O jogo escrita por slytherina


Capítulo 1
oneshot




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/710208/chapter/1

 

Roxo.

Serviram-lhe café em uma caneca roxa. Não que fosse feia, só … não combinava. Não parecia certo. Cafés deveriam ser servidos em xícaras de porcelana com delicados desenhos de rosas ou malmequeres amarelos. Como na casa de sua vó. Pensando bem, seria um sacrilégio se mais alguém tivesse a mesma porcelana de sua avó. Enfim, ela estava tomando café em uma caneca roxa. Impessoal, esquisita, sem graça. É, combinava bem com essa lanchonete de mesas altas e estreitas banquetas.

Jaqueline levantou os olhos e observou ao redor. Às vezes era bom sair da concha e parar de dialogar com os próprios botões. Eis que seus olhos foram capturados por uma figura muito interessante. Ele tinha algo especial. Não, não eram as luzes no cabelo castanho, macio e ondulado com um fofíssimo topete. Nem era a jaqueta negra de pelica, que parecia uma segunda pele, agarrando-se ao seu corpo. Jaqueline tinha certeza de que se ela fosse homem, estaria "dura" e pronta. Ela sorriu divertida com o pensamento.

Ele não estava sozinho. Tinha amigos e uma amiga em especial, a quem ele segurava pela cintura, como se fosse uma mala. "Espero que ele não esteja comprometido", pensou. Ele era todo sorrisos e mãos. A forma como ele segurava a outra garota, jogando-a de um lado para outro, enquanto lhe acariciava os braços e o pescoço, demonstravam grande conhecimento do corpo feminino, e da arte de dar prazer. Jaqueline sentiu um arrepio lhe percorrer o corpo. Foi nesse instante que ela soube, na verdade ela já sabia disso desde o momento em que o vira, que ele seria seu.

Stalker

Seu nome era Fábio. Em uma busca no facebook de um conhecido rapaz da faculdade, ela descobriu o facebook dele. E também seu Instagram, Twitter e Snapchat, graças aos diversos links que ele espalhou em sua rede social. Ariano, nascido no sul de Minas, descendente de chilenos por parte de mãe, e de carioca por parte de pai. Seu perfil continha fotos de festas, férias na praia, fotos de sua namorada. Ele havia ganhado um concurso no ensino médio, cuja cerimônia de premiação foi compartilhada no YouTube de um outro amigo. E também feito um comercial de uma pizzaria de sua cidade, por ser um gato, tendo conseguido 256 acessos no vídeo compartilhado.

Ele era bonito, atraente e popular. Jaqueline sentia-se cada vez mais obcecada por aquele rapaz. Uma rápida busca no perfil de seus amigos, a quem ela considerou apenas medianos e desinteressantes, mostrou-lhe o perfil do tipo de pessoa a quem ele considerava amigo. Alguns estavam engajados em causas sociais, e meia dúzia deles pertencia a um grupo de proteção de animais. Todos tinham simpatia pelo PT, e abominavam o atual governo do país. Se ela realmente queria conquistá-lo, deveria ser considerada primeiro uma amiga. O tipo de beleza, que ela via nas meninas do grupo de amigos dele, era de uma juventude dourada, de longos cabelos alourados, corpos malhados em esportes radicais, e semblante despreocupado de quem tinha a consciência tranquila.

Ela precisava por em prática sua estratégia de conquista imediatamente. O primeiro passo era se tornar uma mulher bonita. Algo quase impossível, mas se ao menos ela tentasse se aproximar daquele ideal de beleza, talvez ele a notasse, e poderia se apaixonar por ela. Valia a pena tentar. Ela fez uma pequena lista: Academia de ginástica. Grupo de proteção animal. Partido político. Cabelo. Ao lado de cada ítem havia um quadradinho em branco para ser checado ao atingir a meta. No alto da lista ela escreveu "Operação Deus grego".

Gordinha

Ele a notou. Na verdade ele a notou não porque fosse bonita. Com aquelas bochechas e quadris largos, ela não chegaria longe em um concurso de beleza. Eram os olhos dela que chamavam a atenção. Agudos, penetrantes como adagas. Eles davam àquele rosto o aspecto de uma máscara. Ela havia se juntado a seu grupo de amigos há poucos dias. Tinha um discurso socialista um tanto ultrapassado. O que fez com que seus amigos debatessem idéias constantemente. Ela citara Lenin, Marx e até Gramsci. Parecia uma daquelas garotas nerds em uma gincana de História. Será que ela era assim? Uma nerd desgarrada de seu grupinho de CDFs?

"Oi! Meu nome é Fábio. Qual é o seu nome?"

