Um lar para Ripley escrita por Sullie K


Capítulo 5
O caminho até Corinto


Notas iniciais do capítulo

PRIMEIRAMENTE PEÇO DESCULPA A TODOS OS LEITORES PELA PEQUENA DEMORA DE 5 MESES
Mesmo.
Prometo que vou tentar postar com mais regularidade daqui pra frente. O que aconteceu foi que os primeiros capítulos da fic estavam em processo de betagem (pela maravilhosa da Anne L, agradeço a ela eternamente), então eu também virei a editá-los com tudo o que foi alterado (nada do enredo em si foi alterado, mas eu cortei umas passagens, mudei outras... essas coisas).
E, agora, espero que gostem desse capítulo! Um abraço e boa leitura.
Ah, também queria compartilhar com vocês umas fanarts que eu fiz do Tom e do Peter, então, bem, aqui os links pra quem se interessar:
https://img04.deviantart.net/6f5f/i/2017/162/5/9/happy_pride_month____tom_and_peter_by_nacarocali-dbccwzf.png
https://nacarocali.deviantart.com/art/Tom-and-Peter-Smithley-Genderbend-676540665 (versão genderbender :p)
E, de bonus, uma fanart que fiz do Dickie:
https://orig14.deviantart.net/cbe1/f/2017/238/d/2/dickie_has_i_hate_opera_tattooed_on_his_forehead__by_nacarocali-dble7v5.png



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/715612/chapter/5

O clima não era nem ideal para a praia, e nem tão ruim a ponto de se trancarem no hotel. Foram até Monastiraki, à mesquita de Tzistarakis, e apenas passaram pela biblioteca de Adriano, que, por motivo qualquer, estava fechada a visitantes. Numa venda de rua, Peter comprou um anel de pedra branco à Marge, e, como estava precisando, um casaco de lã bege.

“Marge me odeia.” Suspirou Tom, andando com calma ao lado de Peter.

“É claro que não.”

“A última vez em que nos vimos, ela me deu um tapa. E disse que eu matei Dickie.”

“Bem, isso é um absurdo. Com certeza ela não estava pensando direito.” Franzia o cenho, vacilante. “Tom, Marge está muito abalada. Dickie era seu universo. Ela precisa de alguém para pôr a culpa, já te disse; não seja muito duro com ela.”

“A questão é que Marge não nota que estou abalado também.”

Tom recebeu um olhar de consolo e notou no outro um estranhamento genuíno, como se pensasse no quão absurda era a ideia de que ele pudesse ter matado Dickie, ou talvez em de que forma Marge teria chegado àquela conclusão. Caminharam mais ao centro, à praça Sintagma, de onde se via o parlamento grego e, olhando acima, o céu claro e azul. Sentaram-se num banco vizinho às árvores para descansar, conforme aflorava em Tom uma ânsia tardia de contar ao outro que não voltaria com ele para a Itália.

“Atenas tem sido ótima, mas sinto falta daquele caos de Veneza. É surpreendente”, disse Peter, um pouco lastimoso.

“Estive fazendo planos”, Tom comentou, ausente, focado em uma história grandiosa que criava em sua cabeça; algo que apelasse ao inglês.

“Planos... para hoje ou para depois?”

“Um pouco dos dois. Sabe, andei mesmo pensando na América.” Olhou para ele, que parecia tentar completar, em sua cabeça, os seus dizeres. “Talvez eu volte para lá.”

Um vento fresco os rodeou, passageiro como as folhas finas que levou consigo. Peter parou, em silêncio, refletindo

“Você quer dizer, definitivamente?”, questionou, preocupado.

“Não, só por algum tempo. Passei no porto antes de ontem, e me ofereceram um desconto numa passagem de amanhã à noite. Seria bom, porque o barco deve chegar em Veneza pouco antes do trem até Florença, e depois o voo”, continuou Tom.

“Tem certeza de que não quer voltar comigo à tarde? Você pode ficar na minha casa esperando pelo trem, se quiser. Não vejo problema.”

“Eu não devia mesmo desperdiçar esse desconto; ainda tenho tempo de trocar minhas passagens.” Insistiu na mentira. “Não acho que minha tia em Boston vá me ajudar financeiramente com essas coisas, e jamais pediria a você... ou ao pai de Dickie.”

 “Vou sentir sua falta.” Peter deu um curto sorriso, simpático. Virou-se a Tom, numa carência visível de segurar sua mão ou beijar-lhe o rosto. Engoliu em seco, como se já tristonho com a partida do amigo.

