como líquidos e outras coisas, mas acabei por apenas pegar pão, leite e fruta de mel para comer, apesar de ele ter insistido que eu pegasse mel de fogo para passar no pão. Mas não achei o nome tão convidativo para o meu paladar.

Nos sentamos na mesa de Fioras e Vareth, que mais conversavam do que comiam. Elas nos cumprimentaram animadas ao notarem nossa presença.

Fioras: Bom dia pros dois! Dormiram bem? Oh, Lorelay, por que pegou tão pouca comida??

Lorelay: Pouca? Pra mim isso não é pouco....

Vareth: Não liga pra ela, ela parece que tem estomâgo de dragão -Ela riu, fazendo Fioras dar um leve tapa no ombro da amiga elfa.

Fioras: Eu não como tanto assim!

Olhei para o prato de Fioras e vi que estava cheio de fatias de pão, todos os tipos de fruta e mel, além de um copo grande de leite.

Vareth: Está vendo? -Ela disse ao notar meu olhar no prato de Fioras. -Isso aí é só metade! Ela já comeu o resto!

Shamelf: Vocês discutem demais, só comam logo -Ele riu.

Eu apenas ri suavemente e comecei a comer o meu café da manhã. A fruta de mel era mesmo bem doce e gostosa, e usei o mel que escorria dela para passar no pão. Enquanto todos comiam, um rapaz, que usava roupas pretas parecidas com a de Shamelf, pulou encima da mesa, dando um susto tanto em mim quanto em Shamelf, Vareth e Fioras. Ele tinha os cabelos curtinhos e bagunçados, pele clarinha e orelhas e rabo de gato com pelos pretos, seus olhos amarelados olharam para todos com animação e divertimento ao ver todos assustados com sua "entrada triunfal".

Shamelf: SHADE! Isso é jeito de chegar numa mesa de café da manhã?! Você quase derrubou tudo!

Shade: Apenas queria fazer uma surpresa! Pessoas novas, bom dias novos! -O rapaz chamado Shade se abaixou na minha frente e me encarou. -Oooooi!

Fioras: Tira esse rabo da minha cara! -Ela puxou o homem gato pela blusa, fazendo-o cair sentado no banco ao lado dela.

Vareth: Então, gatão da meia noite, ouvi dizer que você tem suuuuper novidades para gente. Fala aí!

Shade: É engraçado que vocês provavelmente são os últimos a saber! -Ele riu.

Shamelf: Diga por elas, não por mim.

Shade: Ah, shiu!

Lorelay: Shade... Foi você que foi espionar o QG ontem a noite? Acho que me lembro de vocês falando algo assim...

Shade: Sim, sim! Rolou uma reunião beeeem chata sobre você, mocinha!

Lorelay: S-Sobre eu?

Shade: Sim! Eu já informei para a senhora Elalren sobre isso! Parece que o Oraculo do Grande Cristal apareceu ontem por causa da humana aqui! E sugeriram na reunião que talvez ela não seja humana mesmo, mas sim uma faery!

Shamelf: Oh bem, eu já sabia sobre isso, eu vi quando o Oraculo apareceu. Ele olhou ao redor, como se procurasse algo, e depois apontou para os pedaços da roupa da Lorelay que acharam na floresta.

Shade: Bem... Eles já desconfiam que ela está aqui conosco. Vão se esforçar ainda mais para nos achar. Vão fazer vários grupos de busca pela floresta também, temos que tomar bastaaaante cuidado!

Lorelay: ESPERA AÍ!

Shade e os outros olharam para mim.

Lorelay: Que história é essa de Oraculo e de eu não ser humana?!

Vareth: Bem, o Oraculo é tipo uma encarnação do Grande Cristal. Ele aparece apenas para eventos realmente importantes, o que é bem raro de acontecer. E aconteceu por sua causa.

Shade: Logo, talvez você não seja 100% humana!

Lorelay: Isso... É loucura!

Fioras: Nem tanto. Talvez alguém daqui conseguiu ir para o seu mundo e acabou casando por lá e tendo você? Ou algum de seus familiares? Algo tem que explicar sobre seu sangue não ser 100% humano...

Shade: Elalren disse que vai fazer aquela poção pra saber se ela é ou não uma faery.

Shamelf: O que me lembra que íamos ver ela de qualquer jeito hoje, Lo. -Ele olhou para mim. -Posso te chamar de Lo, né?

Lorelay: Claro, pode sim...

Shamelf: Enfim, Lo... Depois do café vamos falar com a Elalren e conseguir um mascote novo para você...

Fiquei um pouco desanimada ao falar de mascotes, lembrando da minha mascote que havia ficado em Eel. Todos ali notaram isso.

Shade: Heeey, não fique assim! Você vai gostar do seu mascote novo, tenho certeza! 

Fioras: Você passou apenas algumas horas com o seu mascote antigo, não? 

Lorelay: Sim, mas...

