Sob controle (Lucy, Livro 1) escrita por Natália Alonso


Capítulo 6
Capítulo 6 - Pacotes




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“Na vingança e no amor a mulher é mais bárbara do que o homem.” - Friedrich Nietzsche

 

 

 

New Orleans

Mefisto me observa saindo de casa, vou até a moto e ele me julga em seus olhos amarelos.

— O que foi agora? — digo enquanto coloco o casaco e busco o capacete.

— Confesso que fiquei surpreso, quer dizer, fisicamente ele é até interessante, mas...

Viro os olhos ao ouvir sua lamúria.

— No momento estou preocupada com outras coisas. — Olho para o celular de Manson, verifico se não perdi a ligação.

— Sim, mas não me parecia tão preocupada enquanto estava apoiada na bancada da cozinha.

— E você ficou de voyeur?

Ele para com o flagrante como uma criança pega com o pacote de biscoitos antes do jantar.

— Eu não... não fico me comparando. O que me surpreende é sua mudança repentina. Agora mesmo, já esqueceu o neandertal na cozinha e agora está dando uma de policial, pelo que me lembre você mesma disse que não voltaria a fazer isso.

— Você deve ter visto então o vídeo, não acho que a preocupação do homicida seja com o Manson, mas comigo. É como se ele estivesse me mandando um recado.

— Por que pensa isso?

Lembro dos olhos da vítima, sua posição. Em minha mente a imagem da vítima se transforma no rosto de Mirian, suas pupilas leitosas me olhando profundamente, me cobrando, por que não veio antes? O som de bombas e fogo se mistura em minha mente e é imediatamente cortado pela voz de Mefisto.

— Por que pensa isso? — Ele repete.

— Eu não tenho certeza, é um pressentimento.

O celular do Manson toca seu alerta na minha mão. Um número privado, são 10p.m. pontualmente.

— Sim. — atendo apreensiva.

Fiquei em dúvida se ele ou você atenderia, mas sei que não iriam querer que outra pessoa se machucasse à toa. — A voz distorcida do outro lado fala calmamente, pretensiosamente. — Estão no carro?

— É só eu.

Como?

— Ele não virá. É só eu.

Ele ri do outro lado da linha.

Então posso imaginar que não está gravando essa ligação, ele teve escolha de não participar do nosso encontro, Lucy?

Fico em silêncio. Mefisto arqueia uma das sobrancelhas e desaparece em sua névoa esverdeada.

Isso ficou ainda melhor do que eu esperava. Pegue sua moto, e siga o caminho que estou enviando agora. — O celular vibra me notificando da localização por GPS que ele mandara.

Ligo a moto, coloco o capacete, encaixando o celular contra o meu rosto e sigo pela rua, na direção indicada no celular.

— Por que está fazendo isso? Vai entregar evidências, se entregar?

Calma, tudo ao seu tempo. Você guarda seus segredos, eu prefiro que me conheçam, que respeitem o meu legado. Não aquele monte de besteiras ditas no jornal sensacionalista.

— Que necessidade de autoafirmação. — ele ri. Ouço o barulho de passos, um salão talvez.

Além disso, sinceramente acho você irá se interessar.

— Eu? Por que acha isso?

Acho que pode acabar participando, ou até mesmo se divertindo com isso, tanto quanto eu.

— Não acho que vemos diversão nas mesmas coisas.

Não que eu saiba. A quanto tempo não se alimenta? Está com sede hoje?

— Por que o interesse?

Pensei em te oferecer um drink. Eu guardei boa parte da última garota. Tem alguma preferência?

— Dispenso.

Interessante. — Ele faz uma pausa, posso ouvir algum barulho do outro lado da linha. — Isso é realmente uma pena. Está realmente empenhada em fingir ser apenas uma humana, por isso que está ajudando a polícia? Vire à esquerda agora.

Dirigindo na direção indicada, percebo estar me afastando cada vez mais da cidade. Aproveito um semáforo fechado para pegar o meu celular e ligar o GPS. Prendo-o no estofado do banco, caso aconteça alguma coisa poderão me rastrear por ele. Mas não posso ficar em silêncio, ele não pode perceber a minha ocupação. Ouço um gemido, seguido de sua risada.

