Do que São Feitos os Sonhos escrita por Miss B W


Capítulo 2
Morte, Doce Morte


Notas iniciais do capítulo

Boooooooa noite! ^^
Como vão desbravadores da internet? Hehehe, espero que gostem do real começo da história u.u



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7 de outubro de 2015

Por algum tempo eu me permiti viajar para outro lugar. Escócia e suas belezas naturais, as saias xadrez masculinas e seu inquietante whisky. França e sua torre majestosa, cada monumento delirante e a paixão incessante que beira ao lado do Rio Sena e os diversos cafés que espreitam por todo lugar. Penso na beleza glacial e feroz que expele da Rússia, por tanto tempo perdida no socialismo e agora caminhando para se tornar novamente um império capitalista.

Penso em tudo, menos no que há a minha frente.

Não quero ver o corpo. Não posso ver o sangue tingindo a pele parda de Sydney, nem mesmo consigo imaginar não tê-la mais por perto. Não consigo e não quero. Sydney ainda estará na cama ao lado da minha em todos os dias que se seguirem, e não sendo examinada numa necropsia por seu bruto assassinato.

Não. Sydney ainda estará comigo esta noite. Ainda me contará suas histórias loucas e seu medo de não passar nas provas e ter de repetir outro ano escolar. Pouco importa quantas vezes aquela garota tivesse me irritado profundamente ou não tenha me deixado estudar com tranquilidade, para não falar de quantas vezes foi reclamar sobre os professores ficarem pegando em seu pé, e bem durante as minhas longas horas de leitura ininterrupta. Naquelas horas só pensava em formas de pedir que ela calasse a boca e fosse arranjar o que fazer, mas agora, agora eu queria ter tido cada pedacinho dos momentos perdidos, e, sem dúvida, queria que fosse diferente. Queria poder ter controle sobre minha mente, e não que esta tivesse controle sobre mim.

Eu não queria de forma alguma pensar que tudo acabou, que eu poderia ter mudado isso. Na pior das hipóteses também estaria morta, todavia seria melhor do que ter de lidar com a culpa que reina em minha mente.

É isso, o fim de uma vida, de uma aventura ao lado da pessoa mais impulsiva e contente que poderia existir. O meu perfeito oposto.

Existem ambulâncias e o som insistente de vozes. O chiado vindo dos carros policiais. Gritos de bombeiros que tentam eliminar as camadas de fogo e fuligem. Tudo isso é demais.

Por um segundo penso que há alguém me carregando para fora da zona, logo percebo que não passa da minha imaginação e que ainda estou parada, zonza, entre todo o caos.

Tudo tem movimento, todas as minhas células, meu sangue, meus pensamentos. Tudo menos os membros. As mãos frenéticas, os gritos afoitos e a corrida para apagar o fogo da Ala C do instituto Greene que está se alastrando para a Ala B. Até mesmo o sussurrar dos lábios dos outros moradores do Instituto.

Sydney finalmente está sendo encapada e levada para uma ambulância. E, de uma forma, isso faz com que notem a minha presença. Finalmente notam que há uma adolescente perdida em meio ao vai e vem de profissionais. Estou parada, estática. A respiração sai travada e ofegante apesar de não haver nenhum movimento sequer em mim. Petrificada.

Dois policiais fortões e incrivelmente altos andam até onde estou, de longe percebo seus olhares me interrogando. Talvez eu devesse respondê-los ou, na melhor das hipóteses, prestar atenção ao que dizem. Pela Syd.

Ergo o olhar, porém tudo que vejo são dois pares de olhos vorazes que me examinam como se eu fosse totalmente culpada. A verdade é que eu não sei.

Sydney num instante estava bem, vestida com seu pijama favorito lendo um mangá erótico que ela roubou da bibliotecária e eu, eu estava olhando para o céu da minha cadeira especial de camurça vermelha. Nossa noite não poderia estar sendo mais monótona e comum. Como todas as outras. A plenitude me levou para o céu. Hoje mesmo as estrelas estão visíveis, muito iluminadas e gritando brilho. Resplandecem os rostos decididos de cada um daqui e a lua só ajuda a terminar com o aclarar branco fosco.

Foi durante minha distração que o bombardeio de gritos agudos de Sydney encheu meus ouvidos. Assim que me virei encontrei o corpo dela diante da porta escancarada de nosso quarto. Sombras invadiam o redor e o fogo começava a surgir.

Peguei-a pelos braços e a puxei para fora do quarto, que não passava de fumaça preta.

Eu não sei quem a matou. Não sei quem teria coragem de fazer isso. A única coisa que sei é que os dois policiais a minha frente estão tão indomáveis quanto meu ondulado cabelo negro pelas manhãs.

— Tem alguma ideia de quem possa ter sido? - o mais alto deles pergunta, no caso, estava coçando seu bigodinho escuro, a outra mão segurando um bloco de anotações que há tempos não vejo alguém usando. Alguém que não seja eu.

— N-não. Eu estava distraída. Foi muito... R-rápido.

— Você fica distraída com facilidade? - indagou o outro, a voz mais riscada, seus olhos presos em mim. Sua pele morena clara brilhando ao luar.

— Com f-frequência. A minha medicação me deixa um p-pouco lenta. Eu a-acho.

A verdade é que talvez não seja só o remédio. Há em mim a putrefação comum de alguém doente, não são simples medicamentos que quebram a corrente entre minha mente, meus corpo e minhas emoções. Desde que começaram a me diagnosticar com bipolaridade tudo que faço é tentar fugir disso, desse nome, dessa doença. Não me sinto incapaz, nem mesmo maluca. Talvez um pouco dissimulada e incontrolável, neurótica, mas nada que uma garota adolescente não seria também.

