Sob controle (Lucy, Livro 1) escrita por Natália Alonso


Capítulo 7
Capítulo 7 – Por de baixo do lenço




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“Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.” - Friedrich Nietzsche

 

 

 

Jasenovac – 1943

 

Após a guerra no campo de concentração, fui até a ala sul. Encontro a vala indicada ainda estava aberta, expondo a dezena de corpos para a neve e cinzas que ainda se depositavam do incêndio. Desço e começo a caminhar por cima dos cadáveres em putrefação. Eu procuro por Mirian, movendo corpo por corpo. Aparentemente, nesta vala todos que morreram na explosão. Cada um possui uma queimadura particular de sua morte, uma marca distinta e muitos mal é possível identificar. A explosão deve ter sido grande e entendo que provavelmente terei que identificá-la por seu cheiro, o que é um problema com tanta cal. No meio do branco e cinza que recobre parcialmente avisto uma pinta familiar, a mancha na parte posterior de sua coxa. Sim, eu a encontrei.

Vou até ela e a viro para mim. Está magra, sua pele alva parece estar presa diretamente aos ossos. Seus joelhos eram maiores que suas pernas, os ombros frágeis como a perna de uma ave. Sua cabeça raspada mostrava marcas dos cortes de quando nos atacaram, no nosso jantar interrompido. Eu viro o seu rosto e me assusto por um instante, eu não a vejo, não como ele era, não como deveria ser. Suas pupilas leitosas me encaram, questionando minha demora. A trago em meus braços para aquecê-la, nem seu cheiro é o mesmo, aquilo é só uma parte de sua casca, choro, mais do que estou acostumada. Cubro o que restara de seu rosto e corpo com um lençol listrado de branco e azul celeste, não tiveram a decência de sequer cobri-la. Como se monstros tivessem alguma decência.

Eu a carrego comigo, atravesso o campo de guerra da noite anterior. Ele já está abandonado, o fogo já apagara e pode-se ouvir o estalar das madeiras ainda em brasa residual. A fumaça cinza dificulta a minha visão antes de encontrar o caminho para a mata. Caminho subindo a montanha novamente, sinto a neve em meus pés, refaço todo o meu trajeto. Penso enquanto a carrego, tão leve que parece que só levo o lençol, vamos até a beirada do rio. Droga, lembro que eu esqueci de trazer uma pá, não estou pensando direito. O lobo reaparece, ele fareja a morte no ar, eu apenas o olho de canto. Ele se senta, lambe os lábios e apoia a cabeça em suas patas dianteiras.

Eu a banho no rio, não vou enterrá-la suja, quero tirar as cinzas, cal, sangue, pus e quaisquer outros resquícios de sua dor. Cada roxeado em tom diferente só mostra minha derrota, o quanto demorei para sair da sala 22. Eu não sei quanto tempo fiquei lá, morrer e voltar faz eu perder a noção, mas ela não teve a mesma sorte. Para ter emagrecido tanto, no mínimo foram meses, quatro ou seis, ou mais. A cicatriz do corte em sua cabeça feita pela garrafa d’água é do dia que nos levaram em nossa casa. Essa cicatriz está sem vermelhidão... apagada assim como sua pele, assim como sua alma de seu corpo.

Embrulho-a em um lençol quase limpo que encontrei, suas mãos cruzadas no peito, beijo seus lábios uma última vez. Nada. Não sobrou nada dela. Sinto que deve ter morrido a pelo menos três ou quatro dias, seu corpo só não está pior por causa do frio, a neve a conservou. Fecho finalmente seu rosto com o lençol, dando duas voltas em torno do pescoço frágil.

Após conseguir enterrar Mirian com minhas próprias mãos, eu me sento ao lado do túmulo de pedras. Estendo minha mão até o lobo, ele olha e parece não se importar. O acaricio, tocando a sua pelagem densa, ouvindo o correr do rio ao nosso lado.

