Bohémienne escrita por Ananda Ayira


Capítulo 2
Pour les gitans la route est longue


Notas iniciais do capítulo

Bom, não vou me desculpar pelo atraso porque só tem a Arrriba acompanhando! XD (Espero que seja por enquanto) porque estou prestes a engatar na história de verdade.
O Título desse capítulo significa "Para os ciganos a estrada é longa" é um verso da música "Bohémienne" (de onde tirei o nome pra história) do musical de "Notre-Dame de Paris. (link pra quem quiser ouvir/ver: https://www.youtube.com/watch?v=1Nfuv2vDu2I )
Espero que façam boa leitura! ♥



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Paris. Janeiro de 1499.

A música cigana repercutia na praça do adro da catedral de Notre-Dame de Paris. E os que paravam para ouvir a cantoria acompanhavam com palmas o ritmo estacado e alegre.

Num canto da praça, um tapete de trapo egípcio estendia-se pelo chão, montado para a apresentação cigana que se passava ali. Um rapaz tocava uma guitarra espanhola* de madeira gasta e clara enfeitada com arabescos e cordas esticadas.

Mais à frente, em cima do tapete, uma garota descalça de cachos fartos e castanhos a voar com seus rodopios, dançava e tocava um pandeiro. Ora tamborilava o instrumento, ora o batia contra os quadris, ou pés, ou os ombros pra fazê-lo ressoar enquanto dançava, embora, não tão alegremente. Ela vasculhava cada canto da praça com os olhos enquanto executava seus movimentos.

Ao fim de outra música a garota cigana depositou o pandeiro no chão, com o couro virado para baixo, tornando-o um recipiente onde os admirados depositavam moedas. E se virou para o rapaz.

— Onde está Luce?! – Indagou ela arfando de cansaço.

— Ela disse que ia com Malheur beber água no poço da rua de Saint-Martin. Por quê? – Rebateu a pergunta, o rapaz mais velho que tocara a guitarra espanhola.  

— Você a deixou ir sozinha?! Gahel! – Bradou-lhe a cigana.

— Mas ela não foi sozinha, Aimée. – Pronunciou-se o rapaz, sentando-se sobre um banquinho de três pernas que trouxera. – Ela está com o Malheur.

— Ah, claro, porque aquele gato é muito útil em situações de perigo.  – Ironizou a garota.

— Sabemos que nenhum dos ladrões a atacaria, todos a conhecem do Pátio. Nós da ralé ajudamos uns aos outros. – Tranquilizou o jovem cigano. – A pior das hipóteses é um parisiense sujo tentar se aproximar dela. E, nesse caso, Malheur pode miar por ajuda ou arranhar o engraçadinho.

— Isso não tem graça, Gahel. – Interrompeu Aimée.

— Aimée, ela sabe cuidar de si mesma. – Disse tocando a boêmia no ombro descoberto pela blusa. – Ela é uma cigana.

— Ás vezes eu esqueço. – Sussurrou Aimée. Falando mais consigo mesma do que com o rapaz.

— Recolha o pandeiro. Vamos começar de novo. – Disse Gahel dedilhando as cordas.

A boêmia se agachou para recolher o pandeiro, contando as moedas nas mãos antes de metê-las numa bolsa de pano que trazia escondida no peito.

— Parisienses mesquinhos. – Resmungou Aimée vendo as miseráveis esmolas.

— Toque uma lenta. Não vou conseguir acompanhar com o pandeiro. – Disse ela levantando-se, mostrando-lhe o pandeiro, cheio de cuspidas, e segurando-o com as pontas dos dedos.

Ela soltou o instrumento no pé do cigano. Os dois riram do instrumento escarrado. Quando virou-se, Aimée posou os olhos nas portas da enorme catedral de Notre-Dame e revirou os olhos bufando com o que viu.

Esgueirava-se pelo lado da catedral, debaixo do portal de pedra, uma figura curvada com um trapo grosseiro sobre a cabeça. Seguida no encalço por um animal pequeno e completamente negro.

A figura atravessou a praça do Adro aos passos pequenos e apressados, com o rosto encoberto e os olhos fixos no chão, passando pelos pés de cada um na praça até topar com os pés descalços e a barra da saia de Aimée.

— Uma esmola, pra uma mendiga? – Sorriu a garota debaixo do trapo.

Aimée terminou o verso, desconcertada. Pôs o pandeiro, novamente virado, à frente do tapete. Ia dirigir-se a Luce, mas foi interceptada por Gahel:

— Precisa parar com isso, cabeça de fogueira. Se Clopin souber, nenhum de nós quatro vai voltar a sair do Pátio dos Milagres por conta própria. – Disse Gahel, enquanto baixava a guitarra espanhola e gritava.