— O que é isso?

Lucy, confesso que estou feliz que tenha decidido vir só, estou até um pouco ansioso. — Sua voz fica abafada pelo barulho de máquina, como uma turbina ou ventilador potente. — Você me fez mudar meu estilo, só para te agradar.

— Está com outra mulher aí?

Ah, não vai querer estragar a surpresa, sem pressa, garanto que ela está viva, agora. Se ficará bem, depende de você mesma. — A voz distorcida gosta de provocar.

— Você pretende matá-la também?

Não, hoje é você quem vai matar a garota.

Eu dirijo sob suas instruções e, minutos depois, chego a um grande galpão, aparentemente abandonado, na região periférica. Era uma antiga fábrica de tecelagem, ainda pode-se ver o logo carcomido pela ferrugem no alto. Tudo a volta está escuro, ratos correm próximos as paredes de vidraças amareladas. A porta metálica está entreaberta, a maçaneta está limpa.

Entre, fique à vontade. — Olho em volta e não vejo ninguém, absolutamente nenhum movimento. Viro-me e percebo apenas algumas casas à volta, degradadas demais para estarem sendo ocupadas.

— Como vou saber que isso não é uma armadilha? — falo pensativa.

Provavelmente é, mas você só saberá se entrar.

Eu puxo a pesada porta de ferro pela maçaneta, ela range e emperra na ferrugem. Evitando maiores ruídos, eu me encolho para passar pela porta lateralmente. Na estreita passagem, a beirada se engancha e rasga a manga de minha camisa branca. Vejo que as luzes estão quebradas, deixando a pouca luz natural da lua penetrar nas janelas trincadas. É possível ver ao fundo do galpão um vulto turvo atrás de vidros amarelados. A sala em que ele fica está acesa, corro direto para lá, salto na parede de vidro amarelo quebrando com meu corpo. Mesmo que eu o mate, será justo. Mas assim que me levanto na sala percebo que fui enganada.

O local onde parecia ser sua forma, na verdade é um manequim, uma caixa de som emite sua voz pelo emulador.

Estou decepcionado. Você não sabe seguir as regras do jogo. Era pra ser com calma, Lucy, você está acostumada a fazer bagunça e resolver tudo na base dos punhos.

— Não sou muito de obedecer.

Eu sei, Pietro também soube, talvez até Mirian, não é?

— Então você é um fã? Um stalker? Quer um autógrafo ou me matar afinal?

Ele ri.

Se eu quisesse te matar já teria feito isso, aliás, seria até interessante, você é resistente, poderia fazer isso muitas vezes. Se eu quiser um autógrafo, eu mesmo pediria.

Olho em torno procurando algum lugar que possa ter a possível refém.

— Você é só um louco. — saio da sala de vidro e percebo que o galpão tem algumas câmeras com luzes vermelhas acesas. — E pelo que posso ver, é covarde também.

Prevenido. Eu não sou tão resistente como você, ainda.

Caminho no galpão.

Vou te ajudar, está frio.

Viro meu rosto para a direita, um corredor tem as luzes acessas.

Está esquentando. — fala ele.

Caminho em direção ao corredor, vejo duas luzes direcionadas a um freezer industrial.

Vai ficar aí parada? Não está curiosa?  — Ele fala provocativo.

— Curiosos morrem cedo. — Os poucos passos que dou quebram os pedaços de vidro no chão.

Isso é verdade. Está bem quente.

Me aproximo da luz, vou até a frente do freezer, ele é moderno, branco e grande. Coloco o celular no chão, próximo ao meu pé. Com as duas mãos levanto a tampa e vejo inúmeros pacotes, etiquetados, quadrados e embalados a vácuo. Pego um deles e leio:

 

"Rebeca Garibaldi, 14/09/ 1997 – 20/06/2016"

 

Está catalogado, seu nome, data de nascimento, data da morte. Passo a mão tirando a umidade e reconheço um rim humano. Deixo-o cair de novo no freezer. Ele tomba sobre os outros, são muitos pacotes, todos quadrados, alinhados e posicionados uns sobre os outros. São estômagos, intestinos, pulmões, corações, fígados... eu recuo e pego novamente o telefone.