 

 

New Orleans

 

Após o dia que encontrei a taça no porão, fiquei à espreita. Como alguém entrara em minha casa sem que eu sequer notasse? Sem deixar vestígios, a não ser aqueles que queria. Enquanto verifico se a taça tem alguma digital percebo minha mão trêmula, foi para isso que desci, em busca do que me alimenta. Coloco a taça na mesa e vou até a geladeira, os sacos de sangue estão organizados, por data, mas confesso que ainda tenho preferências por tipo. Escolho a unidade mais antiga, sempre deixo pelo menos uma dezena, nunca se sabe quando posso não poder recolher alguma escondido. Normalmente pego os tipos A ou B, são mais comuns no EUA. Pegar um O seria perigoso para alguém que precise, ainda que eu aprecie mais.

Escolho uma taça e pego o kit previamente separado para isso, em meu armário do sótão deixo algumas antiguidades, armas medievais e o material para o aquecimento. Com todos os itens a mesa começo meu rito particular, o invólucro de sangue deve ser dividido, meia porção será o suficiente para mais algumas semanas. Minha visão fica turva, um enjoo me persegue desde ontem, me desequilibro me apoiando no peito de Mefisto, que aparecera sem ser convidado, como sempre.

— O que você está fazendo aqui?

— Você sabe que ainda está cheirando a sangue de porco? — fala ele, gentilmente enquanto puxa uma cadeira para mim.

— Sei, acho que é isso que me fez ter uma sede tão repentina. Normalmente esses sinais demoram a se desenvolver.

— É por isso que está servindo o saco todo dessa vez? — Ele indica com o olhar para minhas mãos. Percebo que despejara todo seu conteúdo na garrafa de vidro quase que instintivamente.

Sinto minhas presas, elas rasgam as gengivas em fuga, em ira. Meu rosto fica parcialmente transformado, finco minhas garras em minhas coxas, cortando a mim mesma, me controlando da transformação completa. Inspiro com força tentando me conter, só de ver o sangue estou...

— Nossa, isso chega a ser sexy. — Mefisto ajeita seus cabelos ondulados, deixa a mostra um de seus pequenos chifres.

— Não começa.

Pego o gel de auto aquecimento, coloco no refratário. O quebrar do gel inicia sua ação termoquímica, o calor começa a emanar, coloco a garrafa com o sangue, girando sua lateral para aquecer devagar e uniformemente. Mefisto admira e ainda divaga.

— Todo esse ritual para ter ainda menos do que pode.

— Todo esse ritual é o suficiente.

— Suficiente para quem?

— Para mim, e muitos também.

— Sim, alguns. Mas você sabe que a maioria não pensa como você?

— Eu sei. É por isso que sou “persona non grata” por eles.

— Não é por isso que não gostam de ti.

— Lá vem você de novo com isso. — Tiro a garrafa do gel térmico, coloco o termómetro.

— Eles não podem gostar do que têm medo.

— Eu não farei nada.

— Você não faz nada por que não quer, mas até quando isso? Até quando não tomará o cargo que é seu por direito? Afinal, sabe que é a única com linhagem direta de Vlad Tepes.

— Shiva fará bom gosto do cargo, e Liu tem muitos seguidores.

— Liu já se tornou cinzas.

Olho para Mefisto, me questionando da veracidade da informação. Minha memória alerta que já estou embaralhando os nomes.

— É verdade, faz pouco tempo, não é mesmo? — falo enquanto tiro o termômetro, 36,1º.

— Faz uns cinquenta anos. — Assente ele.

— É pouco tempo.

— Shiva não tem tanto apoio, eles são tradicionais.

— Que se fodam as tradições, estou farta delas.

Sirvo a taça, coloco a garrafa de vidro no suporte para que não resfrie rapidamente. Se eu fizer no tempo certo, posso guardar a outra metade, talvez ainda não fique intragável. Ao levantar a taça, já sinto seu perfume invadindo minhas narinas, ao sugar o conteúdo o aveludado sabor aquece minha garganta. Um arrepio sobe por minhas costas, minhas garras ficam completas, minhas presas retornam. O ambiente todo fica em cores mais vibrantes, meus olhos fendados se deleitam em prazer. Sinto-me cair.