“Não sinta, só devo passar umas duas semanas por lá. Não sei. Não estou planejando ficar por muito tempo. Quem sabe quando tia Dottie me expulsar, eu volte para casa.”

Peter assentiu, sem muita discussão. Sentia-se contente por Tom, porém carregava um pesar pela antecipação da solidão, quando já se acostumara tanto com a presença dele. Convidou-o a retomar a caminhada, e voltaram a Kolonaki, bairro onde se situava o Antoniou. Consideraram subir o monte Licabeto, todavia, logo dispensaram a ideia, fosse por indisposição ou simples preguiça. Falou o pianista que, como não iriam à praia, gostaria de almoçar ao menos por perto desta, para sentir a brisa e o cheiro do mar, o que Tom achou uma boa sugestão, e rumaram à orla vazia pelo frio herdado do inverno.

Pela noite, após o jantar, Tom ajudou Peter a arrumar suas malas para o dia seguinte. O inglês comentou que achava engraçado que ambos houvessem ficado doentes durante a viagem, e Tom concordou, sem orgulho pelo que fizera com ele no navio. Peter pegou, da gaveta da mesa de cabeceira, um achatado embrulho cor de mármore, e contou ao amigo que se tratava de um presente que comprara no dia do ensaio. Compensação natalina, explicou.

Tom rasgou o papel, revelando, como esperava, um vinil. Atentou-se às letras pomposas em meio à capa bonita e enfeitada sem exageros: era Vivaldi; um conjunto que trazia as composições mais conhecidas do músico. Leu, atônito, a contracapa detalhada, sorrindo sincero.

“Vi ele numa loja no centro e me lembrei de você. Não tinha certeza se você gostava, mas...”

“É perfeito. Obrigado.” Tom inclinou-se para beijar os lábios de Peter, que sorriu, surpreso.

Tornou a admirar o vinil, conforme Peter dobrava uma camiseta. Sentiu uma pontada de culpa por não ter presente algum a dar ao pianista.

“Peter, me perdoe, acho que ainda estou te devendo algo pelo natal, também.” Admitiu, sem sequer imaginar o que o outro pudesse querer.

“Você não me deve nada além de alguns bons cartões postais quando chegar aos Estados Unidos, está bem?” Sorriu, tenro, antes de beijar Tom, como este antes fizera. Se sentia, diga-se de passagem, muito feliz. Voltou às malas, e seu amigo sentou-se na beirada da grande cama por onde seus pertences haviam sido espalhados, examinando o presente com uma meticulosidade vaga e curiosa, de um jeito que fazia Peter pensar que ele visse algo a mais dentro dos limites do vinil. Sempre tivera essa impressão sobre Tom; que ele via tudo de uma forma bastante singular. Não boa ou ruim, necessariamente.

Tom percebeu, ao seu lado, parecida com uma caixinha de música, a minúscula caixa de joias de Peter. Não mais era olhado pelo pianista que agora focava em dobrar um casaco. Pegou-a, entretanto, com a inocência de como se estivesse sendo até mesmo filmado. A tranca era simples, e cedeu em um toque apenas. Haviam três anéis sofisticados ali dentro — inclusive um que nunca vira Peter usar —; alcançou o prateado e estreito, o qual julgara o mais caro, pondo-o em seu dedo. Algo no objeto parecia-lhe familiar.

“O que você está fazendo?” Peter fitou-o, rindo ao notar Tom vestindo seu anel.

“Não é nada, me desculpe.” Guardou, rápido, a joia em seu devido lugar. “Estava só dando uma olhada.”

“Curioso.” Peter apontou à caixa de joias.

“O que é curioso?”

“Marge me contou uma vez que você gostava das coisas de Dickie. Dickie me deu esse anel; ele sempre nos dava presentes que poderia muito bem ter comprado para si próprio. Achei curioso ser justo esse o anel que chamou a sua atenção.” O inglês sorriu, dando de ombros e virando de costas de novo. Já Tom, engoliu em seco, alerta, e, pondo o vinil sobre a mesa de cabeceira, alcançou mais uma vez o anel prata e conseguiu um espaço para ele em seu bolso. Era um pouco maior do que pensara, porém Peter não sentiu falta do pequeno objeto nem naquela noite, nem na manhã seguinte.

Havia se despedido de Peter com um abraço apertado e um tapa no ombro. Lembrava-se de ter querido beijá-lo, ao ver uma jovem moça e seu namorado, os dois logo ali, ela aos prantos, o que fez Peter rir. Achava esse sentimento engraçado agora. Prometera ligar para o inglês no dia seguinte, assim que, supostamente, ambos houvessem chegado à Itália.

