Sob controle (Lucy, Livro 1) escrita por Natália Alonso


Capítulo 3
Capítulo 3 — Selvagens




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“Sempre passa. Sempre cicatriza. É só uma questão de tempo.” — Lucy Iordache.

 

 

 

Jasenovac — 1943 — no dia seguinte

 

Não é fácil fazer uma fogueira. Mirian fazia em poucos minutos, acostumada a mudanças constantes e acampamentos da família. Apesar do pai ser croata, sua mãe era cigana, então ainda mantinham muitos hábitos tradicionais. Eu, nunca consigo em menos de algumas horas, perdi essas habilidades após 1800, virar uma nobre literalmente me emburreceu. O calor do fogo foi o que me manteve viva durante a noite. Seria patético sobreviver à fuga e acabar morrendo de hipotermia. Uma ave e um rato estranho que não consegui definir, foram o café da manhã. Difícil mesmo foi tomar banho na água congelante do rio, eu não estava mais sob efeito da adrenalina do dia anterior. A neve à minha volta destaca cada fio vermelho do sangue que escapa do tecido enquanto lavo minhas roupas, ficou ainda manchada em um rosado pastel, não que isso importe.

Eu olho de dentro do rio o lugar em que estou. Árvores escuras, arbustos, pedras e as poucas folhas que sobraram nas árvores estão cobertas pela neve. Além do vermelho, apenas o marrom da margem do rio se destaca. Espero o anoitecer para descer a colina e retornar até o campo de concentração, me esgueiro desviando das luzes noturnas de vigia.

Abaixada na cerca de arame, observo a movimentação dos malditos nazistas. O campo de concentração de Jasenovac era de extermínio, e trabalhos forçados. Negros, ciganos e homossexuais eram os principais grupos que vinham para cá. Mas como em quase todos os campos, havia a parte de “estudos científicos”. Era onde levavam aqueles que consideravam interessantes.

Até hoje, não entendo como chegaram a mim. Simplesmente bateram na porta e invadiram a casa. Levaram Mirian e eu. Ela foi para os trabalhos forçados, já eu, para os estudos dos senhores Frankenstein. Quando chegaram, ficou claro que eles já sabiam o que eu era. Eles foram por mim, não por nós.

Observo onde guardam as armas, o combustível e onde dormem os prisioneiros. Espero anoitecer, vou até o dormitório dos exaustos trabalhadores, me apoio na janela entreaberta. O grande galpão é preenchido por dezenas de beliches enfileirados. Não há colchões, apenas a madeira e uma manta para cobrir os fracos sobreviventes.

— Pss, psiu... — chamo, tentando ser silenciosa.

Uma prisioneira, cansada do dia de trabalhos compulsórios, olha ao redor.

— Eu vim para ajudar. Sabe onde está Mirian? Mirian Wazowski?

— A cigana loirinha? Ela trabalhava nas fornalhas. Mas não a vejo há alguns dias.

— Talvez a tenham transferido, para os serviços internos dos comandantes. — fala outra mulher da cama ao lado. — Uma vez vi que aquele do carro chamou, soldados tinham levado ela e outra mais alta até ele.

A primeira olha apreensiva.

— Eles ficam no prédio de janelas vermelhas, elas devem ainda estar lá.

Ficamos em silêncio ao ouvir passos de um soldado ao longe. Confiro se não tem ninguém nos observando.

— Eu vou procurá-las hoje, mas amanhã se preparem. Preciso que as mais saudáveis me ajudem. Irei tirar vocês daqui, mas preciso que lutem por suas vidas. Muitos podem morrer lutando.

Outra mulher responde da cama à frente.

— Podemos, já não estamos mortas? — diz ela, com um de seus olhos cortados e sua aparência é cadavérica.

Nesta hora levanto os olhos, percebendo que muitas estão acordadas. Observam aos montes, silenciosas e apreensivas. Tolice a minha achar que estariam dormindo. Tinha me esquecido o medo de soldados vir durante a noite. Você acorda com o mínimo dos barulhos.