As mãos de Mefisto me colocaram no chão, sua mão caminha pela lateral de meu corpo. A pele dele tornou-se um esverdeado escuro, uma textura de camurça.

— Adoro ver-te assim, amada. — sussurra ele enquanto beija meu colo, sinto-o roçar meu pescoço. Eu também adoro vê-lo assim.

Acaricio seus cabelos descendo o braço para suas costas. Mas quando seus lábios se aproximam dos meus o interrompo.

— Não.

Ele levanta seu rosto em surpresa, seus olhos amarelos estão muito próximos, posso ver suas fendas abrindo e fechando se ajustando a minha imagem.

— Algo errado?

— Eu só, não quero perder o controle.

Ele franze o cenho, se levanta afastando devagar.

— Ah, eu entendi. Então você gostou mesmo do primata?

— Eu só quero manter os mundos separados.

Ele me fareja profundamente antes de apoiar em meu peito.

— Não é o que parece.

— Eu não quero me envolver mais com mortais, nem perder o controle. — falo enquanto acaricio seu corno curto.

— Tarde demais pra isso.

Ao falar ele aponta com o olhar para a garrafa vazia em minha mão, percebo que a taça sequer chegou a ser usada.

 

 

*********

 

Na tarde do dia seguinte, tento retornar uma ligação de Hidekki. Ele me ligou e deixou a mensagem dizendo que precisava de um favor meu. Da última vez que me pedira um favor, foi para comprar produtos eróticos para a namorada. Aquele moleque tem um coração de ouro, mas também é um completo “sem noção”, como dizem hoje em dia. Ele não atende, deve estar ainda trabalhando no Starbucks. Detesto quando me ligam e depois não atendem de volta.

Lembro que preciso me arrumar para a festa do Clinton amanhã à noite. O almofadinha me mandou um convite oficial em papel norueguês, timbrado e texturizado. Quem faz um convite desses para uma reunião particular? Isso não é um casamento! Agora, com tudo o que aconteceu, ficar em casa me dá a sensação de estar sendo observada.

Vou até à venda próxima de minha casa. Escolho os temperos, o vinho (é claro) e o cordeiro, desossado com cuidado pelo filho do dono do estabelecimento. Só sei o nome do dono, Dhruva; nunca soube pronunciar corretamente o nome de sua esposa e filho. Sempre que sonho com Mirian, quero homenageá-la. Ela adorava o cordeiro marinado. Quando já estou no corredor do caixa, dois homens entram no estabelecimento, consigo sentir o cheiro de lubrificante de pistola de seu bolso.

— TODO MUNDO PRO CHÃO! — grita um deles, apontando a arma para Dhruva e para mim. A venda está vazia, apenas eu de cliente. Dhruva abre rapidamente a gaveta do caixa e começa a colocar as notas na sacola do homem. Sua esposa está atrás, do balcão em suas vestes coloridas; Brincos, anéis e pulseiras douradas e vermelhas. Ela olha assustada para o marido e paralisa quando vê a arma. Estou abaixada no chão, muito próximo do balcão e muito próxima dos ladrões.

— Anda, Gandhi, vai passando a grana e não faz nenhuma besteira! — fala nervosamente o homem com a Magnum.

Olhos de pupilas muito contraídas, um suor na cabeça, mas não no resto do corpo, reconheço o cheiro de algumas drogas baratas, provavelmente serão eles a fazerem alguma besteira. Toda essa adrenalina, essa é quase um convite para mim, ainda mais alimentada, eu quero essa brutalidade.

— Enfia tudo no saco... — O mais próximo do balcão fala gesticulando com a pistola na mão e olha para a esposa do dono, a fita de baixo para cima. — não se preocupe, eu não tenho pressa.