— Gahel, deixe ela comigo. – Disse Aimée empurrando-o. – Luce, – Repreendeu Aimée, puxando a amiga pelo braço para trás. – você precisa parar com isso. Entrar às escondidas em Notre-Dame, no que estava pensando, Luce?! E se fosse pega?! – Esbravejava a morena.

 

— Eu só gosto de estar lá, pra que tanto drama? – Contrapôs Luce tirando o trapo de cima dos cabelos ruivos e pegando o gato do chão para o seu colo.

— O drama Luce, - Disse Aimée puxando o tecido das mãos de Luce. – é que você se arrisca muito fazendo isso. É muito perigoso! Não posso nem pensar no que te aconteceria se lhe pegassem lá dentro. Ou pior, se Clopin descobre que você entra na catedral dia sim, dia não, correndo tanto risco assim!

— Eu, - Hesitou. – eu não sei ao certo, Aimée, mas parece que me sinto segura lá. É como se tivesse alguma coisa lá dentro que me lembra algo que eu não deveria ter esquecido. Eu entro lá e rezo para tentar lembrar o que é.... – Disse Luce fitando os olhos verde-mar de Aimée.

— Notre-Dame ouve suas orações, mesmo fora da catedral, Luce. Há pessoas lá dentro que querem fazer mal a pessoas como nós. Disso você se lembra? – Falou Aimée impedindo Luce de afastar-se.

— Ás vezes se é da religião do templo mais próximo, Aimée. Notre-Dame fica longe do Pátio dos Milagres. Mas, por algum motivo, não fica longe do meu coração.

Aimée não tinha respostas para aquilo e desconversou:

— Não ligue para o que o Gahel disse antes. – Aimée tentou remendar as palavras rudes.

— Você só o defende porque vocês dois estão apaixonados. – Completou Luce.

— Não estamos, não. – Negou dando-lhe um tapa no braço enquanto seu rosto corado e sorriso diziam o contrário. – E só por causa desse comentário, agora você que vai dançar.

Então apenas, tirou o gato dos braços de Luce e empurrou-a para frente enquanto pôs o animal no chão, apanhou o pandeiro do chão e começou a bater no instrumento. Logo em seguida, os dois ciganos pegaram novamente nos instrumentos e decidiram uma melodia.

Luce revirou os olhos, mas sorriu e levantou a saia até os tornozelos, bateu os pés no chão ritmo das batidas. O gato, Malheur, passou entre seus pés sem se importar nos movimentos da garota para ir deitar-se do outro lado. Ela riu, em seguida, soltou a saia e avançou com os braços arqueados ao lado do corpo e repetiu as batidas com o quadril, fazendo farfalhar a saia e o lenço com franjas que pendia de transversal amarrado em sua cintura. Moveu os braços pelo ar, deu um pulo e parou de costas com os pés separados e braços esticados.

Olhou por cima do ombro as pessoas começarem juntar-se. Sorriu. Então sentiu enquanto se apresentava um olhar forte e carregado, não sabia certo do que, se incidir sobre ela. E não era a primeira vez durante todos aqueles dias em que percorreram as ruas da Ilê de La Cité apresentando-se.

Parou os olhos sobre uma figura. A qual não tinha rosto. Talvez tivesse, mas o tinha completamente oculto sob um manto escuro. Algo lhe dizia que a sensação que tivera em todas as vezes que se apresentara enquanto passava pelas ruas Paris. Tinha a ver com o que, ou quem, quer que fosse que estava debaixo daquele manto.

Decidiu, ignorar aquela sensação mais uma vez. E começou a declinar-se para trás enquanto erguia as mãos girando os pulsos e floreando com os dedos. Dando a vista o decote da blusa, outrora branca, debaixo do corpete apertado.

Depois voltou a seu eixo e girou balançando a saia. E girou mais uma vez com os braços acima da cabeça, fazendo voar os cabelos como labaredas.

Todos começaram a acompanhar o ritmo das batidas com palmas. Como que para entusiasmá-la a continuar a dançar. E, assim, continuou até o fim da música quando Luce terminou encarando sua plateia e sorrindo enquanto ouvia alguns tímidos aplausos entre os maldizeres ou, por vezes, elogios que não eram bem elogios de tão nojentos.

Mas quando Aimée estendeu o pandeiro para recolher os trocados, os jovens abriram sorrisos enquanto percebiam que haviam mais moedas que escarradas.

— Quem estraga tudo mesmo, Gahel? – Pigarreou Luce erguendo a cabeça.

