O que não mata... escrita por Nani


Capítulo 2
Para onde?




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Eu parei no posto de gasolina no final da rua para descansar. Milagrosamente, estava vazio. Entrei na loja de conveniência devagar, olhando atrás das estantes e do caixa. Não havia mesmo ninguém. Empurrei uma das estantes contra a porta de vidro e sentei no chão, apoiando as costas do outro lado, fora de vista, pois não queria arriscar atrair zumbis. Encostei a testa nos joelhos tentando pensar.

Agora que a adrenalina se fora, eu me tornara consciente dos danos sofridos durante a minha descida. As minhas costas e os braços doíam muito, mas era o meu tornozelo que me preocupava realmente. Eu havia caído com tanta força do primeiro andar que ele estava inchado e muito dolorido. Tomara que não tenha quebrado pensei com medo, mas não. Apesar da dor, conseguia mexer meu pé.

Aliviada, eu levantei a mão e toquei meus lábios de leve. Estavam muito inchados. Meus dentes da frente doíam horrivelmente, mas pelo menos permaneciam inteiros. Quando tirei a mão, percebi sangue. Eu deveria ao menos desinfetar aquilo. A prioridade, porém, era encontrar uma arma. Olhei ao redor, mas nada ali parecia útil. Havia muitos salgadinhos, bebidas, cigarros… se ao menos eu encontrasse um bastão ou coisa do tipo…

Deixei escapar um suspiro. Resolvi aproveitar um pouco a segurança do lugar, daí rastejei até um freezer e peguei um saco de gelo. Em seguida fui até uma das geladeiras da loja e peguei uma garrafa de água. Me arrastei de volta à estante e coloquei o gelo em cima do tornozelo inchado. Doeu muito, mas tive de aguentar. E, enquanto tentava decidir meu destino, tomei um pouco d’água.

Minha mãe e irmã moravam em um flat não tão longe dali. Desejei vê-las, mas tive medo do que encontraria. Me debati com isso por um tempo, mas tive que encarar os fatos: eu não tinha para onde ir.

Se era para ir, o quanto antes melhor. Levantei, peguei um sacola plástica e coloquei duas garrafas de whisky das que pareciam mais resistentes. Depois abri uma garrafa de vodca e derramei uma boa parte do líquido no meu lábio superior. Peguei outra garrafa de água, fui até a estante que bloqueava a porta e a tirei do caminho. 

Sair da loja me trouxe uma sensação de insegurança. Me senti terrivelmente exposta andando debaixo do sol quente, no meio da rua. No caminho, pessoas corriam em todas as direções. Algumas gritavam perguntas para mim, outras gritavam avisos e acenavam. Ignorei todas e continuei andando. Eu me sentia em uma espécie de transe. À medida que avançava, uma estranha calma tomava conta de mim e meu senso de propósito se intensificou: precisava chegar à casa da minha mãe.

Enfim, cheguei ao flat. Tentei avaliar como as coisas estariam lá dentro, mas já imaginava um caos – o lugar tinha mais de 170 apartamentos. Apesar de ter um mau pressentimento, eu tinha que entrar.

O cenário na recepção era o pior possível. Havia vários corpos espalhados pelo saguão, e zumbis se agrupavam em cima destes, devorando-os. Para minha sorte, os bichos pareciam entretidos demais para me notarem. Resolvi usar as escadas ao invés dos elevadores. Me esgueirei pelo saguão até a entrada de serviço. Abri a porta que dava para as escadas e dei uma olhada. Parecia razoavelmente seguro subir, e foi o que eu fiz.

Conforme ia subindo, chegavam aos meu ouvidos fragmentos de gritos, súplicas e gemidos dos andares superiores. No segundo lance de escadas, me deparei com um zumbi que vinha descendo. Ao me ver, ele imediatamente começou a gemer, estendendo os braços e descendo mais rápido em minha direção. Meu coração parou por um segundo com o susto, mas o medo não me paralisou dessa vez. Tomei impulso e corri escada acima, passando por aquelas mãos mortas no último segundo e, enquanto ele gemia em protesto, continuei a subir a toda.