Fioras: Não é tempo o suficiente para se apegar tanto... Ela vai ficar bem, querida, ficar triste por causa disso não é bom para você...

Após me consolarem sobre minha Sabali e depois de terminarmos de comer, Shamelf e eu nos despedimos de Shade, Fioras e Vareth e seguimos para falar com Elalren, a tal chefe deles. O fato de estar indo conhece-la me dava um estranho frio na barriga.

Shamelf: Não precisa ficar com medo, Lo. Elalren é bem legal, você vai ver!

Lorelay: Estou tentando me convencer disso mentalmente... -Sorri meio sem jeito, ainda um pouco apreensiva. -Então... Depois de falar com ela, vou ter que fazer algum teste para pegar meu mascote novo?

Shamelf: O que? Não não! -Ele riu levemente. -Nós não temos muitos mascotes para precisarmos fazer um teste para que escolha um. Aqui não temos lojas de mascotes ou coisas assim, sabe? Geralmente nós temos que pegar um mascote selvagem quando queremos algum... E foi o que fiz! Meu mascote encontrou um mascote para você. -Ele sorriu. -Espero que goste de gatos.

Antes que eu pudesse responder minha opinião sobre gatos, chegamos na sala onde Elalren estava. Era uma sala grande com um trono no fundo, onde ela se encontrava sentada. No centro da sala havia o pedaço do Grande Cristal, que era equivalente apenas a uma ponta do Cristal, não era nem comparado ao tamanho do que estava em posse de Miiko e os outros. Ao redor da sala havia uma espécie de aquário no chão, porém sem peixes, e sim com um líquido estranho que parecia se lava por causa da densidade e da constante borbulhação, mas também parecia água por causa de sua cor azul um pouco escura.

A mulher no trono se levantou e saiu das sombras, andando em nossa direção, sendo iluminada pelo lustre da sala. Ela tinha longos cabelos prateados presos em um rabo de cavalo, havia um par de chifres em sua cabeça, na qual um deles era quebrado no meio e o outro tinha algumas rachaduras, sua pele era clara igual aos outros moradores dali que eu havia conhecido, ela trajava uma roupa de cor verde turquesa escuro com detalhes em prata e preto. Ao ficar na minha frente, notei seus olhos verdes penetrantes e uma pequena joia na testa dela, não sabia dizer se era apenas um enfeite ou se a pedra fazia mesmo parte dela. Já tinha visto tanto naquele lugar que uma mulher com uma pedrinha na cabeça não iria me surpreender.

Elalren: Seja bem vinda ao nosso lar, Lorelay. -Sua voz profunda e melodiosa me saudou. -Acredito que tenha muitas perguntas, e que Shamelf já lhe falou que você tem a escolha de ficar aqui ou voltar para a Guarda de Eel. Mas quero ajuda-la com isso.

Lorelay: Como..?

Elalren: Lhe explicando algumas coisas. -Ela se afastou de nós, indo em direção do centro da sala. -Gosta de histórias?

Ela não esperou uma resposta minha. Ergueu as duas mãos e a água escura e brilhante no chão se mexeu. Elalren se virou para mim novamente e começou a fazer movimentos gentis com as mãos.

Elalren: Em toda história, em todo mundo, existe alguma divisão. Sempre dividem os mundos em o lado bom e o lado mau. -Algumas bolhas de água saíram do aquário e tomaram formas de pessoas. -A Guarda de Eel e todos que você conheceu quando chegou aqui, além de várias cidades e países que eram seus aliados... -Ela apontou para um lado, onde havia uma grande quantidade de pessoinhas feitas de água. -E, do outro lado, nós. Seres que habitam a noite, que habitam o longe e o desconhecido, que eram mal vistos por sua aparência. -Ela apontou para o outro lado, com uma quantidade menor de pessoinhas de água.

Elalren: Com suas alianças, eles decidiram que eles eram a lei e o bem de Eldarya, e nós, os seres da noite, erámos o mal. Nós nunca tivemos direito de escolha, direito de conversa, direito de alianças. Por sermos escondidos, nos consideraram perigosos.

As pessoinhas de água saíram correndo da grande multidão e voltaram para sua fonte, como se estivessem se escondendo.

Elaren: Isso foi uma coisa ensinada a tempos atrás. Nós sempre fomos diferentes. Pele sensível ao sol, mas com poderes e traços fortes. E por sermos poderosos que apenas saíamos durante a noite, nos consideraram criaturas traiçoeiras e más. Um reino escondido que era mal visto e abrigava quem precisava.

Ela apontou para Shamelf, como se pedisse que ele continuasse.

Shamelf: Assim como existem vários reinos, sempre existiu esse aqui, que, infelizmente, foi construído em um lugar distante demais e isso acabou desfavorecendo as próximas gerações...

