No som da escuridão escrita por Aquila Aria


Capítulo 1
Empolgação




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   - Qual é o seu problema?! – Meus cabelos estavam encharcados, minhas mãos geladas, mas meu coração funcionava calorosamente bem, batendo mais forte do que nunca. Culpa daquele homem... Eu estava com raiva, talvez ódio dele. Queria empurra-lo para longe, impedir que ele confundisse mais minha mente e fizesse meu coração bater tão rápido.

   Ele continuou apenas me observando com aqueles olhos castanhos indecifráveis. As gotas de chuva escorriam de seu cabelo até pingarem em seu rosto perfeito. Por Meralin, como eu o odiava por me deixar tão nervosa e por ser tão... Aaaaah! Eu estava ficando louca.

   - Por favor, - Seu nome saiu abafado -, me diga. Por que se aproxima, me dá ilusões e depois me evita. – Não conseguia mais conter as lágrimas.

   - Porque... – Ele deu um passo à frente. – Eu a amo, Áquila. – Meu mundo parou com aquelas palavras. Aquilo era real? Não sabia, mas queria acreditar que era. – Você me deixa louco com essa sua teimosia! Quando a vi com aquele cara... Não quis acreditar que podia estar sentindo algo por você. Mas eu queria acreditar, queria que você também sentisse algo por mim... –Ele se aproximou, diminuindo ainda mais a distancia entre nós.

   Ai... Meu pobre coração estava quase pulado para fora.

   - Não quero que ele toque em você, Áquila, não quero que ninguém toque. Eu estou louco por você. Águia, por favor, diga que não prefere ele a mim. – Ele estava tão perto que eu podia sentir o calor que emanava de seu corpo. – Mas se disser o contrário, a deixarei ir.

   Apesar da chuva que caia sobre nós, meus lábios ficaram secos. Eu queria responder, mas como e o que? Ele me amava?

   - Por que não me disse antes? – Sussurrei.

   - Diga, Áquila. Me ama? – Seu hálito quente se chocou contra meu pescoço. Ele estava próximo demais.

   - E-eu... – Queria puxa-lo para mim, puxar Ele para mais perto. – Eu o amo. – As palavras saíram como um sussurro abafado. Mas ele ouviu.

   Ele roçou o polegar em minha bochecha enquanto envolvia minha cintura com a outra mão. Nossos olhos se encontraram e por um momento todo o som, as luzes, a chuva, tudo sumiu. Só estávamos nós dois ali. Então, lentamente, ele aproximou seus lábios dos meus e como carinho, me beijou suavemente.    

   De repente a música Treasure do Bruno Mars me arrancou daquela cena linda e perfeita para me trazer de volta á realidade cansativa da minha vida. Pelo menos meu despertador tinha bom gosto para músicas. Sentei na cama e me espreguicei, sentindo aquele prazer dos músculos se esticando para afastar a preguiça. Mentira, eu ainda queria voltar para o sonho, mas tinha que levantar. Triste realidade.

   Meu celular começou a apitar no momento em que eu coloquei os pés para fora da cama, era Clara me ligando. Provavelmente para me avisar que já estava pronta e me esperando na porta da minha casa. Peguei o celular sobre a mesinha de cabeceira e atendi a ligação.

   -Você tem apenas cinco minutos para descer aqui e se alongar. — Ela falou e então antes de desligar acrescentou: - E trazer torradas para mim. Beijos!

   Eu amava minha amiga, mas ela acabava com as minhas torradas todos os dias e isso não era motivo para eu estrangular ela, mas a vontade era grande. Corri para o banheiro, escovei os dentes enquanto trocava meu short de ceda por uma calça legging cinza. Depois de pôr a blusa preta e o moletom azul marinho, corri para a cozinha, descendo as escadas como um verdadeiro furacão. Peguei um pacote de torradas no armário, tomei meio copo de água, me alonguei ali mesmo por dois minutos e saí de casa batendo a porta atrás de mim. Clara estava de pé na varanda pronta para reclamar caso eu tivesse esquecido as torradas.  

   - Três minutos atrasada. – Ela estendeu a mão para que eu desse o pacote para ela. – Você é uma negação. 

   - Nós somos uma negação. – Lhe entreguei o pacote.

   Começamos a caminhar em um ritmo consideravelmente rápido enquanto devorávamos as torradas.

   - Que tipo de pessoa sai para correr com um moletom desses? – Ela apontou para o meu moletom que tinha um desenho gigante do rosto do Mickey Mouse na frente.

   - O tipo de pessoa que faz exercícios para manter a forma enquanto devora torradas super gordurosas.

   - Devíamos ser magras, mas não somos porque somos contra os estereótipos, certo? – Ela estendeu o pacote para mim.

   - Sim. – Peguei mais uma torrada enquanto acelerava o ritmo. – Ah, você não vai acreditar.

   - Diga.

