Profundezas escrita por Nathalia Schmitt


Capítulo 10
O Retorno




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— O que houve? — perguntara Rire, baixinho, desconfortável com as ombreiras que deveria usar como assistente de Ihoy, quando Auho finalmente pudera voltar para sua toca, entregue por uma Kia preocupada e otimista com sua recuperação. Os ferimentos já começavam a cicatrizar e Auho já voltara a comer normalmente.

— Eu que te pergunto! O que é isso? — indagara, franzindo o cenho enquanto encarava as ombreiras de Rire. Ela coçava insistentemente as algas que enfaixavam um ferimento extenso por seu braço. A mais nova deu de ombros.

— Um presente, eu acho. — respondera vagamente. — Como você foi parar naquele lugar, afinal? — Era a primeira vez que as duas conversavam em nove dias e tudo o que Rire sabia era que pesadelos atormentavam Auho toda vez que dormia, ao mesmo tempo em que sua memória negava-se a voltar; por mais que a mais nova insistisse em saber, no mínimo, como tudo acontecera.

Auho relaxara os ombros e desviara o olhar.

— Bom, se você não vai falar — começara a mais nova, parando à saída da toca. — preciso ir.

— Pra onde? — sentira-se infantil perguntando, como uma criança ansiosa que não quer ficar longe da mãe. Ajeitara-se com dificuldade sob seu ninho fofo melhorado e trabalhado por Rire.

— Kahan volta hoje e Ihoy mandou recebê-lo ao sul de Hapori. — Auho estremecera.

— Já? — murmurara, encarando Rire, sombria.

— Faz oito dormidas, Auho. E você ainda dormiu mais que isso.

— Ainda me sinto fraca e confusa, Ri, desculpe não poder ajudar. — dissera, após algum tempo em silêncio, coçando novamente a faixa, distraída.

— Tudo bem, quando você lembrar o que aconteceu, é só chamar. — suspirou.

Rire dera uma olhada nos ninhos refinados que fizera, com algas frescas e poríferas vivas com várias cores que vibravam fracamente; não sairia dali sem ter certeza de que a amiga ficaria bem.

— Eles me drogaram — disparara de repente. —, não sei como ou com o quê, mas duvido que lembre. Em todo o caso, sabe que seria a primeira coisa que eu faria. — sua voz soava fraca e rouca. — Chamar você e tal.

— Preciso ir. — alegara, finalmente.

Auho assentira à amiga que, com um tougou sutil, retirara-se. A jovem ferida suspirou, atirando-se à versão mais fofa e confortável de seu ninho, arrependendo-se brutalmente quando suas feridas latentes fizeram-se lembrar. “Ao menos”, pensara, “tenho companhias bonitinhas enquanto Ri está fora”, divertindo-se enquanto admirava as poríferas de tamanhos variados.

A nereide aguardava Kahan acompanhada de duas adagas feitas especialmente para ela e sua fiel atiradora de navalhas triangulares, recuperada no caminho de volta para a colônia, ao norte. Aprendera as direções magnéticas oceânicas mais rápido do que esperara e ficava repetindo consigo mesma para que lado era cada coisa, tentando ao máximo não consultar a pequena bússola de bolhas que ganhara de Ihoy.

Kahan sequer esforçara-se para disfarçar seu semblante surpreso ao ver Rire armada e com um uniforme de status 3 estrelas feito para si.

— Pensei que fêmeas não fossem feitas para a luta. — disparou, sério. Rire inclinara a cabeça levemente, fitando Apo logo atrás dele, juntamente de um nereide com uma cicatriz no rosto que não conhecia. — Obrigado. — dissera Kahan, despachando o estranho sem mais delongas, tampouco informando a Rire o nome do capataz. — Se soubesse — voltara-se para Rire. — que você esperava por mim, teria adiantado meus serviços.

— Serviços? — sua expressão era de total indiferença. Kahan sentia-se arrepiar toda vez que ficava em dúvida quanto ao que Rire pensava.

— É melhor irmos ou meu pai pode ficar preocupado.

— Não está. — alfinetara Rire e Apo olhara para Kahan, analisando sua reação, que limitara-se a apenas sorrir.

Rire os acompanhara da periferia até o CT, enquanto Kahan fazia questão de permanecer sempre um pouco mais à frente e ela não pudera deixar de notar na adaga entalhada a ouro, embanhiada ao lado da adaga simples do tritão. Seu coração sufocara-a e palpitara, como que querendo atravessar seu peito. Já havia visto aquela arma. “Será que a verópodes deixou cair e ele encontrou no caminho pra cá?” questionara-se Rire, em silêncio.

As poucas águas-vivas enormes que teimavam em brincar em volta do Centro de Treinamento acumulavam-se em pequenos grupos, iluminando os poucos nereides que passavam por ali. As gramíneas, dançando como de costume e, com suas pequenas criaturinhas ocultas, faziam parecer que, por vezes, não havia uma guerra interna acontecendo em Hapori.

