Profundezas escrita por Nathalia Schmitt


Capítulo 5
Aurien




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Aurien era uma colônia distante e Rire sabia que o caminho que percorrera por dias até ali era tão perigoso quanto o próprio plano. Ninguém sabia qualquer coisa sobre o verópodes que acompanhava os globies e isso era uma desvantagem.

A colônia era composta por pedras sobre pedras, como grandes corais mortos, pasta de musgo funcionava como cimento em algumas partes. Tudo estava em silêncio.

Rire não ouvia nada e se preocupava com Auho. Uma forma pífia de abstrair-se do seu próprio risco.

Ao contrário de Hapori, Aurien era disposta de pequenas abóbadas de cruzeta, com paredes e tetos de musgo, algas e outras plantas. Algumas possuíam ossos, como avisos. Sua entrada, única e isolada, era um pequeno círculo. Eram como ninhos individuais construídos em cima de cada pedra alocada com a pasta de algas. Entretanto, Rire não estava admirada com a arquitetura da colônia inimiga e sim espantada com seu silêncio. Simplesmente não havia globies.

Ela nadava lentamente, à parte de seu grupo, observando tudo e nadando próxima ao chão.

De repente ouvira um estalo e sua visão foi invadida por areia. Alguns animais escondidos ali afastaram-se apressados, cheios de medo.

Quando dera-se conta, estava presa. Era uma armadilha.

Rire não podia gritar por socorro, globies podiam ouvir e matá-la ali mesmo. Ou pior.

Ela nadava em círculos na gaiola que fechara-se sobre si como uma concha, levantando poeira e sem encontrar qualquer coisa que pudesse abrir. A arma que carregava era inútil. O tempo passava lentamente e a jovem sentia suas veias pulsando, suas escamas estavam rígidas, arrepiadas. Seus olhos estalados procuravam desesperadamente por qualquer sinal de seu grupo.

Contentando-se com o que parecia ser um destino absoluto, deitara-se. Pensava em Auho, em Kahan, Marama sendo morto. Em como ela poderia ser entregue como alimento para a verópodes, que a destroçaria.

Ou morreria de fome.

Caíra no sono sem perceber e quando acordara, pensara que era um sonho. Ouvia vozes, mas não entendia o que diziam. Sentira seu corpo enrijecer. Fingindo ainda estar adormecida, girara para a direção das vozes e abrira os olhos um pouco, torcendo para os estranhos não notarem. Percebera a silhueta de um nereide de cabelos amarrados num rabo de cavalo, diferente de como estava habituada, que conversava com dois globies, ele parecia dominar o idioma, mas devido a sua visão limitada por não poder abrir seus olhos completamente, Rire não identificara quem era.

O trio fora embora, deixando Rire onde estava. “Talvez tenham ido buscar o monstro ou algo para me matar”, pensara.

Rire ouvira alguém chamá-la e franzira o cenho, levantando-se, buscando pela voz. Seus olhos encontraram Kahan e ela pôde respirar aliviada. Agarrara as grades feitas de ossos e mais algumas coisas que não identificara.

— Você está bem? — perguntara o tritão, desarmando a armadilha com propriedade rapidamente.

— Agora estou. — agarrara-se à sua arma, afastando-se da armadilha. Descobrira que nadar rente ao chão poderia não ser mais uma boa tática de locomoção. Kahan, ela sabia, então provavelmente já haviam cumprido parte da missão e capturado alguns globies. - Escute, não há globies para esses lados, o que aconteceu?

— Não sei. É melhor voltarmos logo, eles podem só estar caçando.

Rire franzira o cenho. Globies não caçavam em grupos. Talvez Kahan não soubesse disso, porém ela sabia que deveriam voltar e seguira-o para longe de Aurien.

— Estamos todos voltando? — Rire ainda estava aflita.

— Não. Dois pequenos grupos foram deixados para averiguar a situação de Aurien e, talvez, capturar mais indivíduos.

Mais?

Kahan a encarara.

— Sim, foram encontrados alguns globies que já estão sendo movidos para Hapori.

