Sob controle (Lucy, Livro 1) escrita por Natália Alonso


Capítulo 4
Capítulo 4 – Família




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“Antes de nascer novamente, é preciso morrer...” – Lucy Iordache.

 

 

 

Jasenovac — 1943 — antes do fim

 

Entrando pela janela do dormitório do Cabo, rastejo até sua cama. Ele acorda, pressentindo minha chegada e estica o braço para pegar a arma na mesa ao lado da cama. É tarde demais, já estou com sua pistola encostada em sua têmpora. No móvel ao lado há uma lamparina, a bola incandescente ilumina parcialmente o ambiente. O querosene velho causa essa coloração em tom amarelo-mostarda, deixando um cheiro peculiar e intragável.

— Por favor, não dê chilique, Cabo Ionan. — Ele vira seus olhos para mim e depois o rosto, devagar. — Agora, me diga onde está Mirian Wazowski? Para que setor vocês a levaram?

Ele me olha inteiramente antes de responder. Minha roupa rosada ainda traz a marca de minha fuga, do sangue de seus homens. Seu rosto fica pálido, muito mais alvo do que minhas vestes, como que não acreditando que estou ali, diante dele.

— Você é aquela da sala 22?

Ele me pergunta quase sem acreditar no que vê. Eu sorrio forçosamente, mostrando minhas presas.

— É realmente impressionante sua regeneração.

— Quero saber de Mirian Wazowski.

— Eu não guardo nomes, terá que ser mais específica.

— Você a levou pelo braço até o dormitório seis e estava lá quando rasparam os cabelos louros encaracolados dela.

— A cigana? — Ele fecha um pouco os olhos e sorri. — Ah sim, agora lembrei quando busquei vocês duas naquela toca. Você é a porca romena.

Eu aperto a pistola.

— Se atirar, vão ouvir, esse lugar terá dezenas de soldados em minutos.

— Se eu atirar, você morre. Acha que me importo com os soldados?

Ele engole seco.

— Ela não tinha tanta serventia, a classe dela vai trabalhar nas roupas e fornalhas.

— Ela não está mais lá, para onde a transferiram?

— Agora? Você não soube? — fala um pouco nervoso.

— Saber do quê?

— Você ficou muito tempo na sala 22, não poderia...

— Saber do quê?!

— Dois dias atrás, houve um superaquecimento nas fornalhas, causou uma explosão. Se não está trabalhando, está na vala mais recente.

Uma furtiva lágrima cai em meu rosto. Sinto uma forte dor no peito se misturando ao desprezo pelo homem à minha frente. Fecho os olhos com força e me controlo para ainda questioná-lo.

— Como chegaram até nós?

— A Ustase é ótima para encontrar ratos, mas vocês se multiplicam rápido demais, é difícil fazer a limpeza. Pelo menos as vezes encontramos espécimes úteis para os estudos, nossos soldados serão ainda melhores.

Respiro forte, olho para o lado. Aperto a arma com força sobre a cabeça dele, que afunda no travesseiro.

— Me matar não vai trazê-la de volta. — Ele diz, suando como um animal suplicante, seu cheiro exala me deixando enojada. Quando estou alimentada, todo cheiro fica mais forte, quase intoxicante. Eu o olho em seus lençóis azuis-celestes e pijama de algodão, suas mãos para cima o colocam totalmente entregue.

— Não, não vai... — Eu baixo a arma, desencostando de sua cabeça. Ele fecha os olhos, aliviado. Mas antes de voltar a falar uma de suas barbáries arregala suas pálpebras com minhas mãos em sua garganta.

Eu aumento devagar a força e rapidamente seu rosto se torna vermelho. Ele puxa por baixo do lençol uma faca escondida, me acerta na lateral do abdômen. Ajoelho em seu peito, ele puxa a faca e ainda perfura minhas costelas duas vezes, na segunda, já segura a faca de forma fraca. Continuo olhando seus olhos, cada vez mais embargados, sua pele cada vez mais rubra. Olho calmamente, quero observar cada detalhe, gravar esse momento sublime. Duas pequenas veias estouram no canto interno dos olhos, eu me aproximo um pouco de seu rosto, queria ver o rosto de Mirian em sua pupila, mas só encontro a mim mesma, decepcionante. Sua mão se solta da faca cravada em meu corpo e pende lateralmente. Eu continuo pressionando e seu coração pulsa devagar. Continuo apertando até ouvir e sentir um estalar, seu pescoço está solto. Não sinto mais qualquer pulsar, não há nenhuma resistência.