  - O vizinho anônimo foi convidado para um jantar de boas vindas na minha casa e advinha quem mais foi convidada? – Não esperei ela responder. – Sim, você! Nesse sábado, ás 20:00 horas. Traga o pudim ou eu expulso você da minha vida.

   Clara caiu em uma risada silenciosa antes de olhar para mim e responder:

   - De leite condensado ou doce de leite?

   - Como eu te amo...

   Nós começamos a rir enquanto tentávamos comer as torradas e correr para queimar as calorias ganhas. Era sacrificante, mas as torradas sempre falavam mais alto no final.

   Abri a porta lentamente, como se já não soubesse que meus pais estariam acordados. Assim que pisei dentro de casa ouvi minha mãe gritar meu nome da cozinha. Ela estava com aquela voz empolgada de sempre. Larguei minhas chaves sobre o balcão da cozinha e sentei em um dos bancos do balcão. Ela estava preparando o café da manhã enquanto ouvia músicas instrumentais, provavelmente para acalmá-la.

   - Esqueceu de fazer o que lhe pedi, não é mesmo? – Ela se virou para mim, aqueles olhos verdes me perfurando.

   - Eh... Desculpe, mas o que você pediu mesmo? – Perguntei enquanto enchia meu copo de suco de laranja.

   - Na verdade, ela não pediu nada, mas esse é o jeito da sua mãe de pedir alguma coisa. Sabe disso. – Meu pai descia a escada, pronto para a guerra. Ele tinha uma audiência muito importante e com certeza havia passado a noite inteira se preparando para ela.

   - Amor, está atrasado. – Mamãe deu a volta no balcão e beijou meu pai. – Te vejo no fórum daqui a duas horas. Boa sorte.

   Papai sorriu e olhou para mim.

   - Princesa, vai querer carona para a faculdade?

   - Não, mas obrigada. Ainda tenho que tomar um banho e aproveitar o café da manhã. Boa sorte na audiência. – Pulei do banco e dei um abraço bem apertado em meu pai. – Arrasa com eles.

   - Pode deixar, pequena. – Ele beijou minha testa e se voltou para o balcão para pegar um pedaço de bolo de fubá. – Até mais tarde, meus amores. Ah, Áquila...

   - Oi? – Peguei um pão e me sentei novamente no banco.

   - Acorde seu irmão. Parece que Rick passou a noite toda acordado estudando para as provas.

   - Sei... Estudando. – Resmunguei um pouco antes de sorrir para meu pai, que já estava prestes a sair. – Pode deixar. Até mais!

   Assim que meu pai saiu pela porta afora minha mão se virou para mim com “aquele sorriso” e riu.

   - O que foi? – Perguntei.

   - Eu falei com o nosso novo vizinho ontem à noite e, bem, ele parece muito interessado em conhecer você. – Ela colocou ovos fritos em um pão e o entregou a mim enquanto se sentava do outro lado do balcão.

   - Me conhecer? – Mordi o pão, que estava uma delícia. – Tem certeza?

   - Sim. Falei muito bem de você para ele. – Ela sorriu. – Fique sabendo, ele é um gato.

   Minha mãe falando daquela forma me dava vontade de rever a lista ex-namorados dela, além de perguntar o que ela definia como “gato”.

   - Nem pense que vou cair nessa. – Levantei do banco e cerrei os olhos para ela. – Deve ser um velho caquético e pré-histórico.

   Ela riu.

   - Vou subir para acordar o Rick. – Fiz uma careta para ela antes de virar e subir as escadas correndo.

Entrei no quarto dele como um furacão devastador, tirando a coberta de cima dele e gritando “Levantaaaaaaaaaaaaa!”. Meu irmão simplesmente puxou a coberta de volta e jogou o travesseiro em mim, sem nem mesmo olhar para onde estava tacando. Tão preguiçoso...

   - Coiso! Levanta agora! – Peguei o travesseiro do chão e bati com ele na cabeça de Rick. – Se quiser carona para o colégio vai ter que estar arrumado em dez minutos e nada mais.

   - Chata. – Ele resmungou enquanto virava para o lado oposto a mim. – Sai daqui!

   Respirei fundo. Contei até três e sussurrei:

   - Beth Andrade.

   Rick virou rapidamente para mim com os olhos cerrados. Aquele famoso olhar de "Você não seria capaz".

   - Dez minutou. – Sorri triunfante e saí do quarto.

   - Te odeio. – Ele gritou por trás da porta.

      Beth Andrade era uma menina do colégio em que o Rick estudava, que eu também estudara antes de entrar para a faculdade. Ela era completa e assustadoramente fissurada pelo meu irmão e sempre estava procurando formas de se aproximar dele. Rick tinha medo dela, por isso eu, uma irmã maravilhosa, o ameaçava dizendo que a convidaria para jantar em nossa casa.

   Voltei pra meu quarto, tomei um banho bem rápido e vesti as primeiras roupas que encontrei no closet. Eu voltaria mais tarde para casa naquele dia, pois teria treno de vôlei. O campeonato estava chegando e o treinador havia aumentado a duração dos treinos. Nós venceríamos, eu acreditava.

