O que não mata... escrita por Nani


Capítulo 1
A tela


Notas iniciais do capítulo

Esse é o primeiro capítulo, ainda pensando se dou continuidade ou não.



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“Eu não acredito que isso está acontecendo” disse eu, pela milésima vez, só por dizer. Àquela altura eu já havia entendido que o que eu acredito ou deixo de acreditar não poderia importar menos. Não acreditar naquelas coisas não faria com que elas parassem de me perseguir. “Eu não acredito que isso está mesmo acontecendo!” falei mais uma vez. Não consigo evitar; esse tem sido o meu mantra desde que eu quase fui devorada pelos meus próprios pai e irmão.

Há apenas algumas horas eu estava deitada no meu quarto, como de costume, lendo. A casa toda estava silenciosa por que meu pai, minha madrasta e meu irmãozinho estavam doentes já a alguns dias, e passavam a maior parte do tempo dormindo. Estavam todos com a nova virose, ou assim disseram os médicos.

De repente eu ouvi um barulho muito alto vindo do quarto do meu pai. Chamei por ele, mas ninguém respondeu. Então eu ouvi um som muito estranho, parecia um gemido. Foi ficando cada vez mais alto. Eu pus o livro de lado e levantei lentamente, ainda chamando. O gemido aumentou. Eu parei na entrada do quarto, tremendo. Aquele som me dava arrepios.

Pare com isso, disse a mim mesma. Eu precisei reunir coragem para sair do quarto, mas já estava acostumada com isso. Sempre tive a imaginação fértil, e qualquer quarto escuro ou barulho estranho me faziam pensar em todos os filmes de terror que eu já vi.

Respirei fundo e caminhei até o fim do corredor. Hesitei por um instante e então entrei no quarto. Nada, NADA, poderia ter me preparado para o que eu encontrei lá: havia um fluido branco e viscoso cobrindo o chão do quarto, a cama, os lençóis. Logo depois o cheiro me atingiu. Era insuportável, uma mistura de podre e azedo. O mais próximo que já senti daquilo foi quando a minha mãe esqueceu um frango no forno por uma semana, e eu abri sem saber. Mas aquilo era muito pior. Só o cheiro teria sido suficiente para me fazer vomitar, mas nem aquela inhaca dos infernos chegava aos pés da cena em cima da cama.

Meu pai e meu irmãozinho estavam inclinados sobre a minha madrasta. Ao redor deles, o fluido branco fedido se misturava com uma coisa vermelha… sangue! Aquilo tudo era demais para digerir. Eu olhei novamente. Meu pai e meu irmão estavam devorando a minha madrasta. Essa era a fonte do gemido que eu ouvi do quarto. O mais assustador no entanto, era que ela continuava a gemer baixinho, mesmo com os intestinos sendo mastigados pelo esposo e filho, a gosma branca escorrendo da boca.

Em minha defesa, alguém com muito mais estômago do que eu também teria colocado os bofes pra fora depois daquilo. Enquanto eu contribuía para deixar o ambiente ainda mais nojento, os dois viraram os rostos para mim. Os olhos deles estavam estranhamente opacos, os rostos cobertos de sangue e pedaços de carne. Eles me encararam. Nessa hora eu desejei com todas as forças que aquilo fosse um sonho, mas aquele cheiro podre me dizia que eu não ia acordar suando na minha cama.

O medo me paralisou completamente. Agora que não havia sobrado nada nele, meu estômago parecia decidido a sair pela minha boca, e eu não conseguia controlar os espasmos. Mesmo quando eles desceram da cama e vieram em minha direção, eu não consegui me mover. Mexa-se! Vamos! Sai daqui! eu pensava, mas meu corpo não obedecia.

Eles continuaram vindo, embora muito lentamente. Então meu irmãozinho escorregou na gosma branca e caiu de cara no chão. Eu senti o impulso de levantar ele, ver se estava tudo bem… então ele levantou e continuou a vir em minha direção, como se não tivesse caído, como se não sentisse dor alguma, aquela porcaria branca escorrendo do rosto – ele nem ao menos tentou limpar -, os bracinhos estendidos, aqueles olhos que sempre brilhavam ao me ver, mortos.