— Fiquem preparadas, amanhã.

 

 

New Orleans, 2016

 

Lápis de olho preto, sombra marrom, um tom mais escuro e esfumado no côncavo, o segundo mais claro no centro, passo a máscara de cílios. Abro a gaveta à minha direita e pego um batom laranja escuro. Estou sendo observada.

— Agora vai ficar aí de voyeur? — digo para ele, sentado em minha poltrona ao fundo do quarto.

— Está mais calma hoje? — Ele fala com seu cínico sorriso de lado. Mefistófeles é um dos demônios do inferno, um dos mandachuvas. Sempre bem vestido ainda que forma desleixada, hoje é um terno de linho bege claro e camisa azul marinho. Seus pés estão descalços e sujos. Adoro como apara sua barba, o desenho em suas bochechas. “O demônio é sempre atraente”, minha mãe dizia.

— Você me irritou ontem. Sabe muito bem, que não faço tratos com você.

— Não mais. — Eu apenas olho de lado, sem gostar muito da resposta. Ele responde enquanto passa a mão nos cabelos, tirando as mechas cacheadas da frente do rosto. Um de seus chifres curtos e torcidos fica mais aparente, eles saem do alto da cabeça pelas laterais, um lindo bode.

— Mas, mudando de assunto. Está bonita, como sempre. Se não gosta dessas festas por que vai? — Seus olhos amarelos tem a íris fendada tal como uma serpente, já perdi as contas quantas vezes me perdi naquele dourado.

— Hoje é diferente, sou uma das investidoras. Você sabe, o Banco de Sangue de New Orleans passou por investimento e uma reforma recentemente.

— Ah sim! Foi muito esperto. Não se pode roubar o que já lhe pertence. Uma boa maneira de se obter o sangue, mas bem que poderia fazer como antigamente? Foi um período divertido em Moscou, você não se importava com essas formalidades.

— Eu não sou mais assim. Nunca mais serei. — respondo irritada enquanto penteio o cabelo.

— Meu amor, você precisa parar de se preocupar com os primatas. Esquece que eles não se importam com você? — Ele para por um segundo pensativo — Na verdade, eles se importam sim, já esqueceu de quantas vezes eles providenciaram seu encontro comigo?

Paro, olho para ele pelo reflexo do espelho.

— Não esqueço, mas infelizmente eu também nasci “primata”. — falo enquanto monto o coque de cabelo.

— Ninguém é perfeito. — responde, olhando para as próprias unhas. Me viro e vejo que a lama de seus pés cai em meu tapete.

— Seus pés estão sujos, poderia ao menos tomar cuidado?

— Desculpe, força do hábito. Sabe que adoro esse apelido, é hilário... “o pé sujo; pata de bode; chifrudo; canhoto...”. — Ele ri, pensa um pouco e completa. — De onde será que criaram essa conversa de pata de bode? E coitados dos canhotos!  — Ele fala enquanto faz um gesto e a terra desaparece no ar como se estivesse sendo soprada.

— Não faço ideia. Deve ser só mais um dos períodos de amplo preconceito.

Ele se levanta, aproximando-se e faz um carinho em meu pescoço. Puxa uma mecha de cabelo, soltando-a em meu ombro.

Ele se abaixa farejando meus ombros, eu paraliso. Se ele continuar acabarei atrasada no evento.

— Eu adoro esse perfume.

— Eu sei.

— Por que está usando?

— Por que eu quero... o que é isso? Ciúmes? — interpelo, olhando através do espelho.

— Aqui você faz o que quiser, é livre. — fala ele se afastando.

— Aqui? Pelo que eu me lembre, lá também.

— Detalhes de um contrato malfeito. Mas, o acordo entre nós, este sempre vale.

— Não me lembro de ter assinado nada. — falo rindo. — E se algum dia eu mudar de ideia? Você me obrigaria?

