Last Kiss escrita por Benihime


Capítulo 1
A primeira carta




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William se assustou ao ouvir passos atrás de si. Virou-se e viu Carrie, sua filha de dez anos de idade, que lhe esboçava um sorriso. Mais uma vez, ao vê-la, a semelhança o atingiu com a força de uma bola de demolição. A menina se parecia muito com a mãe.

— Bom dia, baixinha. — Disse, forçando um sorriso em resposta. — Pensei que ainda estava na cama.

— Hoje não, papai. — A garotinha respondeu, sua voz ainda rouca de sono. — É dia da limpeza de primavera.

William conferiu o calendário, escrito em uma enorme lousa na parede oposta, perto da geladeira. Carrie tinha razão, como sempre.

— Vamos tomar café e depois começamos, ok? — Sugeriu, empurrando o prato com ovos mexidos na direção da filha. — Coma, que saco vazio não para em pé.

— Ok, papai.

Tomaram café da manhã enquanto debatiam sobre quem faria o que, os dois um tanto perdidos. Era a primeira vez que faziam aquilo desde que Carly partira. No final, ficou decidido que Carrie cuidaria das plantas na estufa e William arrumaria o escritório de sua finada esposa.

A primeira coisa em que reparou ao adentrar o cômodo, cerca de meia hora depois, foram os livros. Sua esposa sempre adorara ler, uma verdadeira traça que devorava qualquer coisa que lhe caísse nas mãos. William se aproximou dos tomos devagar, correndo um dedo pelas lombadas e parando ao encontrar uma da qual se lembrava mais vividamente. Era Razão e Sensibilidade, o favorito de Carly.

A garota entrou na quadra discretamente, como se não quisesse chamar atenção, o que William logo declarou como sendo uma tarefa impossível. Baixinha, porém curvilínea, com cabelos tingidos de vermelho, olhos castanhos de formato amendoado e um rosto elegante que os óculos de armação antiquada não conseguiam esconder, aquela garota não passaria despercebida mesmo que quisesse.

Não conseguiu tirar os olhos dela, que escrevia algo em um caderno de aparência surrada. De repente, após alguns minutos, a jovem se levantou e saiu. William reparou no brilho prateado de um objeto deixado no banco onde ela estivera sentada. Correndo, alcançou-a poucos antes que ela fosse embora.

"Ah, obrigada" Ela abriu um breve sorriso, que desapareceu tão rápido quanto surgira. "Essa é minha caneta da sorte. Não escrevo sem ela."

"Você é escritora?"

"Sim, eu sou." A jovem respondeu. "Ou melhor, estou tentando ser. É um meio complicado, mas um dia chego lá."

William assentiu em resposta, notando o quanto a garota parecia desconfortável, triste mesmo.

"Dia ruim?" Perguntou antes que conseguisse se conter.

A baixinha ergueu os ombros numa atitude defensiva, encarando-o com um quê de irritação. Era tão pequena que a atitude intimidante mal surtia qualquer efeito.

"É o que parece?"

O tom hostil dela até o teria convencido, não fosse a tristeza naqueles olhos castanhos.

"Esqueça." Ele disse calmamente. "Só pensei ... Que talvez quisesse conversar."

A moça hesitou, mas por fim relaxou e se recostou contra a parede, fixando nele mais uma vez seus profundos olhos escuros.

"Se realmente quer saber" A ruiva disse. "Um amigo me deu o cano."

"Ele deve ser completamente louco."

"Talvez." Ela riu baixo, seu comentário parecendo tê-la agradado. "Sou Carly Tigers."

 "William Valtieri"

 Ela estendeu uma das mãos para um cumprimento. A mão dela era pequena, quase infantil, mas seu toque o queimou como ferro em brasa"

 Balançando a cabeça, William voltou à  realidade. Mais de vinte anos já haviam se passado e, com o menor dos esforços, ainda podia sentir aquela mão pequena tocando a sua. Lembrou-se subitamente de que nunca havia perguntado a ela sobre aquele velho caderno surrado e, de repente, a curiosidade pela resposta nunca obtida o assaltou. Não foi difícil encontrar o caderno em meio aos livros da estante, e outra memória lhe veio ante a visão tão familiar.