Deixara os dois machos na companhia de Ihoy e dirigira-se à toca subterrânea de Whakaaro, sem perder tempo.

Parara à entrada; se invadisse a toca cavernosa de Whakaaro de supetão seria um desrespeito à sua mãe, mas precisava falar com ela.

Como que adivinhando sua presença, Whakaaro emergira por entre as longas algas que boiavam, inertes, à entrada, sorrindo graciosamente à Rire.

— Vejo que estás indo bem com o jovem líder.

— Talvez esteja desesperado. — riu.

— Como posso ajudar-te, criança?

A jovem explicara-lhe brevemente sobre a memória de Auho, esperando que, talvez, houvesse algo para ajudá-la a lembrar-se de seu sequestro. Whakaaro era a melhor manipuladora da sede de Hapori e jovens vinham de todas as colônias afins oferecendo-se como seus aprendizes, mesmo ela recusando-os veementemente.

— Tudo o que lembra é sobre a cela em que ficou. Não sabe nem como foi ferida.

Whakaaro analisara Rire por um momento, pensativa, e fizera sinal para que a seguisse ao fundo de sua grande vivenda.

Ali, pequenas ondinas luminosas mantinham o lugar vagamente iluminado pelo seu formato de bolinha. As paredes de pedra bruta, com musgo crescendo por toda a parte, davam a Rire a estranha e familiar sensação de conforto que não sentia havia muito tempo.

Whakaaro parara à frente de alguns frascos com pedrinhas ao fundo e viscosidades coloridas que, para Rire, eram impossíveis de identificar a princípio.

A inveterada estendera sua mão pálida e gélida em um dos buracos das paredes, composto por vários vidrinhos de mesmo tamanho, e retirara um em específico com conteúdo rosa que parecia, à jovem, ser pastoso.

— Isto pode vir a auxiliar-te. — afirmara docemente, entregando o pequeno potinho à Rire.

— Não lhe fará falta? — Whakaaro sorrira novamente, divertida.

— Posso produzir mais disso com o que disponho aqui, querida. Dê-lhe para que ingira e em algumas dormidas você terá as pecinhas para montar de que tanto desfruta.

— Pecinhas pra montar?

— É claro! As reminiscências virão, contudo fragmentadas. Ela não se recordará do ocorrido em sua totalidade.

— Certo. Obrigada!

Whakaaro cumprimentara-a com um tougou e ela soube que era hora de retirar-se, voltando a encontrar Ihoy, que permanecia sentado com seus próprios pensamentos, em uma pedra destroçada na praça Muçuri, esperando por ela como haviam combinado mais cedo.

— Finalmente! — exclamara Rire ao encontrá-lo, sentando-se a seu lado. O tritão a encarara. — Você viu a adaga nova de Kahan?

— Adaga? Não. Não vi. Que adaga?

— Tudo bem. Deixa pra lá. — dera de ombros. — Como foi com os rapazes?

— Passaram-me o relatório. É só.

Rire franzira o cenho.

— Ahn. — olhara em volta. — Algum avanço?

— Encontraram quarenta e seis mortos, principalmente crianças. — Ihoy suspirara.

Rire virara seu tronco para o tritão. Ihoy sabia que ela não acreditava mais nos relatórios de Kahan. “A dúvida é até onde eu acredito”, refletira, tendo seu raciocínio interrompido.

— Temos que nos focar nos que estão vivos, ‘Hoy. Me empreste três tritões bem preparados que não Kahan e aquele chaveirinho dele e volto o quanto antes. — Tentava, ao máximo, esconder sua insegurança, concentrando-se em sua respiração e no que precisava ser feito, mas Ihoy a conhecia bem demais.

— Você vai precisar de mais gente. — comentara apreensivo. — E eu vou junto. Arrume suas coisas, ajeite Auho e deixe-a confortável. Partimos logo mais. Me encontre aqui, irei buscar as montarias.

— Só… — Rire engolira em seco, sob o olhar inquisitivo de Ihoy. Seus olhos, notara a nereide, firmavam-se nela por mais tempo ultimamente. — tome cuidado.

Ihoy sabia a quem ela se referia.

O filho aproximara-se rapidamente dos dois e olhara Rire de cima a baixo, julgando-a. Olhara para Ihoy, que levantara-se.

— Apo descobriu onde as crianças estão. — Rire endireitou-se, incomodada, à pedra. — Parece que pode estar sendo mantidas como alimento dos globies em uma base subterrânea na colônia deles. Aurien não deve ter sido verdadeiramente abandonada. — Ihoy tensionara o maxilar. Nunca fora a favor de termos de suposição, principalmente em uma investigação séria. Kahan, entretanto, era alheio à experiência de seu pai.

Em resposta, o líder assentira e mandara o outro de volta ao CT.

