Anoitecer escrita por Samantha Silva


Capítulo 4
Capítulo 3




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MAITE

— Quantos desses eu já bebi? – perguntou Maite à Christian.

— Alguns – respondeu sorrindo.

— Talvez tenha que deixar meu salário inteiro aqui, talvez vá ao banheiro de novo daqui a pouco. – Ela já tinha ido três vezes depois da primeira dose.

— Vamos ver, o que você faz da vida?

— Sou estagiária.

— Isso é péssimo, provavelmente, vai ter que trabalhar aqui para pagar. Sinto muito.

Maite riu e continuou rindo mesmo quando a graça passou, ele parecia feliz por fazê-la sorrir e deixá-lo feliz parecia o correto a fazer.

Quando parou e Christian parecia, finalmente, desocupado por um instante, ela decidiu que conversar faria o tempo passar mais depressa.

— Aqui não funciona todos os dias da semana, funciona?

— Não, só de quinta a sábado.

— E o que você faz nos outros dias?

— Estudo pela manhã e trabalho em uma gráfica das treze às vinte e uma horas.

— Puxa, meus parabéns pelo esforço.

— Não há grandes méritos quando a necessidade é o que lhe força a isso.

— Ah, mas claro que há. Não seja injusto com seus feitos. Muita gente tem a necessidade, mas não tem essa disposição. E se fosse apenas pela necessidade, você poderia nem estar estudando mais, mas ainda encontra tempo e ânimo para isso. Merece todo o mérito sim.

— É, bom... Obrigado – agradeceu Christian e logo pareceu ainda mais confuso. – Eu... Eu vou... Vou pegar umas garrafas e já volto.

Quando saiu, Maite ficou tentando entender o que tinha acontecido, algo em suas palavras devem tê-lo chateado, mas ela tinha certeza de que dissera apenas o certo e nada desagradável. Talvez ele fosse apenas esquisito, afinal, ela nem o conhecia.

Ficou aguardando seu retorno, mas quando voltou trazendo as garrafas que dissera, postou-se na outra ponta do balcão e o primeiro bartender que lhe atendera naquela noite, ocupou o posto que há minutos era de Christian.

Talvez estivesse errada, mas aquilo lhe pareceu claramente que ele não queria mais falar com ela e isso a ofendeu e magoou mais do que achou compreensível.

— Que cara babaca – disse a ninguém em especial.

Terminou sua bebida, consultou o relógio do celular – faltava pouco para as duas horas - e decidiu que aproveitaria o resto da noite como desse, já que tentou passar o tempo com conversa e seu companheiro de papo fugiu.

Descalça, voltou para a pista de dança e sabia que atrairia olhares condenadores, mas fingiu não se importar.

Enquanto dançava, percebeu que por aquelas horas todas que passara ali, tinha conseguido se desligar de tudo e esparramado seus problemas pela pista de dança, para serem pisoteados. Sabia que todos eles se grudariam nela de novo quando colocasse os pés do lado de fora, mas seu objetivo de ir até ali fora alcançado, conseguira extravasar.

Na verdade, o bartender fujão lhe tirou um pouco da paz de espirito, não gostava da ideia de ter chateado alguém, tinha um talento nato para carregar a culpa do mundo nas costas, não queria mais essa e percebeu que se quisesse ir embora em paz, teria que procurar Christian e tentar esclarecer o que houve.

De vez em quando, enquanto dançava, olhava para o bar para certificar-se de que ele permanecia na outra ponta, e se deparava com ele olhando diretamente para ela, pelo menos era o que parecia daquela distância.

Talvez ela estivesse muito bêbada.

Um homem se aproximou e começou a dançar na sua frente, ele era bonito e parecia aguardar um mínimo sinal dela para se aproximar ainda mais. Ela pensou em Dulce e considerou a possibilidade de seguir em frente, de submeter-se a uma coisa que nunca tinha feito, de ser ousada e arriscar-se a encontrar o homem da sua vida, como a amiga lhe dizia sempre para fazer.

Então, ela deu um passo em direção ao homem e ele deu outro em sua direção, logo, apenas poucos centímetros estavam entre seus rostos e ela fechou os olhos pronta para entregar-se a sorte ou simplesmente aproveitar o toque de alguém. Se o amor era uma porta fechada em sua vida, o prazer físico não precisava ser.

— Você é tão gostosa – disse o homem a enlaçando pela cintura.

E, então, estava tudo arruinado, ela despertou do transe e se libertou dos braços dele abruptamente. Ele podia ter dito tantas outras coisas, ou nem dito nada, mas escolheu logo o termo que ela mais detestava, que a fazia se sentir um pedaço de carne pronto para ser devorado.

— O que foi, gatinha?

— Não vai rolar, cara. Procure outra.

O homem fez cara de quem queria xingá-la, mas teve o mínimo de noção e não disse nada.