— É claro que não, o que pensa que sou? Um primata? — Ele fala em tom indignado, fica pensativo e deixa escapar certa insegurança. — Você mudaria de ideia?

— Eu não acho provável. — digo sorrindo após terminar de passar o batom.

 

 

*********

 

Na festa beneficente, está tudo correndo nos conformes. Nada como juntar um bando de ricos, que usam como desculpa o desejo de ajudar os carentes. Mas, na verdade, estão lá para aparecerem nos tabloides. Adoro esse colete da Channel. É preto com detalhes no bolso e lapela em branco. Visto uma camisa vinho por baixo que o completa muito bem.

— Espero que o jantar esteja à sua altura. — fala Clinton, chegando com seu perfume enjoativo. Hoje sua camisa de linho azul claro dá um ar menos pomposo, então reparo que ele usa abotoaduras. Achei que só os ingleses e idosos ainda usassem tal adorno.

— Oh sim! Ainda não provei, mas sei que estará. Seus jantares são muito famosos. — Detesto comer fora.

— Não ficou irritada pelo conjunto viking, não é?

— O quê? Não, imagina. Não tem problema. — Olho rapidamente em volta e meu olfato capta uma nova figura entrando no salão. — Com licença, mas eu preciso verificar uma coisa. — Deixo o idiota engomadinho e atravesso o mar de engravatados. Vou até o policial na recepção.

— Olá, seja bem-vindo a festa Beneficente do Banco de Sangue de New Orleans. — falo para Manson, enquanto noto que sua camisa está manchada de algum molho na gola. No paletó marrom escuro há um leve rasgado no bolso direito.

— Obrigado. — Manson masca o chiclete de nicotina, falando, quase com desdém. — Então, é assim que você se sustenta?

— Entre outras coisas, sim.

— Preciso fazer algumas perguntas a respeito do que encontrou a dois dias atrás. — diz ele em tom baixo, ele está tentando ser discreto?

— Algum problema?

— Não. Só preciso checar algumas informações.

— Precisa ser aqui? Agora?

Ele masca o chiclete e me olha de cima a baixo como se desse de ombros.

— E você com esse paletó rasgado... Santo Deus. Venha comigo. — Eu o conduzo para a chapelaria. Peço um paletó alugado e entrego nas mãos do policial. — Vista isso pelo menos, a festa inteira não precisa saber que você é um policial.

Ele olha para a veste quase como se indicasse cansaço. Coloca na bancada enquanto tira o seu empoeirado para vestir o outro.

— É só esse o problema? — Ele fala baixo, mas com tom incisivo.

— O que quer dizer? — Eu faço um gesto para que ele arrume a gola.

Ele olha para mim, e reprova alguma coisa em pensamento.

— Nada. Que horas mesmo você disse que tinha saído da outra festa?

— Você se importaria de esperar eu fazer o pronunciamento dos sócios?

— Claro, eu posso assistir.

Preferia que ele ficasse lá fora, mas é possível contornar isso.

— Então mais um amigo de nossa querida Miryan chegou à festa? — fala Clinton, chegando rapidamente à sua frente. Nada é tão ruim que não possa piorar.

— Eu não... — Manson tenta responder um pouco encabulado; parece que até ele ficou encabulado do quanto o almofadinha é inadequado.

— James Franklin Clinton — Ele apresenta-se simpaticamente, enquanto estende a mão. — É um prazer recebê-lo em um evento com meu buffet. — Manson para e olha por um instante antes de estender a mão e cumprimentá-lo em um sorriso paralisado.

— O que o senhor oficial veio buscar? — responde Clinton enquanto ainda segura a mão de Manson, ele para em dúvida, mas percebe que ao tirar o paletó seu distintivo e arma na cintura chamam a atenção.

— Agradeço a recepção, mas eu só vim trazer algumas notícias a Miryan, não sabia que o evento já tinha começado.