A jovem arrepiara-se. A assinatura de Apo do Tratado que havia encontrado; o Tratado que ela nunca entregara a Kia para traduzir; de repente sentira a necessidade de resolver essa situação o quanto antes e sua ansiedade repentina era como um monstro que crescia dentro dela, alimentado por seus medos, dúvidas e inseguranças — uma refeição completa. Respirara fundo tentando afastar-se desses sentimentos, guardando-os para mais tarde.

Kahan virou-se sem dizer mais nada, dando uma última encarada em Rire e voltando ao CT. Ihoy fitara-a, esperando algo. Ela levantara-se e aproximara-se do tritão, ficando a pouco menos de um palmo de seu rosto.

Sua respiração, lenta e profunda juntamente de seus grandes olhos expressivos, não enganava Ihoy. Rire abrira a boca para falar, mas parecera ter mudado de ideia.

— Nós não vamos morrer. — murmurara Ihoy, adiantando-se, com todas as forças que podia. A mente de Rire voava do Tratado para Apo, Kahan e então Auho. A morte de Marama, uma lembrança que tornara-se um tanto vaga, assombrava-a, marcando a possibilidade de perder sua melhor amiga, Kia e até mesmo Whakaaro.

— Mas caso…

— Não vamos. — interrompera-a. Rire erguera o queixo. Podia sentir o movimento leve da cauda do tritão tocando a sua, de forma leve e lenta. Seu coração batia tão forte que dava-lhe a impressão de que o tritão à sua frente também podia ouvi-lo. E talvez pudesse. — Vá fazer o que precisa ser feito. — A jovem assentira, sentindo o peso da responsabilidade daquela situação em seus ombros; um peso imposto por ela mesma.

Despedira-se de Ihoy, cada escama sua arrepiara-se em resposta e nadara de volta para seu abrigo.

— Auho! — chamara a amiga, invadindo seu ninho e sacudindo-a. Seus ferimentos, adormecidos pelas algas medicinais, acordaram-na. Ela gemera. — Quê? — perguntara Rire, tentando traduzir o que a amiga tentava explanar.

— Fale. — resmungara mais alto, sem abrir os olhos.

— Você quer comer algo diferente? — Rire riu. A mais velha encarara-a, com os olhos inchados de seu sono interrompido, erguendo-se ruidosamente, apoiando-se em seu cotovelo.

— O que você tem aí, peixinho? — A mais nova franzira o cenho. Havia tempo não ouvia aquele apelido. Sorrira, tirara o vidrinho de uma das bolsinhas do cinto e abrira-o, removendo a meleca rosa. Auho fizera cara de nojo.

— Mas que geleca é isso? — exclamara.

— Tem cheirinho bom. Você tem que comer.

— Não vou comer essa coisa feia. — Auho birrara e Rire bufou, buscando paciência em tudo o que sua amiga já fizera por ela.

— Sério? Faz de conta que é um siri esmagado. Você já comeu um!

— Tinha derrubado a pedra sem querer, mas ele continuava gostoso. Isso aí eu nem sei o que é! — teimava Auho, ranzinza, feito criança.

— Auho. — chamara, séria. — É para o seu bem. Pra lembrar de algumas coisas e…

— Estou melhor sem lembrar, sabe? — interrompera.

— Se você não engolir essa porcaria de geleca rosa cheirosa, vou enfiá-la na sua goela à força e você ainda vai ganhar uns hematomas junto desse seu corte no rosto. — ameaçara. Auho encarava a meleca. Apertara a boca e respirara fundo, tirando-a da mão de Rire e engolindo de uma só vez, deitando-se de costas para a outra, emburrada. — Ótimo! — exclamara a mais nova, colocando o potinho da gororoba de lado. — Agora preciso resolver umas coisas, devo voltar dentro de alguns dias. — Auho permanecia quieta. — Se eu morrer, por favor, não peça desculpas por essa sua atitude indecente na lápide dos meus restos. Obrigada! — respondera ao silêncio, ríspida. Sabia que Auho achava-a dramática quando dizia essas coisas e, no momento, não dava a mínima.

Olhara em volta antes de sair e fitara Auho em seu ninho, encolhida. Virara-se abruptamente e saíra veloz em direção à toca de Kia — um buraco próximo ao de Auho — que provavelmente estaria dormindo — e estava certa. Entrara sutilmente na toca da amiga curadora e pegara uma pedra no canto oposto, deixando-a em cima do Tratado dobrado seis vezes, junto de um bilhete, ao lado de seu ninho. Carregara aqueles dois em seu cinto por tempo demais; estava na hora de fazer algo a respeito.

 

Você poderia traduzir esse documento que encontrei?

Por favor, mantenha em segredo!

 

Rire.

 

Ela partira de Hapori mais uma vez, acompanhada de Ihoy e mais quatro tritões guerreiros vindos de outras sedes que desconhecia. As montarias eram compostas por peixes jurássicos e Weri, a única raia ali, todos com um tipo de cela que circundava seus corpos com dois seguradores em cima.

A jovem segurara-se à cela de Weri e suspirara ao nadarem em direção à fenda mais uma vez.


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