Ele coloca a pistola na cintura e vai para de trás do balcão, indo em direção à mulher. Ela balança a cabeça entre as mãos suspensas, suplicando em tom baixo para que ele não faça nada. O outro homem ainda aponta a arma para o rosto de Dhruva. Eu vi muitos mortos nos últimos dias, aqui em New Orleans e em meus sonhos. Foram mais do que eu gostaria. Hoje eu posso colaborar para mais dois.

O homem que aponta a arma para o nervoso indiano no caixa se aproxima de mim. No chão, eu puxo com força a sua perna o atirando na geladeira, entre vidros de creme de leite fresco. Levanto e vejo o outro homem, agarrado atrás da mulher, apontando a pistola para cabeça dela. Uma forma de evitar que atirem nos reféns é fazer com que eles temam e queiram atirar em outra coisa. Pensando nisso, eu me mostro. Meu rosto fica deformado como uma fera, minhas presas lhe provocam o impulso de defesa atirando diversas vezes em minha direção, ótimo. Eu salto, o braço armado está agora suficientemente longe do rosto da mulher. O agarro e atinjo o seu cotovelo virado, a fratura é fácil e um estalo abafado é música para meus ouvidos. Ele grita, ainda atira duas vezes tentando me acertar, um dos tiros passa de raspão e lá se foi minha orelha e audição. Eu o separo da mulher, o carrego pelo pescoço arrastando-o para a bancada, batendo sua cabeça contra o granito. Uma, duas e três vezes, paro quando sinto um tiro no meu braço. Olho para o idiota do outro lado da loja, coberto de laticínios e uma arma longa demais para um moleque. Bato uma última vez a cabeça de seu amigo na bancada de pedra antes de soltá-lo no chão.

Eu salto pela bancada e corro. Ele até é bom de mira, mas eu não preciso me desviar, não é mais do que um pequeno incômodo. Chuto sua arma para uma prateleira de enlatados, ele me soca e percebe que mal me movo, eu deixo o imbecil alcançar o suporte de uma prateleira metálica e bate na minha lateral e cabeça. Normalmente eu iria me desequilibrar, alguns ossos se quebrariam e eu ficaria atordoada. Hoje não, hoje o metal retorcido o assusta, ele recua com lentos passos, ao pisar no leite escorrega. Eu o seguro pela gola de seu casaco antes que caia no chão, ele suplica alguma coisa. E não ligo. Jogo-o para o piso, o leite fica marcado com os respingos vermelhos, ouço sua face quebrar. O viro para mim e soco, sinto que tem um dente preso em meu dedo médio. No terceiro seu rosto já ganha uma forma diferente, no quarto já não parece mais que era um homem, então no...

— Chega.

Sinto o cano da arma na minha cabeça, olho de relance para trás e vejo Manson com seu distintivo brilhante na cintura.

— Ele já caiu, é o suficiente.

Solto a gola do homem que mal se mexe no chão. Levanto, pego a minha bolsa e compras da cesta, vou até o caixa e coloco duas notas de 100 US$ sobre a bancada. Olho para trás e vejo Manson agachado, ele confere a pulsação do homem desmaiado enquanto fala algo pelo rádio. Eu, me viro para o vendedor indiano.

— Desculpe pela sujeira no corredor.

— Obrigado — diz Dhruva, ajoelhado e abraçado a sua esposa, alguns cacos de vidro estão no chão próximo aos seus joelhos.

Olho novamente para sua bancada suja de sangue. Puxo mais duas notas, coloco junto das outras e vou para casa.

 

 

*********

 

Chego em casa com a sacola de compras. Tiro o cordeiro e os temperos da sacola, suspiro ao lembrar do que tenho que fazer. Pego uma faca de cozinha e começo a tirar as balas de meu abdômen, senti que a da minha coxa caíra enquanto caminhava, mas terei e terei que espremer essa do ombro, que ainda está presa. Manson chega quando pego a faca e me sento na cadeira ao lado da bancada da cozinha.

— Que porra foi essa que você acabou de fazer? — fala Manson, entrando rapidamente pela porta, como sempre.