Tom sempre tivera um pouco de medo do mar, recordara-se quando estivera no porto. Talvez não fosse algo inato, mas adquirido com a morte de seus pais. Era muito pequeno na época, e sequer se lembrava, porém alguma coisa nele sabia que, com o barulho das ondas, deveria ter cuidado. Chegara a ter a súbita sensação de que cairia na água se chegasse perto demais desta, porém a paisagem concreta do Pireu o reconfortara; ao menos, estava apenas próximo do mar. E tinha Peter ali. Calmo, uma alma pacífica. Haviam caminhado de um lado ao outro, aguardando o barco, mas, enfim, estava só, e em terra firme.

Andou à praça do parlamento, pois, junto de seu amigo, fizera a checagem de saída do Antoniou. Ainda precisava comprar suas passagens para Corinto, e o mais rápido o possível; só Deus sabia o quão burocráticas as ferrovias gregas podiam ser. Pegou um ônibus até Colonus ali perto, e foi à estação ferroviária.

Com três mil dracmas comprou a passagem — o que não passava de dez dólares, mais ou menos — para um trem que sairia em uma hora. Sentou-se em um banco comprido, pegando, na pequena lojinha da estação, um exemplar grátis de algum tabloide italiano com uma chamativa imagem de Elvis Presley no canto da primeira página. Tom fingiu ler, pois, na verdade, estava bastante tenso. Imaginava que, quem sabe, essa fosse a chave de seu sucesso com os assassinatos até agora; preocupava-se demais. Sentiu desgosto de si próprio por ter pensado na expressão “sucesso com assassinatos”.

Refletiu sobre Meredith e esperou que ela estivesse feliz. “Que droga.” Matutou, como tinha plena noção do que fazia e da culpa que carregava. Não culpa porque mataria a garota, mas porque a levara a precisar ser morta, fosse qual fosse o sentido deste pensamento. Sobre suas ações, era arrependimento, e não culpa, o que sentia. Seria alguma influência de Peter sobre si?

Levantou-se para comprar, na mesma loja em que pegara o tabloide, um papel de carta e um envelope. Tirou uma caneta do bolso da camisa, limpou seus óculos, e, apoiando o papel sobre a mesa do caixa, pôs-se a escrever a Peter.

“03/03/1956

Querido amigo, cheguei ontem aos Estados Unidos e cheguei bem! Tive um problema na estação de trem de Veneza, mas, no fim, consegui pegar o segundo trem a Florença e depois o avião até aqui. Escrevo à mão, porque a máquina de escrever de minha tia não funciona. Estou em Lynn, que é uma cidade colada em Boston e é onde tia Dottie mora. Estávamos morrendo de saudades um do outro, e agora ela quer me levar à Nova Iorque para assistirmos a alguma peça de teatro. Não que eu esteja pondo muita fé nessa pequena viagem; titia Dottie está muito doente. Ela tem leucemia mielóide e está sempre cansada, desiste rápido das coisas que planeja. Não vai mais viver muito. Fiquei meio sem jeito de te falar sobre isso cara a cara.

Comprei para você um presente pelo natal (uma surpresa), e estou enviando algumas fotografias antigas que achei engraçadas. Penso em você todos os dias; sinto sua falta.

Do seu amigo Tom.”

Releu seus escritos e achou que não passava de uma grande baboseira, todavia, guardou a carta mesmo assim no bolso do paletó. Poderia adicionar alguma outra coisa mais tarde, ou dali a alguns dias, quando estivesse com a cabeça mais limpa e as ideias no lugar. Nunca chamara Dottie Ripley de tia, muito menos de titia, ou sequer se importara quando, juntos, haviam recebido a notícia de que ela estava com câncer. Recordava-se de uma ocasião em que Dottie o jogara para fora do carro em movimento, por um simples ataque de nervos relacionado a algo que Tom aprontara na escola. Tinha consigo, em sua carteira, uma foto sua e da tia, no dia de sua formatura da escola, e outra, maior, porém dobrada dentro de um rasgo no forro de sua mala, apenas sua de quando era criança. Mandaria uma delas, ou as duas, para Peter. Melhor, pensou, não mandaria nem elas, nem a carta; as guardaria consigo e as entregaria ao pianista quando voltasse à Veneza, alegando que as havia mandado e encontrara-as na caixa de correio de Peter, para que não cometesse o deslize de deixar o outro perceber que a carta fora enviada da Grécia. Algo assim.