— Curiosas morrem cedo. — fala ele antes de desligar.

O som do tom contínuo do telefone ecoa enquanto olho plásticos transparentes, então noto um pé com unhas pintadas em um plástico, A pele está em uma cor normal. Retiro os pacotes de cima e reconheço Cate Shipperd, inteira em um embrulho, sua mão encosta no plástico transparente, sua boca entreaberta está entre o sangue!

— NÃO!!!

Carrego-a para fora do freezer, muitos pacotes caem lateralmente, se espalhando no chão imundo. Com as unhas, rasgo seu invólucro e a liberto do saco justo. Tal como um bebê de sua placenta, seu corpo nu está morno. Sinto que seu coração não bate, mas não está fria, ela ainda pode... a coloco de costas no chão e rapidamente começo a fazer as massagens cardíacas.

 

 

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, respiro em sua boca, fechando suas narinas com a mão. Não vejo nenhum corte, talvez o sangue não seja dela, ou nem seja humano.

 

 

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, respiro em sua boca, ela não está fria, não está fria ainda.

 

 

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, respiro em sua boca, sinto o gosto do sangue. Não é humano, ela devia estar viva quando ele a embalou.

 

 

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, respiro em sua boca, escuto as sirenes, a polícia chegou?

 

 

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, respiro em sua maldita boca, DROGA RESPIRA!

 

 

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, respiro em sua boca, os policiais entram. Eles apontam suas armas para mim, e mandam me deitar no chão.

 

 

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7...

 

 

31ºPD, SVU

 

— É ela a consultora que você comentou? — questiona Cris para Manson, enquanto serve a caneca do triste líquido morno a ser chamado de café. A Sala em que estou possui um vidro espelhado, mas isso não me impede de minha percepção sanguínea ver seus batimentos cardíacos através da porta e paredes. Sei que Manson está lá, assim como Cris, como outras duas pessoas mais ao longe.

— Ah, sim. Conseguiu os documentos de proteção à testemunha? Ela já esteve com um desses antes, por isso ela sabe como esses insanos pensam.

— Uma sobrevivente?

— Sim, isso mesmo. De um caso antigo de Nova York.

— Você poderia ter me avisado que era ela, chegou a falar sobre como encontrou o primeiro corpo?

— Ah, sim. Foi realmente uma coincidência.

Ele me observa pelo vidro espelhado rapidamente antes de encerrar a conversa com seu colega, é melhor não dar tantas explicações agora. Assim que entra na sala, ele puxa o fio da câmera da parede desligando o aparelho, se vira para mim e coloca uma sacola com uma camiseta e uma calça de pano vagabundo em cima da mesa. Agora perto, ele vê o que a mesa e a distância não o permitiam enxergar.

— O merda, você está coberta de...

Ele interrompe sua própria fala. É sangue de porco, o cheiro realmente não é dos melhores.

— Preciso que você assine seu depoimento — Ele coloca os papéis e a caneta na mesa, ao lado da roupa. — É melhor ser depois de se trocar, vamos precisar ficar com suas roupas para examinar tudo, já tiraram as fotos?

— Sim.

— Ótimo. Pegue, vista-se que eu te levo para casa.

Manson tenta disfarçar sua tensão, não quer perguntar muito na frente dos outros. Já imagino que fará seu próprio interrogatório depois de sairmos de lá. Mesmo após o banho de pia da delegacia, a pele ainda fica grudenta e com aquele cheiro férreo. Parte do meu cabelo ainda está pegajoso. Depois disso, eu aceito a carona de Manson até minha casa. No carro, ele me avisa.

— Você terá que consertar o cano que era suporte de sua bancada. Ficou um pouco bagunçado.

— Você não tinha a chave das algemas?

— Tinha. Mas elas estavam no bolso da calça, que estava um pouco longe... ainda bem que não estava tão apertado, ou então estaria lá até agora.

— Desculpe, não pensei nisso, apenas queria te atrasar.

— Tudo bem, estamos quites. — Assim que ele fala isso eu olho para o painel quebrado do carro.