"Jaqueline."

"Então, eu notei que você sabe muito sobre o socialismo. Nós também nos consideramos socialistas, mas seguimos uma vertente diferente da História. Se estiver interessada, comparecemos todas as quarta-feiras a um grupo de estudos avançados, no bloco 'E' do campus. Seria bom trocarmos idéias sobre o assunto."

"Ok! Estarei lá,"

"Então, tchau-tchau!"

Fábio não ficara impressionado. Ela não era seu tipo. Afinal ela era cheinha e todos sabem que garotas gordas são difíceis de lidar, por causa do peso, da aparência e das neuroses. Elas não eram bem aceitas nos ambientes que frequentavam. Além disso as roupas dela não eram as mais legais e descoladas do mundo. Se ela quisesse se juntar a seu grupo deveria ao menos usar umas camisetas maneiras. Talvez se usasse rosa … Fábio riu de si mesmo. Estava se comportando como as meninas. Preocupação com aparência era o tipo de coisa que as garotas pensavam dia e noite. Que coisa ridícula. Quer saber? Ele resolveria essa questão de uma vez por todas. Na quarta-feira convidaria a garota gorda para um rolê.

Beijo

No grupo de estudos ela se comportou como o esperado. Falou muita abobrinha histórica e foi refutada por meia dúzia de alunos. Todos, contudo, a elogiaram por seu conhecimento e sua coragem por defender suas idéias. Não pareciam impressionados, mas a convidaram para voltar. Fábio aproximou-se no final e a chamou para comer um lanche. Ele despediu-se dos amigos e se retirou do campus acompanhando-a.

"O que foi aquilo? O Fábio tá ficando com a gordinha?" Uma das garotas loiras perguntou.

"Liga não. Ela é novata e você sabe como ele fica todo assanhado com novatas. Amanhã, ele perderá o interesse." Um rapaz de físico atlético respondeu.

"Gostaria que vocês homens parecem de pensar com o cérebro do andar de baixo. Isso é tão ridículo quanto previsível." Outra garota loira comentou.

"Ele só está se divertindo gente. Deixa o pobre coitado traçar a gordinha em paz." Outro rapaz, alto e magricela interviu.

Fábio e Jaqueline comeram sorvete. Comentaram sobre seus respectivos cursos na faculdade. Sobre família e cidade natal. Lá pelas tantas Fábio pôs seu braço sobre os ombros dela e passaram a caminhar assim, como se ele a protegesse. Ele a levou em casa de carro e não resistiu em lhe dar um beijo de boa noite. Rápido, seco e inexpressivo, mas ainda assim um beijo.

Jaqueline entrou em casa e desabou no chão. Ela estava tão transtornada por um simples e casual beijo que desatou a chorar. Sentia-se com os nervos à flor da pele e nem ao menos estavam namorando. Seu plano rocambolesco de seduzir o rapaz mais cobiçado da faculdade ia de vento em popa, mas ao mesmo tempo estava com o coração destroçado. Talvez por ele estar dando atenção a uma versão falsa e não à verdadeira Jaqueline. O que ele ofereceria à versão nua e crua dela mesma? Escárnio e repulsa. Talvez apenas uma solene indiferença.

Este jogo era muito perigoso, e ela podia muito bem ser a parte derrotada e humilhada no final, mesmo se ela acabasse conquistando o rapaz.

No dia seguinte, Fábio acordou com a roupa íntima molhada. Havia tido um sonho quente e bem realista, onde ele fazia amor com uma gordinha de olhos frios como uma lâmina, e isso havia sido extremamente sexy. Ele sorriu em êxtase, lembrando-se dos detalhes, como se ela ainda estivesse ali ao seu lado.

"Um dia, gordinha, ainda terei você na minha cama." Ele prometeu a si mesmo.

Rotina

Jaqueline acordou cedo graças ao despertador. Estava com uma dor de cabeça tremenda, que a fez segurar a fronte com ambas as mãos. Precisava fazer uma sessão de ginástica para reforçar a imagem de garota 100% saudável e atlética. Tomou um comprimido de analgésico e começou a repetir mecanicamente os movimentos expostos em fotos, em um mural no seu quarto. Odiava tudo aquilo. Acordar cedo, ginástica e dor de cabeça. Isso não fazia parte da sua confortável vida sedentária, mas sim da vida das garotas de Fábio. "Maldito Deus grego!" Praguejou em voz alta.