— Mas todos são convidados, inclusive temos uma categoria para pequenos colaboradores.

Isso foi desnecessário.

— Eu prefiro doar para a creche perto de minha casa. — responde o oficial. Ele não leva tapa de almofadinhas, tem meu respeito.

— É uma bela reunião aqui. — Cate chega invadindo, isso só pode ser um pesadelo.

— Eu tenho que sair, vamos fazer o pronunciamento.

— Mas nem me apresentou. — Ela rebate, Clinton interpela.

— O policial... Não disse seu nome.

— Sargento Manson.

— Olha só, um herói de carreira. Miryan está envolvida em alguma enrascada? — Ela só falta sacar o celular gravando como uma arma.

— Não. Por enquanto não. — responde Manson.

Eu sorrio, pensando em técnicas suicidas.

— Eu vou me meter em uma enrascada se eu não for agora com meus sócios. Fiquem à vontade para beber e fofocar aqui.

Manson olha irritado com minha fuga, ele que lide com as duas pedras. Clinton chama um garçom para pegar a taça e oferecer a ambos, Cate pega junto dos canapés, Manson recusa, indica para a própria boca a presença do chiclete de nicotina.

— Acho que prefiro ficar de fora, mais fresco. — fala enquanto tira com certo cuidado o paletó, tenta ser convincente. Ele se despede de Clinton com um aperto de mão e a mim com um cumprimento com a cabeça antes de sair.

— Não se preocupe sargento, não vou deixá-la escapar. — diz Cate em uma piscada de olho, entre um gole e outro de champanhe.

É definitivamente um pesadelo.

O policial pousa a peça emprestada no balcão e dá as costas, irritado. Enquanto seu cheiro de café, cigarro e suor se distanciam, me viro para fazer a abertura, o mestre de cerimônias já olha para mim.

A festa finalmente tem andamento, entre sorrisos falsos e cheques exibidos pude pensar. Não tem motivo de eu me preocupar com a vinda dele aqui, só veio conferir, não é? Ele não sabe que eu fui até seu departamento, eu lembro de ter colocado o vidro na janela de volta. Clinton me interpela me arrancando de meus pensamentos.

— Ainda não a vi provar meu buffet.

— Ah sim... — Estendo a mão, pego um canapé aleatório da bandeja mais próxima, e levo a boca. O carpachio temperado com mostarda escura e tomilho se desmancha na boca, em um sabor deveras familiar. — Minha nossa, isso é bom!

— Receita de família, exclusividade. Mas, estou tentando seu contato por outra razão.

Paro doando minha atenção.

— Sabe, na verdade eu acabei de comprar uma pequena vinícola em San Andreas. Solo alcalino e mineral, tal como seu livro dizia ser o ideal. Gostaria que fosse até a sede da JFClinton, para orientar meu produtor. Quero que ele consiga fazer o primeiro vinho americano que fique no seu ranking.

— Eu não costumo mais fazer consultoria. — respondo logo após engolir o delicioso canapé. Estranho como por um instante sinto meu instinto e sede de sangue aflorar por um segundo.

— Por favor, eu insisto. Considere isso uma ideia inicial de valor. — Ele coloca um papel dobrado no bolso do meu colete.

Não consigo pensar direito. Ele acabou de tocar no meu peito?

— Eu vou pensar. Entrarei em contato.

Quando a festa acaba, e os paparazzi vão embora, me despeço dos sócios para minha liberdade, já está amanhecendo. Pego o papel de meu bolso e paro de andar ao ler o número dois seguido de tantos zeros. Isso é bastante dinheiro, o suficiente para fazer duas ou até três identidades novas. Eu não tenho problemas financeiros, longe disso. Tive tempo e heranças suficientes para juntar uma considerável fortuna. Mas, esse não é exatamente um troco e pode ser que eu precise. Droga, vou ter que visitar o almofadinha. Do lado de fora é fácil identificar o policial apoiado em um carro velho, fico surpresa por aquilo ainda andar.