Aquilo foi demais até para o meu estado de choque. Dei um passo para trás, conseguindo finalmente conter meu estômago rebelde e retrocedi pelo corredor. Quando eu comecei a me afastar, aquelas coisas que um dia foram minha família começaram a gemer, como que me chamando. Acho que foi nessa hora que eu comecei a chorar. Corri para a porta da frente, mas quando abri, vi que os meus vizinhos não tiveram uma sorte melhor que a nossa. Assim que abri a porta, vi dois deles, gosma, sangue e olhares vidrados, vagando pelo corredor. Eles viraram para mim e começaram a vir. Em pânico, tranquei a porta.

E agora? O que eu faço agora? Pensei, desesperada. Eu não tinha nada parecido com uma arma. Meu pai tinha algumas ferramentas no quartinho de trás mas eu não queria ir lá. Se eles me seguissem, eu ficaria encurralada. Além do mais, o que um martelo podia fazer contra um bando de zumbis? Pelo que eu tinha visto, aquelas coisas não sentiam dor. A maioria dos filmes e livros sobre zumbis concordavam que acertar a cabeça era eficiente. Mas eu não tinha como saber o quanto eu precisaria danificar a cabeça para que eles morressem, ou o que fosse. Fazia sentido que se eu destruísse a cabeça, mesmo que eles não “morressem” se tornariam inofensivos. Então eu lembrei que estava pensando em esmagar as cabeças do meu pai e do meu irmão, e o meu estômago fez outra tentativa de escapar pela minha boca.

Enquanto tentava me controlar, percebi que os dois tinham chegado à sala. Eu não tinha mais tempo para nada. Não podia voltar sem passar por eles. Era impressão minha ou eles estavam andando mais rápido? Corri para a estante e tentei jogar a televisão neles, mas a tomada não saiu. Larguei o aparelho lá e olhei ao meu redor. Do lado de fora eu ouvia os vizinhos zumbis batendo e arranhando a porta. Corri para a varanda e empurrei as portas corridas de vidro. Isso tinha que me comprar algum tempo, pelo menos, mas agora eu estava mais encurralada do que nunca. Não havia pra onde ir.

Os zumbis bateram na porta de vidro e imediatamente começaram a arranhar e empurrar o vidro, aquele gemido horrível ficando mais forte, como que pra expressar frustração. Olhar para eles era assustador demais, apreender os detalhes daqueles rostos tão familiares, tão queridos, agora distorcidos. Me apoiei no parapeito da varanda, olhando para baixo, tentando me acalmar. Lá embaixo, vi algumas pessoas correndo e outras rastejando, mas não parecia haver muitas delas.

As batidas e arranhões atrás de mim se tornaram mais fortes, mais insistentes. Fechei os olhos com força, as lágrimas agora rolando livremente. Se eu ficasse aqui, morreria com certeza. Cedo ou tarde eles iam quebrar aquele vidro. Olhei para baixo mais uma vez. Quando era criança, sempre me imaginava descendo por ali, pulando de varanda em varanda. Eu havia pensado várias vezes se seria possível. Bom, tinha chegado a hora de descobrir. Entre ser devorada pela minha família e morrer na queda, eu preferia a queda.

Respirei fundo várias vezes para me acalmar. Se descesse pelas grades até o final e conseguisse me lançar um pouco para frente, conseguiria agarrar a tela da varanda do terceiro andar. Poderia descer pela tela e fazer a mesma coisa para chegar ao segundo andar. O primeiro andar não tinha tela, mas resolvi deixar para me preocupar com isso caso sobrevivesse à descida até o segundo andar. Nesse momento ouvi o vidro trincar. Era agora, tinha que ser agora.

Passei a perna por cima do parapeito, depois a outra, agarrando a borda. Me segurei na grade o mais firme que pude e fui descendo. Minhas mãos chegaram ao final. Eu precisava jogar as pernas. Aquela era a hora. Meu coração começou a bater loucamente, mas eu me sentia estranhamente calma. Soltei as pernas, ficando pendurada pelas mãos, e comecei a me balançar para pegar impulso. E finalmente soltei as mãos. Eu consegui agarrar a tela antes de cair. Respirei fundo mais uma vez, sentindo meu coração batendo nas orelhas. Desci pela grade e repeti o processo. Dessa vez eu não tive tanta sorte: a minha mão não conseguiu agarrar direito a tela, e quando eu finalmente consegui agarrar, bati a boca com força no parapeito da varanda. Eu não tinha tempo pra me preocupar com aquilo, já que agora vinha a pior parte. Eu precisava pular para o primeiro andar, mas não tinha tela em que me segurar. Eu precisaria me jogar dentro da varanda e depois descer pela grade, como tinha feito da minha casa.