Solto minhas mãos e trago as palmas para meus joelhos, fico olhando para sua boca cerrada e olhos paralisados. Penso em Mirian e quero chorar, mas não agora, não é o momento. Sinto a pontada me incomodando, então tiro a faca do meu abdômen, o corte se fecha instantaneamente como se nunca tivesse existido. Me levanto e apago a lamparina do criado mudo devagar, e coloco a faca ao lado. Vou embora adentrando na penumbra da noite novamente.

 

 

New Orleans, 2016, na escola

 

Eu me lembro vagamente de ter olhado para o menino encolhido em meus braços. Um grande estrondo fora seguido pelo silêncio, e depois, um zumbido em meus ouvidos. No meu ombro esquerdo sinto a mão de Manson me chamando, eu viro meu rosto para ele e sinto cheiro de queimado e muita poeira entrando em minha garganta enquanto tento respirar. Ele grita, eu o vejo, mas só ouço o zumbido. Estou com dificuldade de me manter acordada, sinto minhas costas ardendo. Acho que vou dormir um pouco agora.

 

 

7º Círculo do inferno — A Violência

 

Nesse círculo é possível ouvir gritos ao longe, provavelmente aqueles que pagam a penitência individual. Esse não é o serviço de Mefisto, ele é o cara dos negócios, não o policial, nem o juiz. Executivos, políticos, religiosos e músicos aparecem na sua lista pessoal com certa frequência. Fiquei até decepcionada por ter visto alguns nomes famosos, outros, não me surpreenderam.

— Voltou rápido dessa vez! — diz Mefisto, um tanto animado em me ver.

— Não foi planejado. — Levanto a cabeça do chão e olho para ele atordoada.

— Para você, aqueles três iam vir de qualquer maneira hoje.

— Não deveria estar recepcionando seus convidados?

— Eu te falei, são de Bel, não meus. E eu tenho funcionários para isso — ele se abaixa estendendo a mão para mim. —, além do mais, eu não te deixaria esperando, seria pouco cortês.

Rio, mas fico ofegante. Ele olha e como sempre, debocha.

— Ainda bem que você não é mais primata. Se não, iria ficar uma marca feia nas costas.

— Você não presta. — respondo enquanto ele me pega no colo, aninho meu rosto em seu peito inalando o cheiro de alecrim e algo picante.

— É o meu charme. Não se preocupe, eu serei gentil.

Sonolenta e aliviada por estar lá, ás vezes morrer é o melhor remédio.

 

 

New Orleans, em minha casa

 

Acordo com o ronronar de Hipátia em meu colo. Levo alguns segundos para reconhecer o porão de minha casa. Estou sentada na cadeira, com os braços para trás de seu encosto metálico. Tento me mover, mas percebo que estou algemada e meus braços e tornozelos estão imobilizados com silver tape, foi um reforço quase inteligente. À minha frente, no chão, há um pires de porcelana, com inúmeras bitucas de cigarro. Manson fuma, tremendo sua mão direita e olha fixamente para mim. Percebo uma queimadura recente na lateral esquerda de seu rosto, começa próximo do olho e se estende até a orelha. É pequeno, mas acho que ficará uma marca.

— Você voltou. Voltou de novo, merda. — Ele anda de um lado a outro. — Eu vi sua pele se formando novamente em suas costas, achei que estava alucinando, então você respirou... EU VI! Droga, eu tenho certeza que atiraram em sua cabeça, quando voltou eu achei que tivesse me enganado, que tinha sido de raspão. Mas então, você cuspiu a bal... Como que você... QUE DIABOS É VOCÊ?

Olho para o lado e vejo que ele abriu todos os armários de meu porão. Acabou por encontrar o meu estoque pessoal, minha geladeira com unidades de sangue. Aqui guardo também algumas antiguidades, algumas que comprei, outras que consegui manter comigo. Em uma parede tenho uma adega particular, na outra, as bebidas das quais preciso.

— Tenho mesmo que explicar? Ver o que viu e encontrar isso, não é o suficiente? — respondo, voltando o meu olhar a ele.

— E-eu... eu não sei o que eu vi. E isso é impossível. — Ele está irritado, leva o cigarro à boca e dá uma tragada profunda.