Seguindo a batida da música, ela se arrastou para outra parte da pista e dançou em paz por mais um tempo. Agora que estava descalça, seu corpo parecia que ia aguentar pelas próximas vinte e quatro horas.

Ela olhava para as luzes no alto e girava o corpo como se o mundo fosse acabar naquela noite. Estava contente como há muito tempo não se sentia, seu corpo estava cansado, mas sua mente estava livre. A música estava tão alta que era difícil se concentrar em qualquer outra coisa.

Contudo, logo uma música que lhe lembrava seu antigo namorado tocou e tudo que era bom, se foi, e se viu perdida em pensamentos autodestrutivos. Outras músicas vieram depois, mas o estrago já estava feito. Era o fim da sua paz, aquela noite tinha que acabar.

O quão vazio alguém é capaz de se sentir? De ser? Por que ela não podia ser como a maioria das pessoas e ter uma família lhe esperando em casa? Por que tudo tinha que ser mais difícil para ela? Lembrava-se sempre da diretoria do orfanato em que cresceu lhe dizendo que o dia dela chegaria, mas então ela fez dezoito anos e ninguém apareceu. Agora aos vinte e quatro, sua vida parecia mais desconexa do que nunca. Aquela sensação de não pertencer a lugar nenhum parecia nunca passar e ela só queria sumir.

As lágrimas ameaçavam escorrer por seu rosto, mas apertou os olhos, respirou fundo e voltou para o bar.

— Ei, moço, me vê algo forte. Algo surpreendente.

O bartender a olhou e parecia considerar se devia atendê-la, mas acabou preparando um drink que doía para ser engolido.

— Isso sim é deixar um cliente satisfeito. Obrigada.

Depois de mais quatro doses de seja lá o que for que aquele bartender preparara para ela, decidiu que estava bem para voltar para a pista de dança. Seu corpo parecia leve e anestesiado, a música pulsava em seu peito e em seus ouvidos. Ela precisava dançar mais.

Estava indo para a pista, quando tropeçou em algo que devia ser seu próprio pé e caiu.

Ao cair, bateu a cabeça na quina de uma caixa de som e sentiu seu rosto ficar quente. Não precisava tocar para saber que estava sangrando.

As pessoas que viram a ajudaram a se levantar e se assustaram com o sangue em seu rosto, mas ela os assegurou que estava bem e correu até o banheiro para limpar o corte.

Estava tonta devido a pancada da cabeça e, provavelmente, de todo aquele álcool ainda correndo em seu corpo, mas nada mais grave do que isso. Limpou o corte na testa com papel molhado e pegou mais um pouco para pressioná-lo até que parasse de sangrar.  

Não tinha como permanecer naquele lugar, as luzes e a música faziam sua cabeça doer mais, talvez houvesse algum lugar ali perto, onde pudesse aguardar os ônibus voltarem a circular. Era movimentado por ali, talvez não houvesse perigo.

Estava saindo da boate, quando lembrou-se dos sapatos. Voltou até o bar e se abaixou para pegá-los, quando se ergueu deu de cara com Christian do outro lado do balcão e lembrou-se que precisava falar com ele antes de partir, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, tudo ficou escuro.

 

CHRISTIAN

Ouvir Maite dizer aquelas coisas para ele atingiu Christian de maneira inesperada. A intenção era fazê-la se sentir melhor, não ela fazer isso por ele. De repente, ele estava sendo o assunto da conversa e estava ouvindo as palavras que sua mãe lhe dissera tantas vezes, mas que ele se recusava a considerar. Não havia glória em fazer o suficiente para sobreviver, a glória estava em fazer além, um além que ele desconhecia, nem tinha como fazer.

Maite não o conhecia, não sabia das coisas que queria fazer e não tinha como, do quanto se sentia impotente várias vezes ao dia, do quanto sofria por ver a mãe precisando sempre de mais alguma coisa e não ter como fazer por ela tudo que gostaria.

Seu pai havia morrido quando ele ainda era um bebê, em um acidente de carro, onde o condutor do outro carro estava completamente bêbado.

Sua mãe tinha câncer de pulmão, em fase terminal, já não havia como salvá-la, mas ela seguia precisando de cuidados. E cabia a ele cuidar dela, era responsabilidade dele alimentá-la, banhá-la e vesti-la. Era uma luta constante. Na maior parte do tempo, sua mãe ficava sozinha e ele temia sempre voltar para casa e não encontrá-la mais viva, mas ele não podia se dar ao luxo de não trabalhar e se largasse os estudos sua mãe se sentiria culpada e sofreria ainda mais, ela já o havia dito isso e ele sabia ser verdade.

Naquela manhã ela teve uma crise e não conseguia parar de chorar, foi difícil sair de casa para trabalhar, só conseguiu acalmá-la ao prometer que a levaria ao parque na manhã seguinte, era o lugar preferido dela.

Portanto, Maite não podia saber do que falava.