— Então, tentou ressuscitá-la. Ele provavelmente a colocou lá no mesmo momento em que ligou, quando você chegou, não havia mais o que fazer.

— Sim, é provável.

— Não foi culpa sua.

— Eu já entendi.

— Lucy...

— Obrigada pelo que você fez, justificar a minha presença com uma vítima. Mas ao sair, as pessoas olhavam para mim com pena, acreditando que eu revivi todos os meus traumas mais profundos com aquilo. E a verdade é que não sabem de nada do que eu vivi.

— É mesmo? — ele olha rapidamente enquanto dirige. — E o que você viveu?

Não respondo.

— Está falando de Jasenovac?

— O quê? Como você...

— Que foi? Eu fiquei pelo menos uma hora algemado na sua bancada pensando no que fazer, lembrei da sua adaga da estante. Pensei em usá-la para me soltar. Então depois vi a placa numerada de alguma coisa em Jasenovac. Me chamou a atenção a suástica desenhada ao lado, achei um pouco estranho estar ao lado de uma adaga judia, e você me disse ser católica, então, algo não encaixa.

— Você descobriu tudo isso agora, antes de vir até a delegacia?

— Não. Eu já havia notado no primeiro dia que estive em sua casa. É incrível o tanto de informações que se encontra no Google, mas achei que fosse apenas um item de colecionador rico excêntrico. Isso era antes de saber que era uma vampira, deixei para falar agora.

Outro dia sequer sabia que a Transilvânia ficava na Romênia.

— O que quer saber?

— A adaga judia, é de sua família, ou a placa que era?

— Eu consegui a adaga a muito tempo atrás. A placa é um lembrete.

— O que aconteceu?

— Não saberia por onde começar.

— Pode começar pelo início, ou se preferir pelo final.

— Foi... eu me lembro de estar andando na neve, ouvindo o farfalhar do gelo sob meus pés...

 

 

Jasenovac – 1943

 

Após cuidar de cada torre, as coisas são mais fáceis, pois não preciso me esgueirar mais. O traje branco, mesmo que ainda rosado, me camufla na neve. Subo nos dormitórios coletivos dos soldados e posiciono os bujões de gás junto as escotilhas. Se isso fosse feito hoje em dia, o cheiro adicionado ao gás estragaria a surpresa. Esse cheiro peculiar é um sistema de segurança, afinal o gás GLP naturalmente não possui cheiro. Além de ser tóxico é altamente explosivo. Ao abrir seus lacres, o gás escapa rapidamente do bujão, eu acendo e a pressão faz com que a imensa labareda de fogo fique apenas do lado de fora.

A falta de oxigênio dentro do botijão não o fará explodir, a não ser que ele seja perfurado. Este é um excelente lança-chamas caseiro. Três botijões em chamas jogados no dormitório coletivo, fazem com que algumas dezenas de nazis comecem a gritar. Eles tentam sair do dormitório, mas o diesel com açúcar na entrada também passa a queimar. O açúcar cria uma textura pegajosa, cobrindo braços e pernas, o fogo não se apaga facilmente. Eles não podem sair e queimam como insetos caídos na fogueira.

O dormitório da frente ouve minha celebração macabra. Logo saem atirando em minha direção no alto do dormitório em chamas, meus aliados também saem e tornam aquilo uma guerra. Muitos dos fracos trabalhadores sequer sabem atirar, mas isso não importa, eles lutam com mais honra do que os que aprisionaram. Eu corro entre telhados e jogo as granadas no depósito de armas, os soldados não poderão se abastecer.

Salto para o chão, o meu desejo é de apenas sangue. Com a afiada adaga faço cortes múltiplos e precisos, sempre girando o corpo. Atinjo seus cotovelos, joelhos, clavículas e garganta. Ao final de uma sequência em linha reta cinco caem ao chão. Outro atira em meu ombro me fazendo inclinar para trás, então salto sobre ele e me alimento ali mesmo, na frente de todos. Aquilo é um animal que se vê como superior aos outros, eu também sou e irei me sentir nutrida de sua vida miserável. Alimentada, eu jogo a adaga no peito de um e outra nas costas de outro, corro e pego de volta as facas. Gostei delas, acho que as levarei comigo como lembrança.