— O mundo já é louco demais, já ouviu falar que todo mito tem um fundo de verdade?

— Uma vampira? Então você é imortal?

— Você me viu morrer. Duas vezes.

— Mas voltou...

Eu apenas o sigo com o olhar.

— Eu apenas... não posso ficar lá. Eu tenho que voltar.

— Você se queima no sol?

— Assim como você. Não viro uma tocha humana.

Então ele tem um lampejo e puxa o pequeno crucifixo dourado do pescoço. Eu rio.

— Não seja ridículo. Na verdade, eu sou batizada e já tive educação bem tradicional eu diria.

Isso foi a muito tempo. Muito tempo. Ele leva a mão no rosto, indignado.

— É por isso que financia o Banco de Sangue de New Orleans? Assim você não come as pessoas?

— Eu não... eu não como pessoas! — respondo sarcasticamente. — Não sou uma canibal, apenas vampira. Eu preciso do sangue, infelizmente. E com as unidades de doações, posso suprir as necessidades sem ficar... sem perder o controle. O sangue fresco é muito mais forte.

— Então você tem desejo por isso? Sente desejo quando demora a se alimentar?

— Sim.

— Tipo um viciado, um alcoólatra?

— Ah... não diria isso. Não é da mesma maneira.

Não sempre. As vezes sim. Teve tempos que eu prefiro não lembrar.

— Que habilidades você tem?

— É sério isso? Vai preencher uma ficha por acaso? — Suspiro, sem muita paciência com o interrogatório.

Merda, ele está acendendo outro cigarro, não pretende parar de me interrogar até minha casa estar inteira empesteada de cigarro.

— Agilidade, força, regeneração, olfato, percepção sanguínea e algumas brincadeiras em paredes e teto.

— O que seria uma percepção sanguínea?

— Sinto o pulsar de seu coração, quase posso ver o sangue correndo em suas veias. — Rio por um momento ironicamente. —  Posso notar que seu coração estava acelerado e se acalmou nas últimas falas. Agora está acelerando de novo.

Ele não gosta da resposta. Apaga o cigarro, pela quantidade, não será dessa vez que irá deixar o vício.

— Estaca no coração?

— Dói bastante.

— Cortar a cabeça?

— Dói menos.

— Isso... isso parece brincadeira para você? — interpela nervoso.

— Brincadeira? Você está agindo como um idiota, parece que voltamos para a idade média. — Pauso por um momento e pergunto. — Como está o garoto?

— Ele está bem. A professora e as crianças mal viram algo, estão em choque. Droga, eu tive que te trazer no meu porta-malas, rezando para que você não voltasse lá dentro. Eu nem sabia se queria que você permanecesse morta, ou que revivesse novamente.

— Para o seu azar, aqui estou.

— Por que foi no meu escritório?

Suspiro, paro por um momento, penso no que devo dizer.

— Eu precisava recuperar minhas digitais. Não queria que você cruzasse dados de outras regiões.

— Cruzar dados?

— É, descobrir minhas digitais em outros lugares e épocas.

— Você sabe que não existe esse negócio de banco de dados gigantes interligados que um policial sabe de tudo o que acontece no país todo, não é?

— Foi o que eu percebi, mas só depois que estava no seu gabinete.

— As coisas não funcionam assim. Apesar de existir um sistema, a maioria dos casos é feito com papéis mesmo. — Ele faz uma pausa, acende mais um cigarro e retorna a falar. — Quão velha você é?

Eu olho um pouco incomodada.

— Desculpe, foi indelicado da minha parte... mas devido as circustâncias...

— Nasci em 1431, eu tinha 26 anos quando fui transformada. Sou vampira a 559 anos. — Ele para um pouco, levantando os olhos devagar, talvez fazendo as contas, ou tentando acreditar em tudo que ouve.

 — Existem muitos como você, bebendo sangue de doações?

— São raros, pois, a maior parte já foi caçada, exatamente por não serem discretos. Mais raros ainda são os que não atacam pessoas.

— Vocês pretendem dominar o mundo, ou coisa assim?

Reviro os olhos antes de responder.

— Se eu quisesse dominar o mundo, não acha que já o teria feito isso há uns quatrocentos anos? Olha, eu sei que é estranho, mas não é como nos contos infantis. Aqueles em que o monstro se transforma em morcego e morde pescoços em becos escuros. Eu não fazia isso nem na Idade Média.