— Eu impedi um assalto, um estupro e possivelmente duas mortes. — falo me contorcendo, tentando tirar a bala da parte de trás do meu ombro.

— Você quase matou aquele cara, se eu não tivesse chegado a tempo você ia...

— Talvez. Olha, eles estavam drogados e iam atacar a mulher, o que você queria que eu fizesse? Ficasse quieta, abaixada no chão?

— Eu duvido muito que ele oferecesse algum perigo a você depois do segundo soco. Agora eles estão indo em estado grave para o hospital.

— E o que vai fazer se ele morrer? Me prender? — Estou torcendo a faca no buraco de meu ombro tentando tirar a última bala, mas a cretina insiste em ficar e minha pele está fechando rápido demais com ela dentro.

— Você não pode simplesmente fazer isso, não é sua decisão quem vive e quem morre.

— É a deles por acaso?

— Não, mas você tem escolha de poder fazer melhor.

Eu olho para ele por um instante, mas volto a cavar meu ombro em busca da bala.

— Eu não sei se quero fazer melhor que isso. É difícil medir quando estou... Olha. Desculpe, eu fiquei um pouco... fora de controle.

— Eu percebi. Quando você me deu o soco não quebrou o meu maxilar, mas hoje... eu a vi lançar um homem do outro lado da loja com apenas uma mão.

— Eu não queria te machucar.

— Ah, eu sou café com leite agora?

Talvez.

— Não foi o que eu quis dizer, eu só... me contive. Fora que... Eu tive de me alimentar ontem.

— Isso significa que eu devo tomar algum cuidado extra?

— Não, eu só preciso me concentrar. É mais difícil controlar a força, os sentidos. Droga, os batimentos cardíacos... você não tem ideia do que é ficar assim, é por isso que não costumo...

Percebo que estou apontando a faca para ele.

— D-desculpa... eu só estou tentando voltar ao normal. Ontem aconteceu algo estranho demais, era para eu ter tomado uma dose pequena e era como se eu não tivesse nenhum controle. Eu tomei a dose inteira que deveria ter sido dividida em dois ou até três para justamente não ficar assim...

— Por isso está regenerando rápido assim?

— É e essa porcaria de bala não quer sair. — falo fincando novamente a faca no ombro.

— Seu corpo não pode expelir?

— Eu regenero, mas nem sempre expele corpos estranhos. Às vezes, a pele apenas se forma por cima. Isso é um problema se você está em uma guerra e vem uma bomba de estilhaços. — Eu giro a faca tentando arrancar a bala. — Eu já cheguei a tirar um pedaço de calota de carro do meu estômago.

— Quer que eu tire? — Olho para ele já mostrando minha insatisfação pela posição desconfortável, solto a faca ainda atravessada em meu ombro, ele vem para trás de mim. Paro para pensar um pouco e questiono.

— Você me viu lançando-o? Então estava lá.

— Eu estava perto.

— Está me vigiando? — falo virando a cabeça para trás.

— É um jeito de falar, eu prefiro dizer que estou protegendo.

— Eu pareço o tipo de “mocinha” que precisa de proteção?

— Não, eu não disse que estava protegendo você. — Ele torce a faca de supetão, fazendo a bala saltar de meu ombro, ela ricocheteia na parede antes de ir ao chão.

Eu me levanto da cadeira, pego a bala no chão e a jogo dentro do pires cheio de bitucas de Manson, do dia anterior.

— Ele esteve aqui.

— Quem?

— O Homem do pacote.

— O quê? Quando? — Ele fala colocando a faca na pia.

— Eu descobri ontem, depois que você saiu e eu desci para me alimentar. — Entrego a ele a taça com a etiqueta colada no fundo. Ele pega a taça usando um guardanapo de papel, lê e fica estarrecido.

— Eu preciso levar isso para a forense.

— Com o meu nome real na etiqueta? Vai dizer que encontrou onde? — Ele olha para mim sem saber o que dizer e recoloca a taça na bancada. — Eu tentei ver digitais, mas não encontrei nada.

