A casa de Shae não era nem de longe parecida com a casa de Eve. Sua antiga moradia, antes do templo, possuía enormes jardins, grandes janelas, cômodos amplos e aconchegantes, sempre havia criados andando pelos corredores ocupados com seus afazeres. Essa, pelo contrário, era pequena e fria, com suas paredes de pedra e mobília de madeira gasta. Possuia um ar vázio e solitário num quintal afastado dos outros vizinhos.  Não parecia um lar feliz, mas aos olhos dos outros a casa de Eve sempre parecera um lar feliz, isso não tinha impedido sua mãe de abandona-la.

— Aquele é o quarto de minha mãe. — Shae apontou para uma porta fechada. — E esse é o meu, você vai dormir comigo.

— Tudo bem — ela concordou, não tinha escolha, era isso ou dormir na rua.

Cobertores foram colocados para ela no chão formando um montinho para que pudesse dormir de forma mais ou menos confortável.

Eve não fazia a menor ideia do porquê de aquela estranha a estar ajudando, estava esperando até que ela pedisse algo em troca, as pessoas nunca faziam algo apenas por serem boas.

Ainda assim tinha que admitir que havia sido uma baita sorte ter salvo o namorado dela, geralmente Eve não conseguia mudar suas visões, elas aconteciam de uma forma ou de outra. Talvez amanhã Ely caísse na água, ela temia isso, evitar um acontecimento que já havia sido previsto só fazia com que sua intensidade aumentasse ainda mais, dessa vez, se ele caísse, poderia se machucar de verdade. Ela não sabia por que o tinha salvo, havia sido um simples impulso, algo dizendo que ela deveria fazer aquilo.

 — Você realmente pode prever o futuro? Não era mentira? — Shae apareceu de repente trazendo um copo de leite para cada uma.

— Eu preferiria que fosse mentira, mas não é.

— Você pode prever meu futuro então? — Ela parecia ansiosa.

— Não é assim que funciona, eu não escolho quando vou ter visões. Elas simplesmente aparecem para mim — ela respondeu e em seguida tomou um gole de leite, estava sendo o mais honesta possível em respeito a garota ter se oferecido para lhe dar abrigo, mas tinha medo do caminho que essa conversa levaria.

Assim que a garota aparecera do lado de Ely, Eve a reconhecera. Era a garota de suas visões. Inicialmente não tivera tanta certeza, sabia que a tinha encarado mais do que deveria, mas tinha que confirmar aquilo.

Depois de ver tantas vezes sua cabeça rolando pelo chão em sua direção e agora observa-la de verdade, não tinha dúvidas. Shae era a garota que sempre se sentava no trono e que sempre acabava morta.

Ela já tinha tido tantas vezes essa visão, por tantos anos que as vezes se perguntava se era realmente verdadeira, mas agora entendia: elas estavam destinadas a se conhecerem, as visões haviam ficado mais vividas nos últimos tempos, provavelmente porque estava chegando a hora em que elas se encontrariam.

Agora Eve tentava entender o que o encontro delas significava e começava a pensar se ela estaria presente na morte de Shae e quais acontecimentos levariam a isso.

— É um dom inútil então. — Ela terminou o copo de leite e o deixou no chão, Eve fez o mesmo.

Refletiu por um momento, um dom?

— Eu diria que é mais uma maldição. E sim, é quase completamente inútil, serve apenas para me assombrar.

— Eu acho que eu faria um bom uso disso, na verdade provavelmente me ajudaria muito. — A garota de cabelos escuros se ajeitou na cama. — Vou ser sincera, não gostei muito de você quando te conheci, o modo como me encarou me perturbou. Mas talvez você não seja tão ruim assim, quem sabe pode até me ajudar. Boa noite.

O coração de Eve deu um salto, ela tinha percebido seus olhares, esperava apenas que ela não percebesse que tinha algo errado. Não sabia se devia contar a ela ou não sobre sua morte, a julgar por sua aparência na visão não demoraria muito tempo, no máximo uns dois anos, mas podia muito bem acontecer no dia seguinte.

Ela precisava pensar muito bem no que fazer, não era uma boa ideia contar para alguém seu futuro, se ela não tivesse salvado Ely ela não conheceria Shae e não estaria nessa situação agora, apesar de desconfiar que as duas se conheceriam do uma forma ou de outra.

Mas Shae tinha um namorado e a mãe, parecia triste não deixar que ela se despedisse dos dois. Poderia pensar nisso depois, decidiu perguntar o que a garota queria dizer com “quem sabe pode até me ajudar”, mas antes que pudesse abrir a boca para falar algo percebeu que a outra já estava dormindo.

— Boa noite — sussurrou para ninguém.