— Pronto, aqui estou. — digo a Manson bastante irritada, mas ao mesmo tempo conformada.

— Aqui não. Entra no carro.

— Agora você quer discrição?

Ele abre a porta do carro, do lado do passageiro e aponta para o seu interior.

— Entra na droga do carro! — fala enquanto cospe o chiclete no chão.

Eu entro. Ele dá a volta, entra e senta-se no banco do motorista, fecha a porta e escuto o pino baixando ao meu lado. Não me parece um bom sinal. Ele me olha com o corpo um pouco virado, para ficar de frente para mim.

— Tem algo a declarar? — questiona-me de forma fria, merda.

— Se eu souber do que se trata.

— Seu depoimento original, estou te dando a oportunidade de falar a verdade.

Eu olho em volta, não posso simplesmente matar alguém na rua, mesmo no carro.

— Eu disse tudo o que sabia.

— Como você sabia que o corpo estava lá?

— Eu o encontrei assim que virei...

— De onde estava, não tem visão para isso. Você teria que se aproximar para ver, e se fez isso, é por que já sabia que tinha algo ali. Por que foi para lá?

— Acho que ouvi o plástico...

— Ouviu o plástico? Quer mesmo que eu acredite que virou em um beco sem saída no escuro por causa do barulho de um plástico?

— Eu não sei, apenas fui olhar?

— Foi conferir se já tinham encontrado seu pacote? Ou foi lá ver se algum rato já tinha encontrado?

— Que merda é essa? Eu não... acho que simplesmente virei, foi uma intuição.

— Sua intuição a fez sair ontem à noite também?

— O que?

— Onde estava ontem, após as 23p.m.?

— Em casa.

— Alguém pode confirmar isso?

— Minha gata apenas, estava sozinha.

Ele suspira, olha de lado e responde.

— Sabe, eu fui cabo no Afeganistão e fazia as perguntas para terroristas e para civis. Digamos que, eu sei quando alguém mente para mim! — Eu também sei, mas é pelo batimento cardíaco. — E eu queria saber, por que está tentando evitar essa investigação? O que você foi fazer no meu escritório ontem à noite?

— Eu não sei do que está falan... — Ele tira do paletó velho um saco plástico com minha luva dentro e joga em meu colo.

— Fiquei imaginando, quem teria motivos para invadir um gabinete policial. Mexer em uma ficha em cima de minha mesa... algumas folhas ficaram fora da ordem. Você não me parece que matou a garota, estou te dando crédito ainda, mas tem algo que não está me contando, essa, é hora de falar.

— Só posso dizer que é uma luva bonita.

Ele suspira.

— Não a conhece?

— Não, nunca vi.

— Estranho, essa foi a que encontrei em sua casa, duas horas atrás. No seu armário, segunda gaveta, ao lado das meias. Essa aqui é a que encontrei no parapeito da minha janela. — fala, puxando um segundo pacote, mas sem tirar completamente do bolso.

Eu me viro mais lateralmente, estava pensando que se eu atingir sua jugular ele não faça muito barulho. Fico surpresa que não percebi que nesse momento ele já está apontando a arma para o meu rosto. — Vou lhe perguntar mais uma vez. Por que está tentando evitar essa investigação?

— E-eu... não tenho como dizer.

— Tente.

Penso em falar, mas o que posso falar? Acabo engolindo e me calando.

— Ok, pode ser aos poucos então. — Ele puxa um par de algemas, pega meus pulsos e me prende ao painel do carro — Vamos conversar mais tarde. Uma noite em um lugar sem lençóis de seda te farão bem.

— Linho.

— Linho, seda, tudo coisa de gente rica. — Mal sabe ele em que lugares já dormi.