— Eu vou pensar em algo para usar o DNA restante, a questão é como inserir em alguma cena anterior.

Ele olha para o fundo da taça notando a mancha seca de vinho.

— Ele é um vampiro?

— Isso é vinho, não abriu nenhum meu, então ele trouxe e levou a garrafa embora.

— É um recado pra você, tem ideia de quem poderia fazer algo assim?

— Eu tenho muitos inimigos, alguns são vampiros e outros não. Não sei quem, ou qual tipo seria esse. Não reconheço essa forma de agir em ninguém. Ele pode saber de mim por outros meios.

— Que meios?

— Como eu disse, tenho muitos inimigos. — Levanto, vou para o outro lado da bancada lavo minhas mãos e separo os temperos.

— Alguma informação nova hoje? — falo enquanto corto o alho, as cebolas roxas, amasso o louro e o alecrim junto do sal grosso, misturo tudo no vinho do porto.

— Sim, tem algumas novidades. Separaram uma equipe de legistas para analisar mais rapidamente os órgãos do freezer.

— Algo sobre a Cate?

— Ela estava inteira no envelope plástico. Fechada a vácuo tal como os outros órgãos, tudo indica que foi fechada quando ele ligou.

Paro e olho com pesar.

— Achei que isso nós já sabíamos.

— Sim, mas o estômago dela, estava cheio de comida, a mesma que deixou resquícios nos intestinos que estavam embalados.

— Você nunca me falou ele dava a mesma comida a todas.

— Não?

Balanço a cabeça em negativa.

— Era coisa fina, mas bem restritivo.

Ele pega o caderno do bolso do paletó e lê a lista.

— Ostras, nozes, pistaches, avelãs, rúcula e mostarda.

— Somente isso?

— Sim, não encontraram resquícios de massas ou grãos, era como se fosse algum tipo de dieta zero carboidratos. A investigação está considerando algum tipo de spa, ou dietas para emagrecimento.

Abro o saco plástico, colocando o cordeiro e o marinado de temperos na embalagem, tal como Mirian gostava. Fazer isso me acalma, apesar de tudo. Ainda com o resto de tempero em minhas mãos pergunto.

— Por quanto tempo foram alimentadas assim?

— Aparentemente, todo o período, pelo menos cinco dias, mas algumas ficaram oito dias confinadas.

— Estranho. Essa alimentação me lembra de uma dieta que estava em moda. A proposta era, basicamente, acelerar o metabolismo, e essas comidas eram indicadas por serem desintoxicantes.

— Foi o que uma das investigadoras disse. Mas pra quê?

— Provavelmente as partes que ele leva, tem a ver com o que ele pretende fazer. Talvez ele... — silencio aos poucos enquanto observo o cordeiro em minhas mãos e vejo a forma que fora desossado, a separação de sua perna da bacia.

— Talvez o quê?

Fico olhando para a divisão dos ossos e tentando aceitar que um ser humano possa fazer algo assim.

— Lucy, o que foi que você pensou? — Manson fala já nervoso.

— Ele não é médico.

Ele permanece em silêncio.

— Não. Essa dieta serve para desintoxicação. É conhecida como desintoxicação mediterrânea, usada entre povos persas para melhorar o sabor da carne. — Aponto para o osso da bacia do cordeiro, com as mesmas marcas da primeira vítima que vi. — Ele não está desmembrando para facilitar o transporte, não está montando elas como arte, está desossando... ele não fica com as partes, é um canibal.

Manson arregala os olhos, levanta da bancada ainda calado, vai para a varanda e acende um cigarro. Acho que está tentando processar todas as informações. Fecho o saco do marinado de cordeiro, limpo minhas mãos e coloco o saco na geladeira. Pego o celular e tento ligar novamente para Hidekki, aquele bostinha deve estar jogando Pokemón ao invés de atender ao telefone. Deixo o Manson defumando minha casa enquanto olho para o quadro na sala. Os cabelos de Lara, o leve sorriso de Antônio com sua mão em meu ombro, minhas mãos com um bordado e todos sentados no jardim. Naquele tempo eu fora tão feliz. Meus bons pensamentos são interrompidos pelo telefone, avisando da mensagem de texto.