Atiram na minha perna, isso dói. Mas nutrida assim ela para de sangrar quase que no mesmo instante. A bala, ainda quente, cai na neve e seu calor derrete o gelo a volta, causando um pequeno vale ao lado de meu pé. Distraída observando a bala e o cretino atira em mim novamente, atingindo minhas costas. Eu me ergo, corro e puxo o fuzil dele, batendo em seu rosto usando o cabo da arma, ele cai no chão. Eu continuo batendo mais uma, três, quatro vezes. Paro quando não vejo mais o seu rosto e minhas costas está curada.

Agora, eu atiro nos cretinos. Seus uniformes negros são ótimos alvos na neve. O filete de sangue é visível mesmo no escuro, pelo menos para mim. Eles não sabem, mas quando eu era criança eu caçava cervos com meu pai, com arco e flecha. Os cervos deviam morrer em um único tiro "seja implacável e generosa" ele dizia. Implacável em matar com perfeição e generosa de forma rápida e indolor. Escuto dois homens suplicantes, eles se ajoelham jogando as armas. Em alemão eles imploram: "por favor, eu me entrego" dizia um, "eu não tinha escolha..." dizia o outro. Eu atiro no rosto do primeiro, me curvo até o segundo e digo.

— Sempre há uma escolha. — Ele começa a orar, eu encaixo o fuzil no ombro e atiro em seu rosto.

A noite se torna clara com o fogo dos dormitórios. O rugido do fogo é como várias vozes, algumas mais altas quando há uma explosão de granada. Os jipes também estão sendo queimados pelos prisioneiros, agora tão monstruosos quanto seus algozes. Vejo uma placa de identificação de cima dos dormitórios "Jasenovac, 1943", deve ser a data da construção daquele galpão. O local em que eu estava, a sala 22, onde morri muitas vezes e lembro de cada uma delas. O cheiro do sangue ferve no ar e eu ainda estou com sede. Nesta noite, eu irei me alimentar, me saciar. Hoje, não serei generosa.

 

 

New Orleans

 

Ele fica sem reação ouvindo tudo. Sem dizer uma palavra. Apenas dirige me levando para casa. Em alguns momentos, percebi que ficara nervoso, em outras, quase que aliviado.

— Então, quando reuniu os prisioneiros, naquela noite, vocês prenderam os nazistas ou eles fugiram?

— Eles morreram. Se alguém escapou foi por muita sorte.

Ele franze a testa. Aperta os lábios em desaprovação.

— Eu sei que era uma guerra, eu já tive que servir e não foi um bom período. Nem sempre os soldados concordam com as ordens. Nem sempre eles têm escolha realmente.

— Isso fez diferença para Mirian?

— Não. Mas para você e os outros faz diferença.

— Eu entendo que queira defender o que acha certo, mas eles não são mais...

— Mais o que? Eles não são mais humanos por obedecerem a ordens de um tirano? Eles viraram monstros? E você é quem decide isso?

Quem sou eu para julgar quem é ainda humano ou não. Mefisto estaria rindo dessa situação, isso se não estiver de fato.

— Desculpa, eu não estou falando isso pra te criticar, é apenas... é fácil eu julgar de fora, se eu estivesse lá... não sei como seria.

As luzes da rua passam rapidamente, uma após a outra iluminando rapidamente sua face.

— Então, lá eram judeus, ciganos, gays... tinham os trabalhos forçados também?

— Sim.

Ele me olha, em dúvida.

— Eu não entendi, Mirian estava lá por ser cigana, mas e você?

— O que tem eu?

— Você não é negra, nem cigana, nem judia...

Olho duvidando de sua ingenuidade.

— Mirian era minha esposa, morávamos na Sérvia quando alguém nos denunciou e nos levaram.

Ele balança a cabeça duas vezes antes de olhar novamente pra mim.

— Pera, que?

— Eu não sei se eles sabiam ou não que o que eu era. Não importa. Oficialmente fomos levadas por sermos gays, eles a colocaram nos trabalhos forçados e rapidamente fui levada para os estudos.