Ninguém dá ouvidos há alguém que já teve surtos de raiva. Ninguém nem se importa realmente se um título pode ou não te destruir.

— Sim, sim, disseram que ela toma diversos calmantes para controlar a hiperatividade e a ansiedade. - disse o do bigodinho ao colega.

— Tá certo. Então você é uma testemunha inútil, que ó-ti-mo. - fiquei olhando para ele, para seus olhos negros. Sim, absolutamente inútil. Até porque, eu nunca fui mais do que uma garota perdida para a maioria das pessoas daqui. Elas não se importam com o que há por trás da enfermidade. Nós somos a enfermidade, somos o trauma.

— Por que você não vai telefonar para os seus pais? Logo, logo isso aqui vai virar um inferno. Depois fazemos mais perguntas.

Assenti, indo até a diretora que, de braços cruzados, me observa apreensiva. A diretora Taylor sempre foi uma mulher rígida, que não mede esforços para controlar cada um de nós, nos deixar dependentes dela. Ela nos entregou a droga e agora somos todos drogados. Mia Taylor controlou seu rebanho de ovelhas com toda a substância que conseguia arranjar e todo o tratamento que os médicos pensavam ser necessário. Perdi a conta de quantos gritos soltei numa daquelas salas brancas. Não vale a pena relembrar o passado quando o presente é duas vezes mais intenso.

Não recebi abraços, nem mesmo consolo falado. As pessoas são, de fato, meros corpos sem emoção. Não aquele tipo que está indiferente a cada momento e é um estereótipo de pessoa solitária e que não dá a mínima para a vida. Pessoas são frias para com o próximo. Frias com pessoas que não significam nada para elas. São meramente cordiais. E aí está, a frieza da cordialidade.

Não penso em Sydney e eu como sendo cordiais. Na verdade, na maioria das vezes fomos grosseiras e irredutíveis uma com a outra, isso quando ela não era uma boba apaixonada e eu a garota que só pensa em desenho.

Sydney sempre foi a forte, a de grande personalidade. A que não aceita ouvir desaforo, nem mesmo uma cutucada. Eu costumava ter inveja disso nela, antes de perceber que essa era sua cobertura para esconder a podridão; é nessas horas que percebemos que os indivíduos fazem de tudo para se mostrarem fortes para os demais. Guardo tudo que me incomoda para mim, é mais fácil assim do que acabar saindo como perdedora de uma discussão ou com um belo olho inchado. Sydney não se importa de chegar à violência. Eu também não me importaria se lutasse como ela, é aí que está, mesmo se eu lutasse, também não teria coragem nem de levantar a mão para alguém. Não me lembro de uma vez apenas tê-la visto perder uma luta. Nem mesmo contra garotos.

Os momentos foram para o lixo. A garota de dezoito anos que poderia ter uma vida inteira maravilhosa pela frente junto de suas doses de antidepressivos agora está morta e não ficará na memória de muitos como ela sonhava em estar. Não da forma apropriada.

Gostaria de colar fotos dela por aí e clarear o mundo com seu sorriso travesso. Provavelmente seria presa por depredação; e daí, não é mesmo? Valeria a pena. Sydney saberia que sim.

A diretora, mais conhecida como Sra. Pé de Galinha está gesticulando para que eu entre na escola e peça para ligar para o meu pai. Ela está devastada demais até mesmo para falar. Seu hospício foi embora com Sydney. Ela ficaria orgulhosa se soubesse.

Me pego pensando no que dizer a meu pai enquanto realizo o caminho para a secretaria, a parte restante, onde as chamas não alcançaram, ainda. Papai me abandonou há quatro anos e toda a raiva e tristeza que senti quando ele me prendeu numa jaula para loucos traumatizados se resumiu ao medo que tenho de vê-lo outra vez e decepcioná-lo com a minha dependência e irregularidade.

Quero gritar. Espernear. Quero me meter no meio do fogo. Mas não quero ligar para ele. Não quero ouvir sua voz. Não quero que sinta pena de mim outra vez.

Sei que a recepcionista vê isso. Vê meu medo. E está aí, ela acha que é medo da situação, conquanto esta faz tempo tenha se passado na minha cabeça e ainda não se faça nada real.

Ela procura meus dados e encontra o número do meu pai. Ela falará com ele e tudo que posso fazer é tentar entender o que se passa na cabeça do homem enquanto ela pronuncia "morte", "incêndio", "assassinato" e "buscar" sem tempo para respirar.

Srta. Albert está em piloto automático. Posso entendê-la. Saber que há um assassino entre nós é quase tão perturbador quanto saber que está sem emprego por tempo indeterminado enquanto os policiais fazem suas investigações no local e Sra. Pé de Galinha rouba um banco para reerguer sua penitenciaria adolescente.

Ao mesmo tempo em que me sinto infinitamente feliz por ir embora desta prisão com barras nas janelas e péssima comida também sinto demasiada inquietude. Tenho receio do que vou encontrar lá fora. Em meu pai, em meu irmão, e em toda a vida que terei de retornar.

De verdade? Seria mais fácil pular de um precipício a voltar a ter a vida imprestável de antes.

Você já imaginou como estaria seu túmulo se estivesse morto? Porque eu sei que neste momento a única coisa que estaria escrita seria "Louca, mas provavelmente amada pela família". E possivelmente estivesse a caminho de ser pichado.

Nada de flores, nada de compaixão. Apenas morte. Doce morte.


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Notas finais do capítulo

O que acharam? #DeixeUmComentário❤
Booom, até o próximo ^-^



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