 

“Vou falar com vc depois, tô atolado aqui. Até, Bjo. — H.”

 

Tudo bem, o que quer que seja não devia ser tão importante afinal. Deixo o policial chaminé na varanda e vou para o banheiro, no chuveiro, fico pensando nos detalhes, nos cortes, nas vísceras e na dieta. Estou deixando passar alguma coisa. Como ele sabe de mim? Por que faz questão de me mostrar isso? Por que quis entregar as vísceras a mim? Parece ser algo pessoal, alguém que me quisesse morta ou fora de controle e essas mulheres pagaram o preço.

— Está ficando cada vez mais interessante. — diz Mefisto sentado na privada. Ele usa minha toalha na sua cabeça e balança os pés na beirada da banheira.

— Está achando divertido? — falo para ele puxando a cortina que nos separa. — Ontem, foi muito estranho.

— O que?

— Nunca me aconteceu algo assim antes de eu não conseguir parar a dosagem do sangue de doação. Não era para ter sido assim.

Falo pensativa enquanto tomo banho.

— Não posso reclamar, estava quente. — Ele responde em um largo sorriso.

— É sério isso. Era como se o sangue não fosse filtrado.

Mefisto arqueia a sobrancelhas.

— Acha que você foi drogada com sangue? Que ele teria trocado as amostras quando entrou?

Olho para ele balançando a cabeça em confirmação. Ele sorri.

— Desculpa, eu estou achando isso maravilhoso, tão sádico. Vão disputar para ficar com a alma dele quando você o matar.

— Quem disse que eu vou matá-lo?

Ele inclina a cabeça a mim, olhando com desdém.

— Eu disse.

— Se você sabe de tudo, por que não fala logo quem é para eu adiantar o processo? — questiono o desafiando, sei que Mefisto adora um desafio.

— E qual seria a graça nisso? Você sabe que eu adoro jogos de azar. A casa sempre ganha, de uma forma ou de outra.

— É por isso que você não é bem-vindo no Reino Dele.

Termino o banho.

— Somos os dois, não é mesmo? — Olho para ele irritada. Arranco a toalha de sua cabeça e passo em volta de meu corpo. Esfrego o espelho embaçado de vapor e passo os hidratantes corporais.

Vou para o quarto, passo o perfume, maquiagem, visto um macacão de seda azul marinho, muito bem cortado e com um grande decote nas costas. Prendo os cabelos em uma trança embutida bem rente a cabeça. O pingente de água-marinha balança no meio das costas, enquanto a fina corrente de ouro branco fica à frente. Brincos curtos, scarpin Prada de verniz pretos. Mefisto fica na penteadeira, inalando o resíduo do perfume que sobrou no local, sorrindo de forma sacana, eu finjo não notar. Não tenho tempo pra isso agora. Assim que saio do quarto, os perfumes são substituídos pelo cheiro de cigarros baratos de Manson que já empestearam minha casa. Ele se vira e solta um alto assovio canastrão.

— Sweet christmas! Tem certeza que não quer matar ninguém hoje? — Mefisto ouve a fala de Manson e olha horrorizado para o policial de camisa manchada de café. Ainda bem que Manson não pode vê-lo, ou então eu teria problemas a explicar. Mesmo assim, Mefisto tem a vocação de ser inconveniente.

— Tão primitivo... só falta pintar as paredes com cinzas. — desdenha o demônio.

— Eu preciso ir, afinal hoje eu trabalho para o Clinton. — respondo para Manson e mostro o convite pomposo do evento.

— Esse pelo menos toma banho e lava as roupas. — fala Mefisto, olho para ele pedindo para que fique quieto, detesto várias pessoas falando ao mesmo tempo.