Ele dirige, por alguns minutos, está indo para a delegacia. Eu fico pensando o que direi: “ é que estava tentando pegar as minhas digitais, pois não queria que soubesse que sou uma vampira de mais de 500 anos...”. Minha nossa, como farei para sair dessa sem ter que deixar um rastro de destruição? O silêncio do carro é cortado pelos gritos do rádio:

— SARGENTO MANSON! — berra alto e chiado.

— Na escuta. — fala Manson pegando rapidamente o rádio.

— Ainda está na terceira avenida? Preciso de reforços na oitava. Um grupo invadiu uma escola. Agora não querem soltar a professora e mais três crianças, os caras são malucos. Os reféns que escaparam disseram eles têm explosivos. Alguma merda terrorista, não tem ninguém da negociação disponível.

— Estou indo. — Ele desliga e vira a direção do carro rapidamente.

— Você vai lá negociar?

— Cala a boca.

— Se eles têm explosivos, é porque não tem medo de morrer. Eles nem se importam com isso.

— EU MANDEI CALAR A BOCA!

Em poucos instantes, o carro para na lateral da escola primária. Merda, entendi por que ele está tenso, crianças pequenas torna tudo com mais... emoção. Vejo uma mãe abraçada a um policial, chorando copiosamente. Outras viaturas e carros fazem uma barreira impedindo a entrada dos muitos curiosos. Estranhamente não tem repórteres, parece que ninguém liga se é em um bairro de periferia. Manson sai rapidamente do carro, recebe um colete extra. Ele já vestia um por debaixo da camisa. Enquanto o vejo vestir o colete percebo seus batimentos aumentarem. Ele tem medo de morrer. Agora, a mulher aos prantos o agarra pelo braço, ele fala alguma coisa e é segurada por dois policiais. Ele tira o coldre e arma da cintura, conversa com o colega e pega o alto falante.

— Peter! Aqui é o Sargento Jones Manson, 31ºPD, SVU. Estou desarmado. Por favor, fale comigo está bem?

— Eu disse que falaria com o padre, não com um qualquer! — grita o homem de dentro da escola.

— Vai ter que se contentar comigo. Olha, eu só quero conversar. A Luise e as crianças não têm nada a ver com essa história, vamos conversar.

— O demônio está nela! E nos pequenos também! Eu quero purificar, você não entende, cara!

— Eu entendo, eu estou indo aí para te ajudar, viu? Sem armas! — Ele levanta o coldre com a arma, mostrando aos homens de dentro da escola, e coloca encima do capô do carro. Entrega o megafone e anda em direção a entrada.

Fico observando de dentro do carro quando sinto a presença dele, a névoa verde dá lugar a sua voz vindo do banco de trás. 

— Eu juro, Madame, tudo o que eu tinha, era só para consumo próprio. — diz Mefisto encostado no engradado, em uma piada fora de hora.

— Shiu. — Eu aqui tentando acompanhar tudo e ele interrompendo com suas gracinhas.

— Por que os primatas têm a mania de me culpar por suas ideias de merda? Ain, tem demônios nela, vamos explodir, vamos queimar a bruxa...

Não respondo. Fico observando Manson entrar. O homem que berrava na janela parece estar em uma sala de aula, do lado direito da escola. Talvez na segunda ou terceira sala da pequena escola.

— Isso vai ser interessante. — fala Mefisto, apoiando-se no encosto.

— Por que interessante?

— Estou esperando esses aí há tempos, hoje eles descem. Não comigo, não vai ser da minha ala, Belzebu está esperando.

— E as outras pessoas?

— Isso depende, não está acertado ainda. O que você está fazendo? — Enquanto ele fala, eu apoio o pé no painel e quebro o suporte que prende as algemas. — Você não vai estragar a festa, vai?

— Enquanto você se diverte com a situação, inocentes podem acabar feridos. E eu não vou ficar aqui sem fazer nada.

— Todo dia tem gente inocente se ferrando.

— Não é todo dia que isso é na minha frente. — Procuro rapidamente a chave reserva, não encontro, então não me sobra opção a não ser apoiar o pé no painel e quebrar a peça forçando com meus pulsos. Com a corrente fragilizada consigo abrir meus braços.