Depois de uma hora naquilo, o banho com óleo da "Natura" para ficar com a pele macia. Então secar e escovar os cabelos tingidos de loiro. Ela deveria ter posto um mega-hair, para ficar o mais parecida com as "garotas do Fábio", mas o preço abusivo e os cuidados entediantes e complicados que teria que ter com aquele cabelo falso, a demoveram da idéia rapidamente. A seguir, a roupa para ir à faculdade. Mini-saia, top, camisa social cuidadosamente posta meio aberta e com um ombro mais baixo. Cinto bem marcado. Sapatilhas da moda. Mochila de marca.

Por último as lentes de contato, antes da maquiagem leve, imperceptível. Ela imaginava se alguém perceberia a diferença entre ausência de maquiagem e esta que estava usando. Aquilo tudo era muito chato. Ela não entendia como certas mulheres viviam naquela rotina anos a fio. Fábio deveria valer muito a pena por todo esse trabalhão.

Mais tarde, já assistindo à aula, percebeu que um garoto não tirava os olhos dela. Não, não era o Fábio. Era um garoto magricela e pálido, com orelhas de abano. Era conhecido por parecer um pateta. O que? Ele piscou pra ela? Jaqueline virou-se rapidamente. Afinal o que havia acontecido com o mundo hoje? Tinha certeza que havia sentido olhares sobre si no momento em que chegara na faculdade. Os rapazes a estavam notando, como nunca antes. Mas, mas … ela não estava se embelezando para eles. Tudo isso era para o Fábio. Pelo Fábio. Não era?

O encontro

Fábio a levou a uma balada. Ficaram em uma mesa no canto, às escuras, enquanto uma música barulhenta e popular se propagava pelas caixas de som. As mãos dele estavam nos ombros dela, e ele começou uma sessão de beijos em sua orelha. Isso era extremamente sensual e íntimo. Ela logo, logo, ficaria toda derretida. Quem sabe até fariam amor no carro dele? Ela não era virgem e sabia como essas coisas funcionavam. E depois? Ele perderia o interesse por ela e nunca mais lhe dirigiria a palavra. Era isso o que ela queria? Essa era mesmo a pergunta de um milhão de dólares.

"Relaxa, Jaqueline. Você está tensa." Ele falou com a voz rouca em seu ouvido.

Ela suspirou fundo e tentou relaxar. Em resposta seu corpo parecia enrijecer. As mãos
dele desceram do ombro dela e passaram a acariciar sua clavícula e a região entre os seios. Ela suspirou novamente enquanto se perguntava mentalmente: "É realmente isso o que eu quero?" Um ruído quebrou a magia do momento. Alguém havia arrastado uma cadeira e sentado à mesa com eles.

"Oh, cara! Não percebeu que estamos ocupados?" Fábio reclamou com o estranho.

"Chapa, quando eu te vi agarrado com esta tribufú, resolvi vir te salvar. Você não percebe quem ela é?" O estranho falou desafiadoramente.

"O que?" Fábio perguntou irritado. "Você vem aqui estragar meu momento, e ainda xinga a garota que está comigo? Você não tem amor à vida não, rapaz?" Disse Fábio se levantando e deixando à mostra seus ombros e punhos.

"Você a conhece, Fábio. Ela está no nosso curso desde o ano passado. Só que antes ela não se vestia assim, nem era loira. Era uma retardada, que não falava com ninguém. Ela não é ninguém. Você está sendo feito de otário."

O soco atingiu o estranho em cheio no rosto. O indivíduo voou longe. Fábio foi atrás e o pôs de pé para atingir novo soco, mas não pôde dar prosseguimento à surra. A multidão presente o segurou e imobilizou. Foi arrastado para fora e aconselhado a ir embora. Lembrou-se de Jaqueline e passou a chamá-la em voz alta.

"Sua namorada já foi embora, rapaz. Ela foi mais esperta." O leão-de-chácara lhe informou.

Ninguém

Jaqueline chegou em casa e arriou-se no chão. Começou um choro baixinho, envergonhado, como se ela estivesse se escondendo, para não ser notada. Afinal esse costume era antigo: esconder-se do mundo para não chamar a atenção. Ser invisível. As palavras do estranho ainda ecoavam em sua mente. "Ela não é ninguém". Mesmo não sendo ninguém e invisível, ela fora notada e catalogada como retardada. Péssimo trabalho de camuflagem, esse. Será que … será que Fábio também a havia notado pelo que realmente era? Uma retardada sem identidade?

Jaqueline chorou mais ainda, sentindo que seu plano de sedução fora um fiasco. Como o previsto, o único resultado de toda a elocubração foi o fracasso. Ela fora humilhada, e a suja e ignóbil verdade lhe fora atirada na cara. Ela não pertencia àquele mundo, e nem mesmo a atenção e interesse de Fábio diminuíam ou compensavam a estranheza que ela sentia por toda aquela farsa.