Bem quando eu estava pensando isso, um barulho chamou a minha atenção. Dentro da casa eu vi um rapaz andando de costas pelo corredor, segurando uma cadeira. À medida em que ele se aproximava da sala, eu pude ver que com a cadeira ele tentava manter à distância um casal de zumbis, que pareciam ser seus pais. Ele chorava muito e tremia. Olhou para trás e viu a porta. Então ele empurrou a cadeira com toda a força, derrubando o casal no chão e correu para a ela, abrindo-a de supetão. Mas acho que ele descobriu, da mesma forma que eu, que havia mais daquelas coisas nos corredores. Então ele virou para a varanda e me viu. Ele correu para mim, gritando, pedindo ajuda.

Mesmo depois de tudo o que eu tinha visto, o desespero daquele cara me assustou muito. Ele tentou agarrar as minhas mãos. Assustada, me desvencilhei e comecei a descer pela tela, até minhas pernas ficarem novamente penduradas para fora. Eu me balancei o mais forte que pude, rezando não cair, rezando para conseguir sair dali viva. Mas quando eu soltei as mãos para pular, o rapaz, que a essa altura já tinha se jogado no chão chorando e me pedindo ajuda, tentou segurá-las.  Sem pensar, eu puxei as mãos com força para trás. Ao invés da descida em diagonal que eu tinha planejado, me vi caindo na horizontal. Minhas pernas caíram para dentro da varanda do primeiro andar e eu consegui travar os joelhos, ficando pendurada de cabeça para baixo para fora do parapeito.

Meu coração batia tão rápido que doía. Eu tinha certeza de que ia acabar tendo um ataque. Ao mesmo tempo uma sensação de imenso alívio se espalhou rapidamente pelo meu corpo. Estou viva. Os gritos do rapaz do segundo andar eram abafados pela intensa pulsação em minhas orelhas. Eu estava quase lá. Segurei a grade com as mãos o mais forte que pude e tirei as pernas do parapeito. Consegui me segurar. Olhei para baixo. Estava a menos de dois metros do chão. Soltei as mãos. Meus pés bateram com força no chão e eu caí para trás. Sem perder tempo eu me levantei e olhei para o hall. Havia dois zumbis vagando por lá, e mais vinham descendo pelas escadas.

Eu corri para o portão. Assim que me viram, os bichos começaram a gemer e andar na minha direção. Eu escalei as grades do portão e pulei pro outro lado. Ofegando, dei alguns passos para trás, olhando para o prédio que até alguns minutos atrás era a minha casa. Vi meu pai e meu irmão ainda batendo no vidro da varanda. Vi o rapaz do segundo andar sacudindo a tela com toda a força, gritando por ajuda, gritando por mim. Alguns dos meus ex-vizinhos já se aglomeravam contra as grades do portão, esticando os braços inutilmente na tentativa de me alcançar. Eu percebi que estava chorando mais uma vez. Soluçando, eu abracei meu corpo, fechando os olhos com força. Tive vontade de me jogar no chão, de ficar ali deitada, chorando…

Olhei para cima mais uma vez e vi os zumbis alcançando o cara do segundo andar. Desesperado, ele gritava, ainda agarrado naquela tela. Eu lembrei que, há alguns meses, também tínhamos uma daquelas na nossa varanda. Meu pai tinha resolvido tirar, sem nenhuma razão. Eu senti um aperto horrível no coração ao pensar naquilo. O meu pai salvou  minha vida.

Ao fim da rua, enxerguei um bando de pessoas que cambaleavam. Mais zumbis, pensei, preciso sair daqui. Mas pra onde? Pra onde eu iria?

Eu me sentia completamente desorientada, mas não podia me dar ao luxo de ficar ali parada enquanto aquelas coisas se aproximavam… deixei escapar um suspiro pesado. Virei para o lado contrário aos zumbis e comecei a caminhar.


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