— Trés bien. Se redimiu. – Riu o rapaz.

— Se redimiu? Ela vai pagar o prato de todo mundo hoje! – Exclamou Aimée ao voltar com o saco de moedas gordo e tilintando sobre a palma da mão. – Vamos logo, peguem as coisas, o pano, os instrumentos. Eu estou morta de fome.

Em alguns instantes os poucos pertences que carregavam já estava dentro das sacolas de trapos improvisadas. Luce pegou Malheur, adormecido no chão, em seus braços. E os três iam andando para fora da Praça do Adro da catedral.

Enquanto andavam, tentavam conversar sobre qualquer coisa que tivessem visto na Praça durante o dia. Para distraírem-se dos verdadeiros sons de Paris. Aqueles sons que eram abafados pelos sinos dos campanários, principalmente o de Notre-Dame, e criavam a ilusão da cidade onde cada alma era pura como aquele soar dos sinos. Sem o retumbar das damas de ferro, os verdadeiros sons da cidade eram perversos e sujos.

Quando finalmente chegaram ao estabelecimento, o mais iluminado da rua, desde o lado de fora sentia-se o calor e do lado de dentro a mistura de cheiro de corpos, com o do vinho e da carne era extremamente forte.

Gahel pôs-se a frente das duas garotas e em posição de defesa. Embora La Pomme D’Eve tivesse bons vinhos e comida, não era exatamente um lugar para deixar mulheres, principalmente jovens como Luce e Aimée, desprotegidas. Encontraram um mesa vazia num canto e sentaram-se.

Aimée, abriu o saco de moedas discretamente sobre o colo e retirou as moedas e as entregou a Luce que pôs o gato sobre a cadeira que ficara vazia.

— Compre tudo o que puder e dividimos tudo. – Disse. E ela acenou com a cabeça.

Enquanto caminhava entre as mesas de madeira velha, todas ocupadas, e os grupos de pessoas, algumas já alteradas de vinho, gritavam, xingavam e urravam a todo momento, Luce corria os olhos por toda a sala da taverna.

Havia mesas em que alguns homens jogavam jogos de sorte, mesas em que mulheres vinham atirar-se no colo de homens, ou curvavam-se para mostrar os seios. E todas essas cenas tinham cheiro forte de vinho velho e queimado sob as luzes de velas que espalhadas a cada sete palmos umas das outras conseguiam iluminar suficientemente a sala.

Mas não iluminavam um rosto oculto sob um manto escuro. Novamente. Poucas mesas à frente, bem diante de seus olhos, estava aquela criatura encapuzada. E Luce sentia seu olhar crepitante sobre ela, despertando-lhe arrepios de medo.

Luce caminhou entre as pessoas com os olhos fixos na criatura encapuzada. Certa de que, independente do que fosse aquela criatura, tinha os olhos fixos nela também. Decidida a desmascarar e encara quem lhe perturbava. Luce não enxergava nada a seu redor a não ser a criatura encapuzada e esbarrou abruptamente na mão de um homem.

— Onde que a rapariga pensa que vai assim, sozinha? – Perguntou em um tom de voz alterado.

— Apenas indo pegar-me uma caneca de vinho, a qual irei pagar com meu dinheiro. Muito obrigada, mon seigneur. – Luce respondeu deixando clara sua intenção de evitar qualquer coisa que viesse de um homem daquele lugar.

— Ah, e muito certo que uma cigana como você tenha dinheiro parisiense. – Disse o homem, pegando o pulso de Luce e apertando com muita força. – Sua vadiazinha, eu vi você dançando hoje mais cedo. Você ergueu um pouco sua saia... – Ele mudou o tom, embora ainda soasse embriagado, agora sua voz e seus olhos estavam cheios de malícia. Luce tentou empurrá-lo com a outra mão, sem sucesso. – me deixou curioso pelo resto.

Quando ele tentou descer as mãos sujas e rudes pelas costas de Luce que contorceu o rosto de nojo. As mãos morenas e calejadas de Gahel a puxaram. Quanto Aimée parou de sorrir, conseguiu perceber a ausência de Luce e a viu andar completamente distraída entre as mesas e esbarrar no homem. E correu até ela, puxando Aimée logo atrás.

 - Fique longe dela! – Berrou Gahel puxando Luce com tanta força que o homem soltou o pulso da garota sem ao menos perceber.

— Ou o que? Você é apenas um moleque. Você não é um homem. E muito menos deveria existir. Nenhum de vocês vermes sujos, ciganos, deveriam. – Insultou o homem.