Ela havia conquistado a atenção de Fábio. Seus beijos e carícias. Não era isso que ela quisera desde o princípio? Por que não estava feliz? Talvez porquê compreendesse que fora uma conquista baseada em mentiras. Não, ela não era bonita, e não, ela não era politizada. Nada daquilo significara alguma coisa.

Foi com grande pesar e exaustão que Jaqueline saiu do chão e foi se deitar. Não havia mais lágrimas e ou determinação para continuar com seu plano. O jogo acabara. Ela perdera. Fábio vencera.

Confronto

No dia seguinte, Fábio procurou Jaqueline pelo campus. Queria desfazer o mal entendido da noite anterior. Infelizmente ela se escondera de sua vista, como se estivesse magoada com ele. As palavras do estranho da noite anterior ecoaram em sua mente: "Ela não era loira. Não se vestia desse jeito. Está em nosso curso desde o ano passado".

Fábio foi para a sala de aula. Observou uma a uma suas colegas. Eram garotas comuns e sem brilho. Outras pertenciam a seu grupo de amigos. Então ele percebeu uma criatura encurvada, de ombros redondos e cabelos castanhos em rabo-de-cavalo. "Não pode ser ela." Pensou. Durante a aula não conseguiu desgrudar os olhos da estranha morena.

No intervalo entre aulas aproximou-se. Abaixou-se até ficar ao nível dos olhos da garota sentada na cadeira escolar. Jaqueline. Só que ela estava diferente, estava com óculos de grau e com os cabelos tingidos de castanho. E suas roupas não eram muito bonitas. Mas ainda assim era Jaqueline. Ela baixou os olhos, recusando-se a encará-lo.

"Hum-hum! Poderia voltar para seu lugar, Senhor Fábio?" A professora chamou sua atenção.

Fábio não estava nem aí para a aula. Falar com sua gordinha querida era mais importante do que ouvir a cantilena da professora, mas por enquanto, ele teria que esperar. Voltou para seu lugar. Na primeira oportunidade, após o fim da aula, agarrou Jaqueline pelo braço e puxou-a para um cantinho.

"Jaqueline, não sei o que está pensando, mas nada mudou para mim. Não dê atenção ao que um estúpido falou numa casa noturna. Ele estava bêbado ou com inveja." Fábio falou o mais baixo que conseguiu, ainda agarrando os braços dela, temendo chamar muita atenção.

"Essa é como eu sou realmente, Fábio. Você não me conhece." Ela falou sem fôlego com a voz trêmula.

"Não te conheço? Você é inteligente, sarcástica, determinada e lógica. Tem um rosto adorável e os olhos mais enigmáticos que já vi. Não me importo com as roupas que usa, ou com a cor do seu cabelo. Ou mesmo com os óculos que usa agora."

"Eu não gosto de política." Ela falou séria.

"Noventa por cento dos brasileiros não gostam de política. Isso não é crime." Ele sorriu.

"Eu detesto ginástica." Ela admitiu lacônica.

"Isso é algo que podemos discutir no futuro, sem pressões." Ele fez o possível para conter o riso que ameaçou escapulir. Sentiu-se tentado em revelar que sempre se referia a ela como "a gordinha", o que subentende que ela não era muito chegada à malhação. Lembrou-se, entretanto, que mulheres não gostam de discutir o peso.

"Eu fiz … eu fiz tudo isso para te conquistar. Não fui honesta com você. Eu já me arrependi. Sinto muito!" Ela falou envergonhada, sentindo uma vontade louca de se esconder e nunca mais olhar no rosto dele, novamente.

"Bem, isso é … lisonjeiro? Nenhuma outra garota havia feito isso por mim. É um pouco perturbador, na verdade, mas eu gosto de você, Jaqueline, e quero que seja minha namorada."

Jaqueline ficou espantada. Tanto que nem reagiu ao que se seguiu. Fábio a abraçou e segurou suavemente seu pescoço, dirigindo seus movimentos durante um beijo. E que beijo. Os lábios dela se partiram languidamente, e ele tomou conta de sua respiração. Só se separaram por causa dos assobios e palavras de incentivo, por parte dos colegas, fazendo-os cair em si que estavam em ambiente público. Saíram correndo da sala de aula e resolveram retomar o beijo atrás das estantes da biblioteca.

Jaqueline correspondeu ao beijo. Perscrutou os olhos de Fábio, para saber se ele era sincero, ou se tudo não passava de uma brincadeira de mau gosto. Encontrou apenas afeto e desejo. No final das contas, talvez fosse bom confiar nas pessoas e em finais felizes.

Fim


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O jogo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.