Carly estava sentada de pernas cruzadas, falando alguma coisa sobre uma ideia para seu novo romance, algo inspirado em Romeu e Julieta.

— Tem certeza de que quer mesmo seguir por aí? — William perguntou. — Não é uma linha meio ... Manjada?

— É, talvez. — Carly concordou pensativamente. — Pra não falar perturbadora.

— Como assim?

— Julieta era uma criança de treze anos quando se apaixonou. — Ela explicou. — Romeu tinha dezessete. Era velho demais para ela.

— Acha mesmo que idade é um problema para um relacionamento?

— Não sei. — Ela admitiu. — É difícil dizer. Acho ... Que depende do relacionamento.

William entendeu a indireta na mesma hora, surpreso em saber que Carly sentia o mesmo que ele. Devagar, inclinou-se na direção dela, usando o dedo indicador para erguer-lhe o queixo.

Seus lábios enfim se tocaram, e por um momento pôde senti-la corresponder desajeitadamente ao gesto, seu caderno surrado ficando preso entre eles, pressionando-lhe o peito. De repente, porém, ela se afastou, pulou de pé sem dizer nada e praticamente saiu correndo dali.

Ao puxar o caderno da estante, uma folha caiu. Era uma folha de fichário decorada com bordas em tema floral, estampada com rosas, igual a que Carly costumava usar para lhe deixar bilhetes no começo de seu relacionamento. Ele a desdobrou e reconheceu de imediato a letra elegante de sua esposa.

Oi, amor

Se está lendo isso, é porque já encontrou minha surpresa. Lembra desse caderno? Eu costumava escrever nele às vezes, e adorei que você nunca tenha me perguntado nada a respeito.  Eu não teria respondido.

Quando fiz quatorze anos minha avó me deu esse caderno, dizendo que era hora de eu parar de ler e escrever minha própria história. É o que tenho feito desde então. Fotos, desenhos, contos, poesias, pensamentos ... Tudo nesse caderno. Guarde-o se quiser, ou dê para Carrie. Sei que ela vai gostar.

Sabe, Will, que às vezes amaldiçoo a Deus? Se é que ele existe, é claro, do que já não estou tão certa para começo de conversa. Eu o amaldiçoo por não me dar mais tempo. Mas também o agradeço por ter colocado você na minha vida.

Desde a primeira vez, quando você apertou minha mão, eu já estava apaixonada. Lembra? Eu tinha dezesseis anos e você tinha vinte e um. Mesmo assim, alguma coisa me fez decidir que eu não desistiria.

Seja lá qual for a data em que estiver lendo esta carta, lembre-se de que eu te amo, hoje e sempre.

Carly

P.S: Siga as pistas, amor. Há um presente para você no final. A próxima dica é "lírio". Encontre o lírio.

William teve que rir. Carly sempre tinha as ideias mais malucas. Deixando a carta de lado, abriu o caderno. A primeira coisa que viu foi uma foto da esposa, com seus cabelos rebeldes e tingidos de vermelho. Ela não usava maquiagem, seus óculos estavam tortos, seu sorriso largo revelava o aparelho em seus dentes, havia uma constelação de sardas em seu rosto e um colar de caveiras em seu pescoço. Ela parecia mais nova do que seus dezesseis anos.

William encarou aquela foto por alguns minutos, depois folheou devagar o caderno, vendo o rosto da esposa em praticamente todas as páginas. Fez isso até a dor se tornar demasiada e obrigá-lo a parar.

Desde que ela se fora, um ano atrás, sentia falta de sua esposa. Tanta falta que, às vezes, aquele sentimento ameaçava rasgá-lo ao meio.


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