Os olhos castanhos de Gahel se inflamaram, ele cerrou os punhos com força e rugiu quando infligiu um soco do lado direito do rosto do homem que cambaleou e caiu em cima de uma das mesas.

Aimée gritou e empurrou a si mesma e a Luce para trás quando os respingos das canecas de vinho voaram. Quando o homem se ergueu de pois de se apoiar na mesa em que esbarrara, ele cortara a sobrancelha na madeira da mesa. E tinha mais raiva em seus olhos quanto havia força em seu corpo pronta para livrar Paris de quatro indesejados párias ciganos.

E desferiu um golpe contra o cigano. Cortando com a força de sua mão o canto de sua boca. Gahel foi amparado por Aimée antes de cair ao chão. Aimée deu um grito agudo e assustado e Luce segurou-a de ir até ele e acabar entrando no meio da briga.

 Quando Gahel se reergueu, Luce puxou Aimée de trás do amigo e, enquanto Gahel só pensava em continuar aquela briga sem sentido, sussurrou para o garoto:

— Aquelas bombas de fumaça que você pegou de Clopin. Estão dentro da sacola não estão? – Perguntou. Aimée nem se lembrou de que Luce não deveria saber que tinha pego essas coisas na cabana de Clopin, apenas acenou com a cabeça.

— Eu vou estourá-las, e você e Gahel vão dar o fora desse lugar. Nos encontramos lá fora. – Disse rapidamente e já virando-se com Aimée para voltar à mesa e pegar os pertences dos amigos e retirar as bombas de dentro da sacola de retalho.

O homem desviou de receber outro golpe do rapaz, e deu-lhe um soco nos joelhos que jogou-o no chão. Levando logo em seguida, chutes na barriga, que por muito pouco não foram errados para o rosto do rapaz.

Assim que voltaram para perto da briga, Luce tinha em sua mão uma das bolinhas de pano, e Malheur sobre seu braço esquerdo e metade dos pertences dos três, e Aimée, carregando a outra metade, se aproximou de Gahel, sem intervir nos golpes que ele levava. Luce atirou, com força, a bomba no chão e um nevoeiro roxo apareceu no meio da movimentação.

O homem, sem entender de onde surgira a névoa, afastou-se do cigano. E Aimée levantou Gahel e guiou até a porta. Luce correu para fora da taverna, assim que a bomba relou o chão.

Quando os três já estavam do lado de fora da taverna, ouviam os gritos de acusações e palavras de ordem contra a “bruxaria cigana” que entrara naquele lugar. Os três se entreolharam, sabiam que teriam que esperar muitos meses para os parisienses que estavam na taverna se esquecerem completamente deles. E não precisavam nem dizer, juraram entre os olhares, não comentarem sobre o que acontecera no Pátio dos Milagres.

— Você está bem?! – Perguntou Aimée, aflita.

— Vou ficar. Ele estava tão bêbado que errou a maioria dos chutes. – O rapaz tentou rir, mas logo se arrependeu.

Aimée passou-lhe o braço por seu pescoço, fazendo-se de apoio para ele.

— Obrigado. – Agradeceu-lhe. – Vamos voltar para o Pátio dos Milagres.

Aimée deu os primeiros passos na direção que iam tomar, com Gahel apoiado em seus ombros. Luce seguiu logo atrás com todos os pertences dos três, completamente calada. Sentindo-se culpada, acariciando o pelo negro do animal para distrair-se. Se tivesse prestado a tenção em apenas ir pegar comida, ao invés de se deixar hipnotizar por aquela criatura encapuzada novamente, Gahel não teria apanhado. E eles teriam conseguido comer.

Tomaram o rumo das ruas escuras, pouco vigiadas e cheias de mendigos e homens que chagavam a matar com o olhar. E mantinham o olhar baixo, nenhum quis falar. Nem mesmo para mascarar os sons brutais daquelas ruas.

Conforme adentravam naquele labirinto de chão de pedra e o vento mais ameno da noite começava a soprar. O caminho ficava a cada instante mais complicado para despistar quem tentasse seguir os párias e mais repleto de aleijados, cegos e mendigos nos cantos das casas.

O que significava que se aproximavam do covil de párias, o refúgio dos estrangeiros e paraíso dos sem-salvação.


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Notas finais do capítulo

*instrumento medieval que parece um protótipo de violão, só que mais estreito e com oito cordas.
Soooo... Reviews? Anyone?... I'm waiting...
Estou de férias, então provavelmente eu vou escrever mais. Espero poder chegar pelo menos no meio da história antes de voltar às aulas (tô enganando alguém?) Mas vou pelo menos tentar HAHAHAHAH
Um beijo de Fini pra quem comentar!



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