Enfim, vi a porta de acesso ao quinto andar aberta. Sorri aliviada mas, nesse instante, uma das coisas saiu por ela. Para meu espanto, reconheci um dos vizinhos da minha mãe, um senhor muito simpático que sempre me cumprimentava nos elevadores. Ele veio em minha direção, os olhos opacos, a boa aberta deixando escapar um gemido agourento. Amaldiçoando a minha sorte, me preparei para mais uma corrida. Desta vez eu não consegui correr rápido o suficiente: minhas pernas estavam sem forças e, ao passar pelo zumbi, senti algo me agarrar com força.

Num impulso, girei a sacola com as garrafas de whisky com toda a força na direção dele, acertando sua cabeça e fazendo-o rolar escada abaixo. Por um instante parei, admirada. Nunca pensei ser capaz de uma coisa assim. Fiquei mais uns segundos olhando o zumbi, mas ele não se mexeu. Com sorte eu quebrei a espinha, pensei. Depois lembrei que não tinha muito tempo, logo o primeiro zumbi de que desviei me alcançaria, e quem sabe se outros não o seguiriam?

Adentrei o corredor que dava para os apartamentos, olhando para os dois lados. Não havia ninguém. No fim do corredor estava o carrinho da camareira. Corri até lá. A porta do apartamento estava semi aberta, e por ela se viam dois pés com sapatos pretos e meias brancas. Forçando-me a não olhar, voltei a atenção para o carrinho, procurando a chave mestra. Achei o cartão-chave embaixo de uma prancheta de madeira. Voltei correndo com a chave, parei na porta do 502 e abri.

Quando entrei, senti o cheiro ruim que sentira no quarto do meu pai. Já começava a me desesperar, pensando se valeria a pena ou não checar quando ouvi um barulho vindo do quarto da minha mãe – parecia um choro. Corri para lá e vi que minha mãe, que aparentemente virara um daqueles monstros, estava sobre a minha irmã, que soluçava.

Minha mãe gemia e tentava abocanhar o rosto da minha irmã, a saliva escorrendo de sua boa escancarada enquanto ela gemia e forçava seu caminho até a carne macia e - graças a deus - rosada da minha irmã. Esta, por sua vez, chorava e resistia, usando o antebraço para barrar o avanço da minha mãe.

Sem pensar duas vezes, segurei firme a sacola em minhas mãos e girei na direção da cabeça do que um dia fora minha mãe. Dessa vez, uma das garrafas estourou e derramou whisky por toda a parte. Minha ex-mãe-zumbi foi atirada para o lado com a força do golpe.

— Nani! – gritou minha irmã, surpresa.

Em seguida, ela me abraçou, soluçando, e escorregou para chão, como se tivesse perdido as forças.

— O que está acontecendo? – Ela perguntou. – O que aconteceu com a minha mãe?

— Iza, temos que ir agora – disse, puxando-a do chão.

— Ir pra onde? Pra onde a gente vai? – Ela perguntou, recusando-se a se deixar levantar.

— Iza, por favor, anda! – Gritei desesperada. Pelo canto do olho, vi que a minha mãe já estava se levantando. – Iza, por favor! – Eu implorei em lágrimas. – Você é a única que sobrou.

— A única que sobrou? – ela estava muito assustada.

Consegui levantá-la e a empurrei para fora do quarto. Peguei a chave e tranquei a porta por fora.

— O que você está fazendo? Mainha está aí dentro – ela gritou.

— Iza, essa aí dentro não é mais a nossa mãe. Você sabe disso, não sabe? – Tentei ficar o mais calma possível, mas minha voz ainda tremia.

— O que você está falando? É nossa mãe sim, nossa mãe está aí e você a trancou! Abra a porta!

Ela estava estava histérica, então eu a agarrei pelos ombros, a sacudi com toda minha força e disse

— Raíza! Preste atenção, nossa mãe morreu, está morta! Aquela coisa lá dentro tentou te comer… aquilo não é nossa mãe! E tem mais, Iza, aqui está cheio deles, precisamos ir embora agora. 

Ela colocou as duas mãos nos ouvidos infantilmente, e balançava a cabeça chorando.

— Você está louca, ficou louca – dizia choramingando.