Ele parece mais satisfeito com minha resposta, seus batimentos caem.

— Se eu te soltar, irá me matar pelo que eu sei?

— Manson, você viu o que eu posso fazer. Se me trouxe de carro sabe que eu quebrei seu painel. Essas algemas não me seguram. Se eu quisesse, já teria me soltado, mas não estou a fim de quebrar o pulso de novo para isso, estou cansada e gosto dessa cadeira.

Ele olha irritado, ao mesmo tempo que parece esboçar um sorriso.

— Não vou lhe fazer nada. Eu prefiro que acredite em mim.

Manson andava de um lado para o outro nesse rápido interrogatório. Mas agora, sua mão não treme mais. Ele dá uma última e profunda tragada, atira o cigarro no chão e pisa. Enfia a mão no bolso, tira as chaves e fica observando, quase que dizendo para si mesmo “faça logo antes que mude de ideia”. Ele vem atrás de mim e abre as algemas. Volta para minha frente e tira um canivete do bolso, com um corte rápido, rasga as inúmeras camadas de silver tape de meus braços atados na cadeira. Ao se abaixar, reparo que afasta a pele dos tornozelos antes do corte, gentil. Olha para mim, recuando um passo e baixando o canivete devagar. Eu trago meus braços para frente, seguro Hipátia em meu colo, levanto e me viro para a escadaria.

— Vai querer ficar aí no porão? Podemos conversar na sala pelo menos? — Ele observa meu movimento, guarda o canivete no bolso e me acompanha. Enquanto subimos a escada me questiona.

— Você matou Rebeca Garibaldi?

— Não.

— Por que virou no beco?

— Porque senti cheiro de cadáver.

Subimos até a cozinha, posso notar do corredor a bagunça em meu quarto e algumas coisas jogadas no chão. Uma das gavetas de meu armário está entreaberta, era a que eu guardava roupas íntimas e as luvas. Olho para Manson questionando o estado em que deixou minha casa.

— Eu estava procurando evidências, não me preocupei em deixar arrumado.

Eu apenas me viro, depois eu limpo minha casa. Coloco a gata no chão, viro-me para a bancada da cozinha, pego duas taças e ofereço uma a ele. Sirvo o vinho, ele cheira antes de tomar o gole.

— Por que vinhos?

— Tive uma fazenda e produção, a alguns anos.

— Alguns? — fala depois finalizar a taça em um segundo gole.

— Era 1750... não me lembro. Isso não é whisky para beber dessa forma.

— Nunca fui muito de vinhos, teria outra coisa?

Abusado.

— Desculpe, mas não esperava visitas.

Um longo silêncio fica no ar.  

— Por que está fazendo tudo isso?

— Isso, o que?

— Entrou na escola, me ajudou com os reféns.

— Por que eu podia.

— E o que ganha com isso?

Olho em torno, vejo uma placa de Jasenovac, daquele campo de concentração e algumas peças de uma catedral saqueada na Espanha.

— Já teve a sensação de que nada do que você faz ou vive importa? Já vi nascerem e morrerem de velhice tantas pessoas, algumas ficaram famosas, mas são tantas que ninguém sequer imagina que existiram... apenas queria deixar de ser a testemunha disso tudo.

— Não entendo.

— É... eu sei. Eu também só entendi depois de algum tempo.

Ele fica em silêncio, mas então levanta as sobrancelhas em barganha.

— Essas habilidades que você tem, talvez seja útil em na investigação.

— Está pedindo minha ajuda?

— Me parece justo em troca do meu silêncio sobre... seus hábitos.

Eu sirvo mais uma taça a nós.

— Eu não sabia que estávamos negociando.

Minha fala é interrompida pelo rádio ruidoso na cintura dele.

— SARGENTO MANSON!

— Na escuta.

— Encontramos outro pacote.

 

 

*********

 

Eu aguardo na sala de espera da JFClinton. O hall espaçoso e iluminado é finamente decorado, seu piso de mármore róseo e negro, forma uma delicada mandala no centro do piso. O sofá de couro branco encostado na parede é muito macio, suave demais para o meu gosto. Quanta ostentação, claramente uma forma de intimidar negociantes. Clinton abre a porta de correr em vidro fosco, sua camisa branca tem um acetinado levemente brilhante. Com seus olhos de mel, me avalia de cima a baixo, como um predador. Tolice a dele em achar que eu sou a presa.