Quando o trem chegou, Tom e mais alguns poucos passageiros gregos se acomodaram nas poltronas desconfortáveis e sem marcação, o que pareceu uma espécie de consolo para ele, que preferia sentar-se sem ninguém ao seu lado. Gostaria de conseguir relaxar, porém estava ansioso e dificilmente tão otimista quanto nos dias anteriores. Ao fechar os olhos, ouviu o riso de Meredith e, aturdido, desistiu de dormir, ainda que soubesse que a risada havia sido apenas coisa de sua imaginação.

A viagem fora mais veloz do que ele pensara, e em uma hora, o trem chegava a Corinto. Saiu o mais rápido o possível da estação, sentindo-se perdido e sozinho. Já era entardecer, e a luz cessava, veloz, conforme um vento frio fazia Tom ranger os dentes. Decidiu vestir seu casaco, que estava na mala trancada, e apalpou seus bolsos em busca da chave, sentindo, ao invés dela, alguma outra coisa. Pegou o objeto miúdo em sua mão; era o anel dado por Dickie, que roubara de Peter. Não se lembrava por que o havia pegado, no entanto, colocou-o com naturalidade tamanha que chegara a acreditar, por um segundo, que o anel era seu. Acabou esquecendo-se de pegar o casaco.

Não deu sorte, e os motoristas dos dois primeiros táxis que chamara falavam apenas grego. O do terceiro, entretanto, falava um bocado de italiano, e Tom pediu-o que o levasse ao hotel mais barato — tinha mais liras do que dracmas, e sabia que era improvável que alguma hospedaria aceitasse dinheiro da Itália. O motorista começou a listar lugares que Tom deveria ir visitar, dando ênfase ao canal de Corinto, que era, ele dizia, a melhor parte da cidade tão menos chamativa que Atenas, quase como um purgatório para o americano.

Levou Tom a um local chamado Albergue de Corinto, uma hospedaria colada a outras duas casas, numa rua remota com um curioso cheiro de mar. Todavia, antes que o motorista pudesse ir embora, Tom o perguntou, desta vez, qual era o hotel mais caro da cidade, o que o fez rir.

“Olha, não sei o que você quer, mas o mais caro por aqui deve ser...”, contestou, realmente refletindo sobre a resposta. “O Ioannidis. Com certeza é o Ioannidis.”

Tom agradeceu, indagando-se se era lá que Meredith e seus tios estariam hospedados. Torceu que assim fosse, pois, senão, gastaria ainda mais tempo em Corinto do que pensara, ou pior, perderia a garota de mira, e agonizaria pelo saber de que cada dia da sua vida poderia ser seu último de liberdade. Afastou isso de sua mente e suspirou, adentrando ao albergue, onde uma música alta de um rádio invadiu seus ouvidos. Respirou fundo, preparando-se para o que quer que fosse acontecer naqueles próximos dias. A recepcionista não falava italiano, como ele esperava, e tiveram de se comunicar por uma espécie de linguagem de sinais inventada por eles naquela instância. Ela o entregou um formulário, um pouco impaciente, onde Tom precisava escrever seu nome e onde o preço havia sido redigido. Pegou a caneta que ela o oferecia e assinou ali. Não como Thomas Ripley, mas como Herbert Richard Greenleaf.

Subiu um longo lance de escadas para chegar em seu quarto; minúsculo, com uma cama de solteiro e um gaveteiro estreito, onde, em cima, havia um cinzeiro e apenas isso. Repousou-se sobre o colchão acinzentado, notando que respirava de forma desregular e, talvez encorajado pelo cinzeiro, acendeu um cigarro e pôs-se a refletir, por fim percebendo o erro que acabara de cometer. Ele não era Dickie Greenleaf. Levantou-se, e já corria, descendo as escadarias, quando impediu-se num solavanco e caiu sentado num degrau. Não, não tinha muito que se pudesse fazer quanto à sua mais recente falha.  Mesmo se tivesse a coragem de dizer à recepcionista que escrevera seu nome errado, não saberia como comunicá-la isso. Oras, por que seu coração batia tão veloz? Por que razão ficara tão nervoso? Olhou ao redor, com medo de que alguém o observasse, e veio a ele a estranha sensação de que Peter ou o próprio Dickie pudessem estar ali, em especial este segundo, e previu também que talvez nunca deixasse de se sentir assim, por mais ilógico que fosse temer. Se viu acompanhado por um fantasma perturbado que cochichava, numa voz incerta ao seu ouvido, que nada de ruim haveria de acontecer a ele.

Titubeou de volta ao quarto, mirou seu anel. Suspirou.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada pela paciência!!