Minto, pois não sei o quanto a informação de que nazistas estavam tentando criar soldados vampiros pode atormentar Manson. Mas percebo que ele ainda está em choque não exatamente por isso.

— Ah! — diz com os olhos arregalados — Então você e Mirian, na verdade...

— De toda essa situação, esse é o ponto que realmente te surpreendeu?

Mefisto ri no banco de trás do carro, ele coloca os pés sujos entre os bancos apoiados no freio de mão. Eu sempre odeio quando ele aparece assim, somente para mim e ignorando a presença de outras pessoas, fico confusa de como reagir.

— E lá vamos nós... — Mefisto fala entre risos — é agora que ele deixa escapar o moralismo...

— Não! Eu não estou julgando nada. — fala Manson, visivelmente sem graça.

— Não, claro que não. — completa Mefisto.

— Eu só não achei que você também...

— Ah, me desculpe, eu não sabia que eu tenho que usar um uniforme gay agora, ou que eu deveria te informar sobre isso...

— Não, tudo bem, é que... — ele pigarreia um pouco antes de continuar — talvez eu não tivesse tentando te beijar hoje se soubesse disso.

Mefisto explode na risada atrás no carro.

— Eu acho que isso não importa muito agora. — respondo a ele com um sorriso no rosto, deixando claro que gostei da investida.

Manson murmura orgulhoso enquanto coloca a mão em minha coxa.

— Mas ele tem medo da concorrência. — Mefisto sussurra no meu ouvido em tom debochado antes de desaparecer.

Ele manobra o carro na porta de minha casa. Assim que estaciona e puxa o freio de mão, me indaga quanto a sua curiosidade desde que me conheceu.

— Afinal. Todos os vampiros morrem e voltam como você?

— Não. Somente eu faço isso.

— E qual a razão disso?

— Vampiros são transformados por meio da mordida e da venda de sua alma.

— Interessante, nas histórias falam que é só morder que se transforma.

— Não, ou então toda vez que um se alimentasse, acabaria criando inúmeros vampiros. Haveria muito mais vampiros que humanos.

— Faz sentido. Mas ainda não explica você.

— Quando fui transformada, o meu transformador vendeu a minha alma para Mefistófeles. Porém a minha alma não pertencia a ele ainda, e acabou fazendo uma venda de algo que não tinha.

— Ele enganou o diabo?

— Não exatamente, mas, o contrato ficou mais complicado. E o inferno leva a burocracia muito a sério. Então eu sou uma amaldiçoada, mas minha alma não pertence ao inferno. Por isso, tenho que voltar.

— Mas e o seu... como devo chamar... vampiro criador?

— O que tem ele?

— Ele ainda está vivo?

— Não. Está morto, há muito tempo.

— Ele era um daqueles vampiros poderosos?

Suspiro antes de responder o que já era tão claro a mim.

— Vlad Tepes. Sim, era poderoso.

— Hum, desculpa, não conheço por nome.

Eu rio.

— Ah, conhece sim. Ele era o primeiro Drácula.

Ele arqueia as sobrancelhas, finalmente para de questionar e eu posso sair do carro. Ficamos em silêncio até a entrada, ele se oferece para dormir em casa, afinal o "Homem do pacote" sabe de mim. Eu aceito que ele fique, mas para consertar o cano da bancada.

 

 

*********

 

Estamos na sala, o jantar está servido em nossos pratos. As batatas, costela de porco e maçãs assadas perfumam a pequena sala. Mirian tem os cabelos louros, cacheados e os olhos castanhos claros. Seu rosto de queixo muito delicado sorri para mim, enquanto bebemos vinho branco naquela noite. Ela não sabe o que sou, eu me alimento de animais quando consigo sair sozinha, inclusive do porco que está na nossa mesa. Ela é muito doce para aceitar algo assim, acho que teria medo de mim. Eu a amo demais para magoá-la. A vitrola distorce um pouco o som "Smile", a voz aveludada de Nat King Cole preenche a pequena sala. Esse disco fora comprado a muito custo, disseram que a música faz parte de um filme, mas ainda não pudemos ver.