— Querida, que bom que aceitou minha oferta.

— Eu ainda não aceitei. Vim exatamente para saber mais desse terreno e ver se realmente posso auxiliá-lo.

— Ah sim, é claro. Por aqui, por favor.

Ele me encaminha para o seu escritório, puxa uma cadeira para que eu me sente à mesa. Curvo-me para ver a tela do computador, mas ele usa o controle remoto para apagar as luzes e iniciar o projetor.

Sua fala é quase ensaiada, tenho a impressão dele sentir-se um grande orador. Um que necessita de plateia. Começa pelas sementes selecionadas geneticamente, as que tinha pensado e as que podem ser usadas. Fala dos tipos de leveduras pré-selecionadas. Me mostra fotos da fazenda e me entrega uma pasta. Ele se encosta na mesa, ficando em pé ao meu lado, sua cintura fica na mesma altura de meu ombro. Ousadamente ele se curva, mais próximo do que o adequado, finge me auxiliar a abrir a pasta, é claro. Vejo os gráficos pedológicos, da alcalinidade e proporção mineral do solo. De fato, ele estudou muito o meu livro e pesquisa.

— Este solo me parece o ideal para as uvas genovesis, tende a ficar mais verde-amarelo-pardo. E se equilibrar a proporção de potássio no solo o vinho tende a ficar Demi-sec, sem necessitar de correção após a filtragem. — falo enquanto observo as tabelas a minha mão iluminadas pelo data show.

— Sim, seria perfeito. Então, você acompanhará o processo?

Suspiro por um momento fechando a pasta em minhas mãos.

— Está bem, farei a consultoria com seu produtor.

— Excelente. Ah, uma pergunta indiscreta, você prefere rosa ou branco?

— Perdão?

— Para o rótulo.

— Ah sim, rosa. Rosa escuro ou rosê, costumam combinar com o verde da garrafa.

— Vou avisar aos meus designers. Se permitir a sua assinatura no rótulo...

— É claro, por que não.

Ele acena para uma mulher à porta, que traz uma bandeja com um prato de canapé e taças de champanhe.

— Um brinde a nossa parceria, o vinho que combina o melhor da produção, com o melhor dos paladares.

O tilintar das taças ecoa na sala espaçosa. Antes que eu possa beber, ele me interrompe segurando bruscamente minha mão

— Espere! O steaek tartare deve estar na boca junto do champanhe.

Olho para a bandeja, minha mão pega um de seus canapés e levo-o a boca. Toco a taça dele novamente e bebo. O líquido se mistura à carne finamente cortada em grânulos, temperada em azeite extravirgem e zatar. Uma mistura agradável. Não é à toa que ele é um grande crítico gastronômico. Minha especialidade é vinhos, mas apenas isso. Ele me observa mastigando e depois repete o meu movimento. Sorri cinicamente de lado. É sério isso? Ele vai ficar me cantando agora? Meu celular corta o silêncio constrangedor de mastigação, avisando que chegara uma mensagem.

 

 

“Lucy, eu achei algo que vc vai querer ver ^^, me encontre no Starbucks Café mais tarde. H.”

 

 

Leio e rapidamente coloco o celular no bolso da calça.

— Desculpe. Mas eu tenho um compromisso para mais tarde. Algo mais em que eu possa ajudar?

— Eu farei uma reunião com alguns amigos na minha casa, no próximo sábado, se você me der honra de sua presença...

— Ah, eu não sei se...

— Eu insisto. — fala ele, novamente tocando minha mão, pressionando contra a base da taça — Não se preocupe, são apenas amigos próximos. E o meu designer estará lá, quem sabe até lá ele já tenha alguma opção de rótulo para aprovação.

— Está bem, eu farei o possível.

 

 

31ºPD, SVU

 

Manson chega na delegacia. Está visivelmente atormentado, pois acabara de vir do necrotério. Pega uma caneca de café na bancada do corredor e caminha para a porta de seu escritório quando Cris, seu colega investigador, bate em seu peito uma ficha recém impressa e avisa.

— Acho que temos um problema.

— O que é dessa vez? — Ele fala enquanto laceia um pouco o nó de sua gravata, pega a ficha e a segura com a mão esquerda. — O que eu preciso ver aqui?