— Iza, por favor, olha pra mim – eu segurei sua cabeça com as duas mãos, forçando ela a me encarar. – Nós temos que ir agora, eu não quero morrer, preciso nos tirar daqui, você é tudo que me restou...

— Tudo que te restou?

— Papai e Pedrinho…

Minha voz quebrou, e tive que fazer força para engolir o nó na garganta.

— Nani, por que isso tá acontecendo?

— Eu não sei, eu não sei, Iza, mas nós realmente temos que ir – eu disse.

— Mas, para aonde a gente vai? – ela perguntou.

— Eu... eu não sei – respondi. – Mas preciso que você venha comigo.

Iza me olhou nos olhos por alguns segundos e depois acenou com a cabeça. Respirei aliviada e em seguida corri no quarto para pegar uma bolsa. Virei o conteúdo em cima da cama e peguei as chaves do carro da minha mãe quando elas caíram.  Depois fui procurar por facas de cozinha. Elas estavam na segunda gaveta do armário. Enchi a bolsa com todos os utensílios afiados que encontrei na gaveta e dei à minha irmã duas das maiores facas.

Ela as pegou com as mãos tremendo, parecia estar prestes a desabar novamente. Eu larguei a bolsa no chão e a abracei com força, depois segurei suas mãos.

— Iza, a gente consegue. Eu e você vamos passar por isso, eu prometo, mas preciso de você agora, preciso que seja forte. Eu vou tirar a gente daqui, nós vamos ficar bem. Ainda temos uma à outra.

Os olhos dela encheram de água e ela me abraçou apertado por um tempo.

— Tudo bem – disse ela, enquanto se afastava um pouco e enxugava os olhos.

— Onde está o seu celular? – perguntei, e ela apontou para o quarto trancado, de onde se ouvia batidas e arranhões na porta.

Fui até o telefone fixo e disquei 190, mas ninguém atendia. Tentei manter meu rosto neutro enquanto colocava o telefone de volta no gancho.

— Sem sinal. É melhor irmos – falei – Fique atrás de mim, ok?

Entreguei a bolsa para ela, peguei um cutelo e uma faca de churrasco que havia separado para mim e abri a porta para o corredor. Pedi a minha irmã que não fizesse barulho. Avançamos até a saída de emergência vagarosamente.

Enquanto descíamos as escadas de emergência, passamos pelo zumbi que eu havia derrubado antes, o que a assustou bastante, mas consegui contê-la antes que fizesse muito barulho.

Na mesma hora, ouvimos um gemido vindo do alto, olhamos para cima e vimos dois zumbis descendo em nossa direção. Eu agarrei o braço da minha irmã e a puxei comigo escada abaixo. Estávamos quase no primeiro andar quando nos deparamos com outro zumbi. Sem parar para pensar eu soltei a mão da minha irmã e com as duas mãos enterrei meu cutelo na cara do monstro. Ele caiu para o lado, mas eu não ia ficar para descobrir se estava morto ou não. Puxei Iza novamente pela mão e paramos na frente da porta do térreo.

— Onde está o carro? – perguntei, e ela disse que estava no meio. – Certo – eu disse. – Quando eu contar até três, empurramos a porta com força e corremos até o carro, certo? – Ela acenou com a cabeça. – Um... dois.. três! Corre!

Nós jogamos os ombros com toda a força contra a porta e corremos a toda velocidade para o estacionamento. Desviamos de todos os zumbis no caminho antes que eles tivessem tempo de fazer alguma coisa, subimos a rampa que dava para pavimento do meio e, a uma pequena distância do carro, Raíza sacou as chaves do bolso e destravou as portas.

Ao entrarmos no carro, tranquei as portas e ficamos encarando a parede à frente, enquanto respirávamos. Após algum tempo, Iza colocou as chaves na ignição e girou. Segurando o volante, ela virou para mim.

— Pra onde vamos agora?


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Notas finais do capítulo

Tive um pouco de dificuldade para reconstruir o capítulo... entreguei o manuscrito para um colega transcrever para o blog e ele parece ter alterado muitas da passagens originais, infelizmente. Não tenho mais como recuperar o manuscrito, então fiz o melhor que pude para tentar reconstruir o texto.



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