 

Smile though your heart is aching - Sorria, mesmo que seu coração esteja doendo

 

Smile even though it's breaking - Sorria, mesmo que ele esteja quebrando

 

Alguém bate à porta. Assim que me aproximo para abrir, a porta é violentamente arrombada. A madeira bate em meu rosto fazendo-me cair de costas. Vários homens entram correndo em fila e o último a entrar caminha devagar com seus passos largos, a madeira range em seus pés. Quando eles vieram, sabiam o que eu era, vários ficam a minha volta enquanto um deles dá um soco no rosto de Mirian e ela cai desacordada no chão. Xingam-me de porca romena, um usa o cabo da escopeta no meu rosto e estômago. Eu levanto afinco minhas garras no pescoço dele. Os outros me esfaqueiam as costas, um de patente mais elevada se aproxima e me esfaqueia na barriga, ele move a faca subindo até meu estômago. Eu caio sangrando e vejo alguns de meus órgãos caídos no tapete. Pareço a droga de um peixe estripado, sendo preparado para o assado.

 

That's the time you must keep on trying - Este é o momento que você tem que continuar tentando.

 

Eles estão sobre mim, muitos chutes, trazem uma algema com esferas metálicas que prende minhas mãos inteiras, os protegendo de minhas garras, eles sabem o que eu sou, posso ouvir um deles falando a palavra fera em alemão. O joelho em minha cabeça me força virar a cabeça e vejo o rosto de Mirian. O Cabo Ionan ordena que a levantem a coloca sobre a mesa de jantar, sua barriga fica sobre os pratos. O assado é derrubado no chão, eles seguram suas mãos.

— Uma cigana e uma porca. — esbraveja em alemão para os soldados — faltou ela provar algo de verdade.

Os soldados guincham imitando sons de porcos para ela.

 

You'll find that life is still worthwhile - Você descobrirá que a vida ainda vale a pena.

 

If you just smile - Se você apenas Sorrir.

 

Ele a toca nas pernas, ela se debate. Ele bate em sua cabeça com a garrafa d'água e ela desmaia na mesa. Ele fala obscenidades enquanto corta suas roupas. Eu grito enquanto minha alma morre no tapete.

 

— MIRIAN! — Eu grito assustada na cama. Manson entra no quarto rapidamente, ele está com o cabelo sujo de poeira de consertar o encanamento da cozinha. Vem até a cama e tenta me conter, ainda não estou totalmente acordada e acabo cortando seu peito com minhas unhas. Ele se irrita e me empurra contra a parede para me acordar. O solavanco é o suficiente para me acordar, mas muito longe de ser considerado gentil. Ele percebe e se aproxima em seguida.

— Voc-você, está bem?

— Eu... — Recobrando a consciência, percebo que estou encharcada de suor. — sim, eu estou bem.

Me sento na beirada da cama, tentando me reequilibrar. Manson leva a mão no peito sentindo o arranhão superficial que fiz, geme com o suor na área afetada.

— Isso foi um pesadelo ou lembranças ruins?

— Os dois. É melhor você ir embora.

— Você tem certeza?

— AGORA, MANSON.

Ele não gosta muito disso. Acho que ele esperava dormir comigo na mesma cama, abraçados como um casal romântico.

— Humana ou vampira, mulher é tudo maluca. — resmunga irritado, pega a camisa na cadeira e vai embora. Ouço a porta da sala bater.

Levanto-me e vou ao porão pegar uma unidade de sangue. Minha mão treme, faz muito tempo que não me alimento. Essa sede é algo que preciso controlar, se me alimentar muito posso perder o controle, se não beber o suficiente começo a ficar cada vez mais fraca e envelhecida. Ao descer, algo me chama a atenção. Ao lado da escada tem uma mesa, nela está uma taça de vinho, usada. Pego a taça, aproximo do meu rosto e identifico, o cheiro é de chardonay. Eu não tenho nada dessa uva aqui, olho em volta, e não encontro a garrafa. Eu duvido muito que Manson trouxesse vinho. Alguma coisa está muito errada, olho novamente a taça e reparo em sua base, embaixo de seu pé, vejo uma etiqueta. Uma etiqueta tal como as que estavam nos pacotes do freezer escrito:

 

"Lucy Iordache – 26/12/1431 – 5/07/2016"


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