Manson abre o convite, lê murmurando as palavras até parar, solta um grunhido em desconforto.

— É o exibido daquele dia, não é?

— Se está se referindo ao que estava no leilão e na festa anterior, sim. Ele mesmo.

— Quer uma carona? — Oferece Manson.

— Aceito sim, obrigada.

— Sim! Vá, toda linda e cheirosa sendo entregue de carroça. — resmunga Mefisto, enquanto pega Hipátia no colo.

 

 

*********

 

Assim que entro no salão, dou de cara com o conjunto de taças vikings na mesa do hall. Apesar da decoração fina fico triste em ver que tal peça histórica tenha sido reduzida a um enfeite, sem toda a importância que merecia. Uma grande mesa do meu lado direito apresenta os diversos canapés, garçons passam rapidamente com drinks e vinhos. Repórteres, duas socialites que ainda não entendo por que são famosas, e um cantor de rap falam desorganizadamente. Um quarteto de cordas toca no fundo do salão para preencher os vazios de suas cabeças. Um monte de gente pretensiosa e bem-vestida no black tie, falando e comendo os canapés, vorazes pelo poder.

Um garçom se aproxima, na bandeja reluzente há vários espetos de prata, cada um atravessa um cubo de abacaxi, que fora embrulhada com uma fina camada do pastrami defumado. Eu recuso e logo em seguida sinto a aproximação de Clinton.

— Boa noite, minha querida. — Clinton chega já tocando em meu braço novamente. Ele gesticula para o garçom se aproximar, puxa uma taça de vinho e me entrega segurando minhas mãos. — Espero que nossa primeira taça a agrade.

Eu aproximo a taça do vinho branco, cheiro, observo sua tonalidade e provo. O sabor preenche inteiramente minha boca e desce fazendo carícias em minha língua.

— Minha nossa, você realmente conseguiu.

— Sim, é o nosso filho. — Eu engulo a seco, após ouvir essa.

— Ainda estou em dúvida se os convidados merecem prova-lo.

— Talvez seja melhor guardar para o lançamento.

— Justo.

— Você disse que tinha amostras de garrafas.

— Ah sim, mulher de negócios... — Ele coloca a taça na mesa. — Venha, vou lhe mostrar os rótulos propostos por meu designer. Espero que não se incomode com as pequenas mudanças que eu indiquei.

Ele me conduz pelo longo corredor e abre as portas de correr de uma biblioteca. As paredes são cobertas de livros de diversos assuntos e ao fundo há duas poltronas e uma escrivaninha. Pode-se ver um cofre no chão, próximo a uma das poltronas vermelho rubro. Na mesa mais alguns canapés e uma garrava de vidro com água e copos. Do outro lado, vejo outra estante, onde o tecido negro cobre o que provavelmente é a garrafa. Olho para ele que assente com a cabeça.

— Por favor, conheça nosso filho. — fala ele, me direcionando com a mão enquanto vai para o outro lado da biblioteca.

Eu me aproximo, levanto o lenço e vejo a garrafa verde escura, vinho branco, rótulo verde com detalhes em rosê. Em dourado o nome “Lucy Iordache” está estampado na garrafa. Antes que eu possa terminar de processar a informação ouço o disparo seco seguido da picada do dardo em meu pescoço, minha artéria esfria rapidamente. Eu me viro e vejo-o atirar ainda mais duas vezes de uma longa rifle de caça, consigo dar dois passos antes de cair no chão, paralisada. É muito difícil respirar. Ele coloca a arma na mesa e se aproxima cuidadosamente, me vira e passa meu braço dormente em torno de seu pescoço. Ao me carregar ainda faz um balançar para que minha cabeça penda em seu colo, como se fosse um carinhoso gesto.

— Pronto, vamos para um lugar melhor, querida. — Ao se virar para a porta, com minha visão já turva, reparo rapidamente nos canapés da escrivaninha. A bandeja de ostras, nozes, pistaches, avelãs, rúcula e mostarda se distancia enquanto eu fecho os olhos.

 


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