Elalren: Exato. Antigamente aqui era lar de diversas criaturas consideradas sombrias, porém que não eram más, apenas se abrigaram aqui por ser o lugar mais escondido da luz do sol. Porém, estando tão longe do alcance do Cristal, as crianças que aqui nasciam, longe de uma boa quantidade de maana, nasciam diferentes, ou até morriam após o parto. Algumas crianças de cidades pobres de Eldarya, que também nasciam com carência de maana, acabavam fugindo ainda bem jovens para a floresta para procurar abrigo por causa da forma que os tratavam. Infelizmente, alguns jovens se deixavam levar com esse título de “seres malvados e das trevas” e saíam para espalhar o terror pelas cidades, fazendo com que fossemos cada vez mais mal vistos.

As pessoinhas de água dançavam a nossa volta, criando e desfazendo cenas. Cenas de crianças nascendo e, ainda pequenas, fugindo de seus lares e indo para a floresta, de uma pequena vila sendo construída aos poucos com a ajuda de mais e mais pessoinhas que iam chegando, de alguns rapazes e moças espalhando o terror em algumas cidades durante a noite e sendo perseguidos e pegos por guardas, de grupos de pessoas procurando a localização da vila, mas nunca achando.

Elalren: Ninguém nunca fez nada para mudar nossa situação difícil. Tudo aqui é difícil. Você pode ver a mesa cheia de comida, mas não sabe o quão difícil foi estocar tanta coisa para alimentar tanta gente. Logo a comida vai acabar e vamos ter que nos expor para procurar mais. -Ela suspirou e ergueu as mãos novamente. Dessa vez apareceram duas pessoinhas de água, e a julgar por suas formas, eram ela e Shamelf.

Do outro lado, a julgar por suas formas, eram Miiko, Kero e os outros guardas.

Elalren: Ficamos por séculos vivendo nessa dificuldade, então decidi que já era hora de isso terminar. Eu pensei... Pensei que depois de tanto tempo, uma conversa amigável funcionaria. Eu e Shamelf, ao anoitecer, fomos até o QG falar com Miiko e os demais líderes das Guardas. Todos eles ficaram na defensiva ao nos verem e tivemos que insistir muito para que nos ouvissem, dizendo que só queríamos conversar. Após cederem um pouco de seu tempo, contei a ele toda essa história que estou contando para você agora.

As pessoinhas de água conversavam entre si. Dois contra oito.

Elalren: Mas quando citei minha ideia de dividir o Cristal para que cada um ficasse com um pedaço justo, eles não aceitaram. Ficaram agressivos, como se estivessemos cometendo algum crime. Nós tentamos insistir, mas eles nos atacaram.

Shamelf: Miiko estava na frente de todos e foi atacar Elalren com aquele fogo azul que ela invoca com aquele cajado dela. Mas eu me meti na frente para protege-la e... Bem, acabei me queimando um pouquinho...

Olhei novamente para a queimadura feia no rosto de Shamelf após ver o que ele falou acontecendo com as pessoinhas de água, fogo atingindo ele, ambos saindo correndo enquanto eram perseguidos pelos outros. Senti um aperto no coração ao ver o estrago que uma tentativa de boa ação havia causado.

Elalren: Depois daquilo, decidi que teríamos que tomar medidas drásticas. E começamos a roubar as partes do Grande Cristal. Eles reclamam dos efeitos que isso causa a eles, mas não é nem comparado com o que passamos aqui... Quando você ver os outros, você vai saber do que estou falando.

As pessoinhas de água voltaram para seus lugares e tudo se acalmou. Elalren se aproximou de mim e pegou um frasco que estava preso em sua cintura.

Elalren: Alguns boatos chegaram aos meus ouvidos de que você é uma faery. Faery ou não, sua ajuda será bem vinda. -Ela me mostrou o frasco. -Essa é a poção para saber se você é ou não uma faery. Vou pingar isso em sua mão e, caso você seja, uma chama irá se acender na palma de sua mão. Não se preocupe, não irá lhe queimar.

Olhei para Shamelf, com um olhar um pouco hesitante, e ele apenas me deu um sorriso e um aceno de cabeça, como se falasse que estava tudo bem eu fazer aquilo.

Estendi minha mão para frente e observei a poção cair sobre a palma aberta da minha mão. Por alguns segundos nada aconteceu, mas logo uma grande chama verde apareceu na minha mão, assustando tanto eles quanto a mim, que gritei com a surpresa. A chama se apagou aos poucos, me deixando com uma cara assustada.

Elalren: Você está bem, querida?

Lorelay: E-eu...

Eu havia feito um escandâlo por algo que nem me machucou, aquilo me fez ficar com o rosto corado de vergonha.

Elalren: Isso é inédito. Nunca vi uma chama se acender com tanta força assim. Você deve ser bastante especial. -Ela sorriu gentilmente para mim. -Tenha seu tempo para pensar, não tenha pressa.

Eu apenas acenei levemente com a cabeça, ainda chocada com tantas informações novas, e saí com Shamelf, pensando em tudo o que havia visto.