— Isso não é perigoso?

— Ninguém é perigoso desarmado.

Rire não estava convencida disso, afinal, a armadilha não tinha uma arma.

— Como me encontrou? — perguntara, finalmente.

— Quando todos saíram, notamos a sua falta.

— Quem “notamos”? — Kahan não parecia estar para conversa naquele momento. Rire sentia-o tenso e anormalmente objetivo.

— Eu e Auho. — então Auho estava bem. Rire suspirara aliviada.

Os grupos estavam distantes, já a caminho de Hapori e Rire sabia que não iriam alcançá-los, porém ficar sozinha com Kahan deixava-a tensa. Teria que se conformar com a companhia do tritão nos próximos dias.

— O que farão com os globies capturados? — seu tom era tímido.

— Não temos certeza ainda. Dependerá de meu pai. — Kahan franzira o nariz, contrariado.

Ela decidira não tocar mais no assunto. Nadaram em silêncio, afastados do chão, pelo que pareceu muito tempo até avistarem Auho voltando velozmente.

— Ri! Onde você estava? — Auho parecia exasperada.

— Ocupada.

— Ela foi capturada. — interveio Kahan. — Não disse pra você esperar?

— Eles não pararam e alguns foram orientados a ficar por perto, você sabe, pra investigarem melhor porque os globies abandonaram sua colônia. E eu estava preocupada com Rire!

— Quando você recebe uma ordem, você obedece, Auho.

— Perdão, sou voluntária, não empregada. — os grandes olhos de Auho encaravam o tritão, com fúria.

— Importante é que estamos todos bem e chegaremos logo em casa. — Rire não gostava de brigas. Kahan afastara-se, nadando à frente das duas com sua alabarda. Auho cochichava com a amiga.

— Rire, o que aconteceu? Você foi presa? Como assim? — era notável sua preocupação.

— Depois te conto melhor. Quantos globies foram encontrados? — Rire precisava de um tempo sozinha com Auho para contar-lhe sobre o trio que vislumbrou enjaulada.

— Não muitos… — ela suspirara. — Não sei o que aconteceu aqui. Será que foi por isso que invadiram Hapori?

— Pode ser. Não sei.

— Está tudo bem, mesmo?

— Acho que sim.

Auho conhecia Rire bem demais para acreditar, mas entendia que não era o momento mais adequado quando corriam o risco de serem ouvidas.

Kahan decidira que nadariam até encontrarem com os grupos adiantados. Ele lembrara as jovens que os grupos teriam que acampar na caverna, como fizeram para ir até Aurien.

Permaneceram em silêncio até chegarem, o que significava muito tempo. Dormiriam na caverna e partiriam junto dos outros assim que acordassem.

Quando os três chegaram, os grupos já estavam preparando-se para dormir. Os globies capturados estavam dopados, presos em correntes feitas de ossos e pedras, de forma que não poderiam fugir ou gritar. Rire percebera que alguns estavam feridos.

Ela e Auho deitaram-se próximas uma da outra e conversaram sobre o que poderia acontecer dali em diante até dormirem.

— Auho, estou cansada, chega por hoje?

— Tudo bem. Estou morrendo de fome, espero que consigamos comer algo amanhã. — a mais velha aconchegara-se e fechara os olhos. Rire sorriu. Se Auho estava com fome, era porque estava melhor.

Auho sentia-se cansada e acordou abruptamente com Rire sacudindo-a. Quando Auho abrira os olhos vira uma Rire embaçada e tensa, de olhos apertados, tentando informá-la de que estava incomodada com umas coisas e voltaria para Aurien em segredo.

— Mas é perigoso e… — começara a mais velha, esfregando os olhos, com a voz embargada.

— Me dê cobertura, ok? — murmurara Rire, ignorando-a. Auho concordou. O sono prejudicava sua capacidade de raciocinar e ela voltara a dormir.