— Essa última vítima, a loira, era sobrinha da atriz Anna Gyllenhaal.

Ele levanta os olhos e olha para o lado antes de praguejar.

— Merda. Isso já saiu pela identificação do legista? Tem o contato dos responsáveis por ela?

— Os pais e a atriz estavam dando uma entrevista na televisão agora pouco.

Ele fecha os olhos querendo não acreditar no que ouvira.

— Qual o problema dessa gente? Não falam mais com os policiais e vão logo dar entrevista? Nenhum advogado disse a eles que isso só traz mais notoriedade ao assassino? O filho da puta miserável deve estar muito feliz com a divulgação grátis das vítimas! — Ele fala enquanto toma mais um gole de café, coloca a caneca na beirada da mesa sem cuidado e ela cai no chão, quebrando e espirrando café em seus sapatos. Ele passa a mão na cabeça, aperta os olhos e volta para Cris.

— Tem mais alguma outra notícia para mim?

Eles são interrompidos por uma policial que bate à porta antes de falar.

— Sargento?

— Sim, Dolores.

— Tem uma ligação para você. Ele disse que é Agente e Psiquiatra do FBI.

 

 

*********

 

No Starbucks café peço um puro, um brownie expresso e para chamarem o Hidekki. Em alguns minutos, vejo o garoto correndo de dentro da cozinha trazendo minha bandeja e um pão de queijo roubado na sua boca. Ele se senta comigo na mesa, sacando seu smartphone e engolindo o assado quase sem mastigar. Hidekki é muito inteligente, com apenas 17 anos já possui bolsa para diversas universidades de programação e robótica. Mas está trabalhando no Starbucks do pai para juntar dinheiro e viajar ao Japão quando puder. Ele é divertido, uma figurinha.

— Não vai acreditar no que eu encontrei, Lucy.

— Hidekki, cuidado por favor.

— Ah tá, desculpa, eu esqueço. Porque você não faz logo o registro de seu nome original. Fica mais fácil não acha?

— Todo mundo aqui me conhece por Miryan, só você sabe. Quer dizer, era só você.

— Como assim? O que aconteceu?

— Depois eu lhe conto. Você não ia me mostrar algo?

— Ah sim. Então, estava procurando uma música cyberpunk daquela banda croata das meninas de sainha, quando eu vejo o link do filme do Dr. Strange, cara que filme foda, mas você sabe que eu preferia que os poderes tivessem aparecido mais para o final, pois o CGI...

— Hidekki. — interrompo sua fala cheia de úteis informações. — O que é cyberpunk?

— A música, a banda. Ah esquece. Eu achei o quadro que uma vez você me falou, vê se é esse... — De impulso eu agarro seu celular, acabo segurando suas mãos junto do aparelho. Ele solta e eu tenho dificuldades de centralizar. A tela gira, mas finalmente vejo a imagem. É ele, o quadro original, Antônio, Laura e eu, pintados a óleo. Era uma pintura tosca na época, mas antes do renascimento, tudo era muito tosco, principalmente na Espanha. Me emociono, muito, levo minha mão a boca, um pouco chocada. Fico lembrando dessa época e logo depois não quero mais lembrar.

— É esse? — questiona o asiático adolescente.

— Co-como você encontrou isso? Onde ele está?

— Boas notícias, está para ser leiloado. É de um lote de itens de contrabando, foi encontrado em Marcella. Será um leilão on-line, você pode comprá-lo daqui, se quiser.

— Está brincando?

— Se você quiser eu posso te ajudar no computador. São eles mesmos? É você ali né?

— Sim... — Encosto na cadeira atordoada com a notícia. Fazia tempo que não ficava tão... feliz.

— Eu achei que vocês não podiam ter filhos.

— Filhos são uma bênção, não podem ser gerados por... eu não sou bem-quista no Reino Dele. Eu era parteira na época, atendi a esposa de Antônio, mas Laura estava virada e a mãe acabou falecendo. Aquilo era o final da Idade Média, não sabíamos muita coisa. Eu auxiliava Antônio a cuidar da criança e acabamos nos aproximando. Laura era minha filha, não importa o que dissessem, e Antônio... bom, ele não tinha medo de mim.

— Eu não tenho medo de você.

Eu sorrio para ele.

— Você é um maluco, um asiático vegetariano que gosta de rock e hentai. Mas é um amor — Eu sorrio e o abraço.

 


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