Eve mal conseguiu abrir os olhos diante do Sol à sua frente. Se sentou, com as mãos apoiadas na grama. Onde estava? Seria outra visão?

Não, ao seu lado, encostada numa árvore estava uma mulher usando um vestido azul, ela desmanchava uma coroa de flores turquesa e deixava que as pétalas fossem carregadas pela brisa.

— Cersey? — Eve perguntou, receosa.

— Fico feliz que esteja me reconhecendo.

— O que estou fazendo aqui? — Esfregou os olhos.

A deusa se sentou ao seu lado.

— Eu disse que você não deveria interferir em suas visões, o que está tentando fazer com Daan?

— Não é justo que ele morra, não tão cedo, não dessa forma. — Eve balançou a cabeça enquanto abraçava os próprios joelhos.

— Já tivemos essa conversa sobre o que é e o que não é justo.

— Sim. — Ela voltou a encarar a deusa com os olhos cheios de lágrimas. — Por que eu? Por que sou obrigada a ver isso, a morte das pessoas? Ainda mais de pessoas próximas a mim.

— Acho que não sou a pessoa mais adequada para responder isso.

Ela soltou um riso nervoso.

— Você nem sequer é uma pessoa.

As sobrancelhas da deusa se juntaram, ela não pareceu ter gostado da afirmação.

— Como Shae está?

— Melhorando.

Cersey concordou com a cabeça.

— Logo ela estará completamente recuperada, não se preocupe com isso. Eu disse que não deveriam usar tanto essa espada. Você precisa ouvir meus conselhos, eu sei o que digo.

— Tudo bem. — Eve parou de encara-la. — Para que veio aqui hoje?

— Eu? Nenhum motivo, mas chamei minha irmã para ajudá-la, ela é a melhor guerreira que já existiu nos quatro reinos, tem muito o que ensinar para você e você precisará aprender se quiser guiar Shae até o castelo.

Eve não entendeu muito bem aquilo, mas assentiu. A deusa se despediu e começou a se afastar, sua imagem ficando cada vez mais clara.

— Cersey? — Eve chamou, a deusa a se virou para encara-la. — Você disse que eu deveria seguir seus conselhos, mas havia me avisado para não confiar em ninguém, se eu não tivesse feito isso não conheceria Daan, tudo estaria pior, talvez eu nem estivesse viva.

A deusa concordou com a cabeça.

— Você está certa, mas ouça mais um conselho meu: Assim como um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, a sorte não sorri duas vezes para a mesma pessoa.

E com isso, Cersey deixou Eve plantada no meio do enorme campo. Logo outra imagem tremeluziu ao seu lado, uma mulher alta e esguia apareceu, retirando um elmo em forma de águia e balançando os cabelos escuros que não passavam dos ombros.

— Cerlys?

A mulher a encarou, os olhos tremulavam, mudando de cor. Se alternando entre o azul e o vermelho.

— Você deve ser Eve. — Ela possuía uma postura rígida.

— Isso.

— Minha irmã disse que você quase morreu porque não sabia manejar uma espada. Eu não entendo o interesse dela em você e isso pouco me importa, mas ela me pediu um favor e eu pretendo fazê-lo. Não pense que te transformarei numa guerreira, você está muito longe disso. — Ela lançou um olhar avaliativo em Eve, olhando a garota da cabeça aos pés, esta sentiu um calafrio. — Mas vou fazer com que saiba o bastante para aguentar alguns minutos de luta, o suficiente para que alguém te salve.

Aguentar uns minutos de luta? Esperar ser salva? Aprender algo apenas para isso era inútil, mas ela tinha que admitir, precisava muito saber como se defender. Não fazia a menor ideia de como chegaria aos aposentos do rei Tobias se Cersey não tivesse aparecido com aquela ideia, ainda assim tinha um pé atrás com aquela história, por que a deusa tinha decidido fazer aquilo?

Cerlys mexeu sua mão e duas espadas se materializaram em sua frente, ela pegou a maior e esperou enquanto Eve segurava a outra.

— Preste atenção em cada palavra que eu disser, eu não pretendo repetir.

Eve assentiu e esperou as instruções. No começo, enquanto apenas ouvia o que Cerlys dizia, ela achou que parecia simples. Precisava se proteger e acertar alguns golpes, apenas isso. Mas quando finalmente partiram para a ação ela quase começou a chorar como uma criança e desistiu.

Cerlys avançava e recuava com os movimentos mais rápidos que ela já vira. Eve mal conseguia segurar sua espada sem deixa-la cair e fazia o máximo que conseguia para parar os golpes da deusa, mas cada vez ficava mais difícil. A ruiva já tinha uma coleção de cortes no corpo, que ela suspeitava que doeriam ainda mais quando ela parasse de treinar, enquanto isso não tinha conseguido nem tocar em Cerlys.

A mulher pressionou mais a espada da direção de Eve, derrubando-a no chão. Ela se lembrou instantaneamente da luta contra Erickson, não tinha conseguido vencê-lo naquela ocasião e não venceria a deusa agora.