Mais tarde, todos acordaram e ninguém, além de Auho, pareceu notar a ausência de Rire. No entanto, quando a mais velha percebera o que fez sentira sua espinha tensionar. Rire poderia estar colocando-se em perigo e tudo o que ela podia fazer era ficar em silêncio.

Todos organizaram-se e alguns cuidadores renovaram a dose de veneno dopante para que os globies continuassem dopados.

Kahan liderara todos por um grande mato com gramíneas gigantes, que dançavam ao ritmo da correnteza. Auho mantivera-se afastada, uma das últimas do cardume.

Suas linhas oculares brancas demonstravam sua tensão e ela não conseguia afastar os pensamentos da amiga, orando para que as águas a protegessem e ela voltasse bem. Se a mais velha fosse atrás dela, poderia ser que sentissem a falta de Rire e mandassem alguma equipe de busca, podendo estragar seus planos, seja eles quais forem. A jovem sempre preferira fazer as coisas sozinha, sem intervenção da colônia.

Os inimigos avariados não tinham mais forças para debaterem-se e nadavam ao ritmo dos nereides, Auho notara.

Conforme lembrava-se, dormiriam mais duas vezes antes de chegarem a Hapori.

Ela sabia que Rire estava tentando descobrir algo, sempre fora uma criança curiosa e isso não mudou. A essência da mais nova era, basicamente, saber tudo o que podia sobre tudo e todos. Alguns interpretavam isso de forma ruim, pensando que Rire era bisbilhoteira e intrometida, Auho por outro lado, admirava isso na amiga. Sentia-se, entretanto, inconformada por não ter sido levada junto, mas compreendia que a outra devia ter suas razões e tudo seria explicado assim que ela voltasse. Até lá, Auho faria juz à sua confiança.

O período nadando sob as algas altas e verdes parecera uma eternidade a Auho, que permanecia ansiosa, frustrada com a inconsequência de Rire, tentando focar-se na falta de globies em Aurien, tornando-a mais segura. Adentraram uma fenda que tinha o histórico de destroçar-se algumas vezes, derrubando pedras que rolavam até o fundo, erguendo uma fumaça de areia quando caíam duramente no chão. As paredes de pedra que tornavam o caminho estreito demais para o verópodes passar não tinha vida alguma, fazendo com que a fenda passasse uma sensação claustrofóbica.

As paredes imensas pareciam julgar aquele cardume como algozes solitários. Auho percebera que não enxergava o fim delas acima de sua cabeça. Ainda passariam uma noite naquele lugar e sem Rire, a fenda parecia outro lugar.

Quando finalmente chegaram a Hapori, estavam todos exaustos de lanches e frutinhas. A primeira coisa que Auho pensara foi em fazer uma refeição de verdade enquanto os capturados eram levados às jaulas, que foram limpas, receberam manutenção no período que ficaram fora e estavam localizadas no subsolo da colônia. Ihoy fizera uma reunião com os grupos, espantado com a agilidade, pois pensara que a haveriam batalhas e lutas no território inimigo.

Kahan lhe passara o relatório e um dos grupos mapeara a região, entregando o resultado ao líder.

Ao contrário de Rire, Auho não sentia-se à vontade para conversar com eles e permaneceu em silêncio, observando.

— Vocês serão divididos por alas, de forma que seis ficarão responsáveis por retirar informações dos prisioneiros em cada uma. — Ihoy suspirara. Parecia cansado e esfregara os olhos antes de continuar. Auho desconfiou de que o fato dele ser contra essa abordagem poderia influenciar no seu ânimo. — Cada ala terá um orientador, que lhes dará um exemplo de como remover informações.

Após a reunião, Auho fora encaminhada para a ala Dorkhein; a ala D.

Ela notara que era um lugar fechado, de rochas antigas e cheias de musgo. O cheiro era composto de odores almiscarados como sangue e urina e a jovem franzira o nariz por instinto.