— Por mim tanto faz. As crianças nunca descem mesmo, é raro. Mas acontece de vez em quando. Lembra daquele que pegava o irmãozinho? — Ele apoia os pés descalços na grade, apoia-se no encosto para assistir seu entretenimento.

Deixo-o falando sozinho no carro. Eu tiro os scarpins de verniz, caminho abaixada para que os outros policiais não me notem. Eles estão ocupados segurando a mãe chorosa. Dou a volta no jardim escolar e entro por detrás da escola, pelo sistema de ventilação. Ainda bem que estou de calças. Engatinho pelo sistema de ar, seguindo as vozes, até chegar na sala de aula. Encontro uma saída na parede, atrás da mesa do professor.

 Manson fala com os homens. Um deles usa com um colete de dinamites caseiras. Ele apoia a mão no ombro da professora sentada na cadeira infantil. Ela está apavorada, cheira a medo, o suor a denuncia. As duas meninas e o menino de no máximo 5 anos estão no canto da sala, agachados. Juntos das prateleiras de livros, entre lápis de colorir e giz de cera. O segundo homem está em pé, ele apoia a mão no revólver em sua cintura, é uma arma grande. O terceiro está na porta, com uma escopeta. Uma arma de amplitude é um problema em um ambiente fechado e cheio de gente.

Eu saio pela estreita abertura da parede, fico lembrando de quando eu atuei na KGB. Era diferente. Lá não tinha essa “negociação”.

— Eu acredito em vocês. Só me deixa ajudar, ok?

Eu observo escondida e penso no que posso fazer. Manson desabotoa a camisa mostrando a fina corrente no pescoço com uma crus dourada.

— Eu juro cara, o fogo vai limpar. Os demônios vão voltar para o inferno, eu sei disso. — fala o homem, visivelmente entorpecido por algum tipo de droga. Ou talvez a pior de todas as drogas, a fé, conheci alguns assim, não são boas memórias.

— Como você sabe? Já testou se um sacrifício já não faria o mesmo efeito? — Manson fala tentando negociar com eles, ou apenas tentando enrolar.

Sempre vi aquele padrão de “tira bom e tira mau”, comigo ele foi o tira mau, mais incisivo. Parece que ele sabe bem oscilar os papéis, tenta convencer os insanos para evitar que consigam o que querem.

— No gato não deu certo. A minha mãe continuava com o demônio, mas quando eu a cortei os dem...

— Tá, eu entendi. Mas olha, se a gente os separar. Sabe, fazer um de cada vez. Porque se um ver o outro, podem ficar desesperados e tentarem escapar, entende o que quero dizer? — Manson está tentando afastar os reféns deles, separá-los e facilitar a fuga.

Os homens escutam a proposta de Manson e concordam entre si.

— Então, faz o seguinte. Eu levo um por vez e uso uma arma de vocês, assim fica melhor não acha? — Manson parece estar sobre controle, mas então um deles tem uma ideia ainda pior.

— Mas é mais fácil se todo mundo explodir junto. É só a gente se juntar — Eles concordam entre si. —, vem pra cá...

— Não, espera! — Manson tenta controlar a situação — A explosão pode não ser o suficiente, dinamite caseira não tem a mesma potênc...

— Cara é só juntar, não se preocupe. Vai dar certo, se alguém sobrar a escopeta dará conta.

A professora começa a chorar alto. O homem com o revólver na cintura segura a mão de uma das crianças. Ele a puxa para fazê-la levantar.

— Espera... não... — Manson está com os batimentos acelerados, ele sabe que agora terá que fazer alguma coisa.