Depois de encenar que havia enterrado a espada no coração de Eve, dizendo mais uma vez que ela tinha morrido, Cerlys se ergueu e a ajudou a se levantar.

— Se esforce mais, você não está prestando atenção. Sua mente está em outro lugar.

Ela estava certa, Eve pensava cada vez mais em como ela estava se saindo mal no treinamento e como isso prejudicaria Shae. A garota morena tinha uma espada mágica, mas o que Eve poderia oferecer? Ela sabia que suas visões não estavam ajudando em nada. A deusa segurou o rosto de Eve, obrigando-a a encara-la.

— Limpe sua mente. Se você conseguir acertar um único golpe em mim, pode ter uma chance de sobreviver contra qualquer um dos Quatro Reinos. Olhe bem nos meus olhos. — Seus dedos pressionaram mais a pele de Eve.  — Se quer ajudar a garota que você ama, tem que me derrotar.

Por um momento, Eve ficou mais aturdida do que já estava. Como Cerlys sabia disso? Mas era obvio que ela sabia, Cerlys era uma deusa, mais que isso: era a deusa do passado. Sabia tudo o que já havia acontecido.

— Você pode mudar o passado? — Não conseguiu se controlar e, como consequência disso, teve a lâmina enfiada em um de seus braços.

— Eu. Disse. Para. Prestar. Atenção. — Os olhos da deusa fumegaram de ódio, perdendo totalmente a coloração azul.

Eve tentou um ataque, mas foi bloqueada pela lâmina de Cerlys. Ela achava que jamais conseguiria acertá-la, a quanto tempo estavam ali? Pareciam horas.

— Arrume sua postura.

Shae estaria bem? Será que sua febre já estaria baixando a essa hora?

— Segure essa espada direito.

Quanto tempo ela tinha até que Daan morresse? E até que Shae morresse?

— Sua guarda está muito aberta, assim eu posso te acertar facilmente.

Eve estava se esforçando o suficiente para atingir o objetivo de Shae? Suspeitava que não, ela precisava melhorar, começando por aquele duelo. Cerrou os olhos, uma onda de fúria tomou conta dela e, pela primeira vez, desviou de um golpe de Cerlys, com um giro ela fugiu de sua lâmina e abaixou a própria na direção do braço da mulher. Por um momento, achou que nada havia acontecido, mas então viu um filete de sangue escorrendo pela pele da deusa. Não era uma ferida grande e muito menos profunda, era apenas um corte superficial, mas o suficiente para que Eve sentisse orgulho.

— Muito bem. — Eve achou que Cerlys sorriria, mas ela continuou com a expressão dura de sempre. — Não posso dizer que estou orgulhosa, mas você atingiu o objetivo. Ainda que tenha sido muito ruim, não, na verdade, você foi péssima. Nem Cersey, que por algum motivo gosta tanto de você, poderia dizer que estou errada. Você deve estar cansada, acorde e vá tomar um banho, logo vocês devem chegar ao Primeiro Reino.

Eve agradeceu e quando percebeu estava abrindo seus olhos em seu quarto. Por um momento perguntou se aquilo havia mesmo acontecido e se um treinamento em seus sonhos surtiria algum efeito na vida real, mas quando se levantou sentiu seu corpo todo dolorido, como se tivesse passado o dia se exercitando.

Tentando não reclamar das dores, ela se dirigiu a antiga espada de Stev, que estava jogada num dos cantos do quarto. Ela não estava mais manchada com o sangue de Erickson, mas sempre que olhava para ela Eve conseguia ver as manchas que permaneceram por dias antes que ela tivesse coragem de limpar. Estranhamente, a espada se ajeitou melhor à sua mão. De alguma forma ela sabia o que fazer com o objeto e arriscou alguns golpes contra o ar, não estava tão ruim assim. O treinamento de Cerlys havia surtido algum efeito, mesmo que pouco.

Sempre tivera dúvidas do que aconteceria caso ela e Shae fossem interceptadas no meio do castelo, sabia que a Invocadora de Almas nem sempre poderia protegê-las. Sempre se imaginava sendo capturada e arrastada para masmorras escuras, agora sentia a confiança suficiente para lutar contra isso. De alguma forma sentia que Cerlys a abençoaria em suas batalhas, apesar de parecer que a deusa não gostava dela. Sabia que Cersey também estava ao seu lado, por que outro motivo mandaria a sua irmã para ajuda-la?

Ela se sentiu confortável segurando a espada que um dia fora de Stev, apesar de ele as ter traído. Era uma pena que ele tivesse morrido antes que ela pudesse perguntar qual era o nome da espada. No fundo, isso não importava, não muito. A única coisa que precisava saber a respeito da arma é que um dia ela salvaria sua vida, Eve sentia isso.

— Agora podemos conseguir, Shae. — Ela sorriu para o objeto brilhante em suas mãos.