O corredor era longo, acompanhado por um teto baixo, dividindo as alas por arcos, uma do lado da outra, com placas de ossos entalhadas. Auho e seus cinco companheiros de serviço dirigiram-se para a ala D, passando o arco e descobrindo grandes gaiolas; algumas vazias e outras com os globies capturados. As vazias, no entanto, estavam mais manchadas de sangue que as paredes, devido ao sangue que espalhara-se em épocas devastadoras muito antes de Auho nascer.

O orientador mostrou-lhes uma sessão de tortura, tentando descobrir qualquer coisa sobre a invasão. Um dos componentes da ala era tradutor e estudava outras colônias. Ele insistia que tudo o que aquele globie gritava era por misericórdia, insistindo que não sabia de nada e que todos foram embora. O ar pesado e aquela cena fizeram Auho estremecer, mas só até lembrar da imagem de Marama sendo assassinado sem pena.

Após a explicação, Auho e os outros foram deixados para trabalhar, com o orientador e o tradutor observando. Cada sessão de tortura era feita separadamente, ou os grunhidos dos globies poderiam perder seu significado.

Na vez dela, recebera uma lança.

— Você pode bater na criatura ou rasgá-lo em lugares não letais, como ombros, membros e nadadeiras. — dissera brevemente o grande tritão de mechas sem melanina.

Auho aproximara-se de sua vítima, sentindo suas escamas tensas e suas veias latejarem. Aquele parecia menor que os globies que invadiram e o medo fazia com que ele encolhesse o corpo contra a parede da gaiola, trêmulo. A nereide aproximara-se. Ela podia arriscar um pouco do idioma, sabia algumas palavras suficientes para entendimento.

— O que você sabe? — perguntara baixinho e lentamente por não ser fluente, com a arma baixa.

— Nada. — o globie respondera, sem encará-la, e Auho percebera que era uma jovem fêmea.

— Escute, se você não se disser o que sabe, não poderei ajudá-la e terei que feri-la.

— Auho! — intervira o orientador. — Não tenha piedade. Machuque e eventualmente esse globie falará algo. — seus olhos brilhantes pareciam querer sangue.

Por dentro, Auho clamava por Rire. Gostaria de saber o que Rire faria no lugar dela.

Oreth, o orientador, adentrara a jaula e tirou a arma da mão de Auho. Dissera para tentar mais tarde e Auho fora liberada aquele dia. Então, percebera, ele estava ali para treiná-los e ela falhou miseravelmente.

A jovem procurou por Kia, pois o tradutor somente passava as informações para o orientador, restringindo o conhecimento do grupo envolvido.

— Kia! — a cuidadora parecia cansada e tensa. — Você está bem?

— Estou. Não venho dormido bem, estou sofrendo de pesadelos desde que os ovos e as crias foram mortos. — sua voz estava arrastada e cheia de mágoa. — Mas estou bem. Ficarei, ao menos. O que você precisa, querida?

— Espero que fique, mesmo. Não se preocupe comigo, já explicarei o que está acontecendo. Os mortos foram velados? — Auho tentara passar empatia em sua voz, mas não era muito boa em se expressar.

— Ainda não. Terminaram a contagem enquanto vocês estavam fora. — Kia engolira em seco. — Muitos nereides morreram, estão organizando a Muçuri para velarmos todos juntos.

— Entendo. E o reconhecimento dos corpos?

— Será feito antes do velório. Mas, por favor, mudemos de assunto. Já estamos em uma situação mórbida o suficiente. Como posso ajudá-la? — Kia sorrira, mas pareceu a Auho um sorriso fútil, apenas para disfarçar sua dor.

— Você entende do idioma dos globies, não é? Se eu conseguir alguma escrita dos presos, você traduziria pra mim? — Auho murmurava para que somente Kia ouvisse. A outra franzira o cenho.

— Mas e o tradutor das alas?

— É complicado. Ele trabalha para o orientador, não acho que vá nos passar qualquer informação.

— Querida, não posso entrar nas alas, mas se você conseguir qualquer coisa, conte comigo.

— Por favor, mantenha isso em segredo. — finalizara Auho, encarando a outra, que sorrira verdadeiramente desta vez.

— Não se preocupe. Faça o que tiver que fazer.


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