Eu me levanto atrás do homem com a dinamites, ao lado da professora. Rapidamente, quebro seu pescoço e puxo a cadeira da professora, jogando-a atrás da mesa. Os homens sacam as armas, e atiram em minha direção. Salto e me prendo à parede, corro pelo teto até o homem com as crianças. Seguro seu pulso com o revólver voltado para a parede e o agarro, o terceiro homem atira com a escopeta, mas o tiro disperso fica em meu escudo humano.  Me aproximo e atiro o escudo sobre o atirador, que cai com o peso do colega. Deitado ele pega a arma da mão do amigo, e atira mais uma vez, atinge em cheio minha cabeça. Morri.

 

 

5º Círculo do inferno - A Ira

 

É sempre muito quente aqui, mas está agradável. No chão, eu abro os olhos devagar e vejo os pés sujos de Mefisto a minha frente.

— Eu avisei que não devia fazer nada. — Ele me ajuda a levantar, ainda estou atordoada. — Pelo menos foi na cabeça, dá nem tempo de ter dor né?

— Acho que estou enferrujada.

— É. Você tá velha mesmo, mas quem sou eu para julgar, querida.

Olho para ele, rio um pouco antes da dor de cabeça me dilacerar.

— Não fica assim, tá enxuta ainda.

— Não é isso... estou enjoada.

— Vai ser rápido então, já esqueceu como é quando acerta a cabeça?

— Quando foi? Ainda nem tinha chego aqui... — Ele me beija, eu derreto em seus lábios.

— Estou com saudades. Da próxima vez, você poderia escolher uma forma mais... uma que demore mais pra você voltar.

— Ah sim, claro. Assim que puder eu corto meu estômago, colocando meus pertences para fora, se assim lhe agradar. — falo com ironia, nossa que enjoo.

Mefisto tenta me avisar.

— Acho que a bala está na área do cerebe...

 

 

New Orleans, na escola

 

Acordo e levanto do chão na sala de aula. Vendo que Manson está lutando com o terceiro homem. O rádio na cintura do policial está berrando enquanto ele grita de volta.

— ESPEREM, AINDA NÃO!

Eles lutam pelo revólver, erguido para o alto. Ando um pouco cambaleante. A dor de cabeça é terrível. Estou zonza e enjoada, sinto um gosto de picles na boca. Acho que a bala está no labirinto do ouvido, ou no cerebelo. Ando até os dois, puxo o homem pelo ombro, fazendo-o virar para mim, dou um soco e um chute no joelho. O joelho se quebra como um graveto. Manson paralisa, chocado ao me ver. O homem pega uma faca da cintura, seguro seu pulso, viro fazendo um estalo, ele solta a faca em um grito e Manson o acerta com um murro forte. Escuto um som seco quando seu rosto bate no chão.

Manson está ofegante, apoia as mãos nos joelhos e olha pra mim. Arg, que enjoo. As crianças choram abraçadas umas as outras. A professora está estarrecida, paralisada e virada para a parede, com de olhos fechados e cobre os ouvidos com as mãos. Uma lágrima escorre no queixo. Manson me analisa, olha em volta e de novo para mim, tentando entender o que testemunhou. Ele finalmente responde no rádio sem tirar os olhos de mim.

— Tá tudo bem, estou levando todos para fora.

Eu ajudo as crianças a se levantarem do chão, levo-as até a porta da sala de aula. Manson levanta a professora que tropeça no braço de um dos homens caídos no chão, quase grita. Ela abraça duas crianças e vai andando ainda abaixada.

— Como você... — Ele tenta me questionar, mas o interrompo, gesticulando com a mão. Tusso duas vezes e cuspo a bala no chão.

— É complicado... — falo limpando o sangue que saiu de minha boca.

— Eu não imaginaria que seja simples.

Eu não respondo. Isso talvez piore minha situação.

O segundo homem, meu escudo humano se arrasta. Ele alcança o detonador. Eu percebo o seu movimento. Grito empurrando Manson para o corredor. Puxo o garoto paralisado à minha frente. Eu viro o corpo, agachando-me e cobrindo o menino com o meu dorso. Grande estrondo.


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