Trabalhar na outra ponta do balcão foi a melhor decisão, não queria aborrecê-la com sua expressão de poucos amigos, nem podia se arriscar se dando a oportunidade de se entrosar com alguém, Carlos estava sempre de olho e sua vida seguia lhe cobrando tempo.

Quando viu que ela voltou para a pista de dança, animou-se, ela não merecia ficar apoiada naquele balcão o resto da noite e dali ele podia olhá-la de vez em quando.

Em alguns momentos ela olhava para ele, mas desejava que ela não percebesse que ele também olhava para ela.

Quando um homem se aproximou dela, Christian sabia que aquilo que agitou em seu peito não era algo bom e desejou que ela fosse embora ou ficasse mesmo com o tal cara, para que ele pudesse virar aquela página de uma vez.

Ele tentou distrair-se com outra coisa, mas não deu, fixou o olhar nela, até vê-la se afastar e ir para o outro lado da pista. O alivio que sentiu o fez se sentir idiota.

Maite girava na pista, ainda mais descompassada do que antes, não era possível que ainda estivesse bêbada depois de todos aqueles coquetéis de frutas. Se bem que outro colega a havia atendido outras vezes depois.

— Ricardo – gritou, chamando o colega. – Aquela moça do cabelo preto comprido, que sentou aí na ponta algumas vezes, o que ela pediu?

— A mais forte da casa – respondeu o colega sorrindo. – Cinco vezes.

— Você é doido, cara?

— Relaxa, Christian. Ela me pareceu bem resistente.

A maioria ali só se preocupava em atender o cliente, independente do que ele pedisse, e nem sempre era o mais correto.

Ficou preocupado e quando a viu cair sabia que ela não estava bem, mas não podia sair do bar, esperou ansiosamente que ela saísse do banheiro e quando saiu e se encaminhou para a porta, ficou mais tranquilo, mesmo reparando no bolo de papel que pressionava na testa, ela não estaria ali andando se estivesse realmente mal.

Ao vê-la se afastar em direção a saída sabia que nunca mais a veria e lamentou, embora soubesse ser o certo.

Voltou sua atenção para o pedido de um cliente e com o canto do olho a viu retornar. Os sapatos, ela os havia esquecido e voltou para pegá-los.

Sem pensar muito no que estava fazendo, correu até a outra ponta do balcão e quando ela ergueu o rosto após pegar os sapatos, o viu.

Queria pedir desculpas, dizer qualquer coisa, mas antes que pudesse ela cambaleou e quase caiu, se não fosse um homem que passava por ela e a segurou.

Sem pensar muito no que fazia, Christian pulou o balcão e foi até ela, ajudando-a a sentar-se numa cadeira.

— Maite, você está bem?

— Não sei, acho que preciso ir para casa, mas os ônibus vão demorar a passar.

— Acho que você precisa de atendimento, temos bombeiros de prontidão aqui e um ambulatório.

— Aceito qualquer coisa. – Maite o olhou tão profundamente e havia tanta dor em seus olhos que ele preferia não estar ali para ver.

Um dos funcionários fora chamar ajuda e logo dois bombeiros a levaram de maca até o ambulatório.

Christian não hesitou em acompanhá-los, mas Carlos lhe pediu para retornar ao trabalho.

— Não posso, eu sou a única pessoa que ela conhece aqui.

— Conhece?

— Sim, ela é uma amiga.

Seu chefe o olhou com desconfiança, mas ele manteve o olhar firme para dar credibilidade a pequena mentira que estava contando.

— Volte ao trabalho, se ela precisar de alguém, peço para chamá-lo.

E, contrariado, e não podendo se dar ao luxo de enfrentar o chefe, ele voltou para o bar.

A boate fechava em uma hora e meia.

Todos os funcionários já iniciavam os procedimentos de organização, como se não houvesse mais nenhum cliente no local.

Christian organizou garrafas e copos, guardou bebidas, mas seu pensamento estava em Maite e na falta de notícias.

Carlos apareceu no salão e o chamou.

— Sua amiga está bem, fizeram um curativo no corte, lhe deram analgésicos junto ao soro. A dose deve terminar em meia hora, pode levá-la para casa?

— Como?

— Pode levá-la para casa? Deve saber onde ela mora, não?

— Sim, sim. É só que ainda não terminei aqui e...

— Pode ir, o restante do pessoal termina, não quero ter problemas com alguém que bebeu demais e se machucou aqui dentro. Te reembolso o combustível depois.

Aquilo tudo não parecia estar acontecendo, ele não se importava em levar Maite para casa, mas para quem queria distância, ele estava prestes a ir longe demais.

Ele agradeceu Carlos e aguardou por meia hora ocupando-se com seu serviço, quando, por fim, foi ao encontro de Maite.

Quando entrou na sala, a encontrou sentada conversando com os bombeiros.

— Olá, amigo! É você que vai gentilmente me levar para casa?

Ela sabia que ele havia mentido, mas não parecia incomodada de verdade, apesar de ser difícil analisar os sentimentos por trás daqueles olhos ainda tristes.


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