   Vinte minutos depois eu desci e encontrei Rick choramingando alguma coisa para a mamãe, mas ela o ignorava.

   - O que está havendo? – Perguntei indo em direção ao balcão da cozinha para pegar minhas chaves.

   - Seu irmão está implorando para que eu o deixe ir para a tal festa no sábado à noite, mas eu estou ignorando novamente, pois já disse que não. – Ela lançou um olhar significativo para ele antes de virar para mim e sorrir. – Boa aula, filha. Vejo os dois à noite. – Mamãe deu um beijo na testa de cada um de nós e depois subiu as escadas.

   Sem esperar mais, Rick saiu de casa e bateu a porta atrás dele com força. Eu saí logo em seguida com olhar de reprovação.

   Ele passou metade do caminho sem falar nada. Mas eu puxei assunto:

   - Você não devia ser tão persistente assim.

   - Olha quem fala... – Ele mudou a estação de rádio. – E você não devia se meter.

   - Se continuar com essa grosseria toda, eu juro que não te dou mais carona até o colégio. Na próxima vez você vai de ônibus. – Parei o carro em uma vaga perto da lanchonete onde eu e Rick sempre passávamos antes de começar de fato nossos dias. – Agora saia do carro e peça dois hambúrgueres para a viagem.

   Ele fez uma careta antes de sair do carro.

   - E não se esqueça do refrigerante! – Gritei.

   Dez minutos depois ele voltou com duas sacolas na mão e entrou no carro resmungando.

   - O que foi? – Perguntei saindo com o carro novamente.

   - A Tina me ligou de novo. – Ele jogou a franja para trás. – Ela vai viajar amanhã, justamente no nosso aniversário de namoro.

   - Sinto muito. – Virei na rua do colégio do Rick. – Vocês podem comemorar quando ela voltar.

   - Não, - Ele encarou o celular nas mãos. – talvez não. – Rick saiu do carro e enfiou a cabeça pela janela para dizer: - Vou voltar com você, estou a fim de ver você treinar hoje.

   - Está bem. – Eu sorri. – Até mais tarde, pirralho.

   Ele esticou o braço e bagunçou meu cabelo antes de sair rumo ao colégio.

   Rick era meu irmãozinho mais novo. Na verdade ele só era dois anos mais novo, mas eu sempre o tratei como uma criança, pois era mais do que divertido vê-lo irritado com isso. Ele, ao contrário de mim, era bem parecido com nossa mãe. Os mesmos olhos verdes, o mesmo tom castanho de cabelo, o mesmo nariz e a mesma personalidade forte.  Eram muito parecidos em muitos aspectos. Eu, por puro azar talvez, não conseguira nem os olhos verdes da mamãe, nem o tom âmbar dos olhos do papai. Digamos que eu era um pouco mais original. Minha mãe dizia que eu parecia muito com a minha avó, mas eu não sabia ao certo, pois não conhecera meus avós, pais da minha mãe. Meus olhos tinham um tom de mel bem claro, quase amarelo. Meu cabelo era castanho escuro e suavemente ondulado. Eu era apaixonada por cabelos compridos, por isso o meu ia até o final das costas e eu não tinha vontade nenhuma de cortá-lo mais curto.

   Em vinte minutos eu cheguei à faculdade. Clara estava sentada em uma das mesas do pátio que ficava entre os prédios, no centro da construção. Caminhei apressadamente até ela e a surpreendi quando bati na mesa com uma das mãos.

   - Vamos agora para a sala, tenho um trabalho para terminar e não posso esperar mais. – Falei arrastando minha amiga para fora do banco.

   - Calma. – Ela pegou sua mochila e começou a me seguir.

   Passamos o resto da tarde terminando uma pesquisa sobre Atos Criminais Contra a Saúde Pública. A faculdade de Direito não era fácil e exigia muito do nosso tempo, mas sempre que estávamos juntas, eu e Clara nos divertíamos muito. Depois das aulas nós fomos para o treino de vôlei. No vestiário, a megera da faculdade, Luiza, estava terminando de se vestir com o uniforme do nosso time. Ela me odiava, e a minha amiga também, mas mais a mim do que qualquer outra pessoa. O motivo? Eu não sabia. Ela simplesmente fazia de tudo para tornar minha vida um inferno, talvez fosse inveja, mas eu não queria saber.

   - As duas vaquinhas chegaram. – Luiza fechou seu armário e começou a caminhar em nossa direção junto com suas três amiguinhas que pareciam cadelinhas dela.

   Clara jogou minha mochila e a dela no banco e respirou fundo. Ela não costumava ter muita paciência para nada, minha amiga de olhos azuis sempre fora bem explosiva.

   - Vadia um e seu bando de vadias, sigam seu rumo e vão galinhar em outro canto. – Disse Clara.

   - O que foi, pequena, a mamãe não te deu educação? – Luiza riu. – Ah, é. Você não tem mãe.

   Clara era filha de um casal de gays. Ela nunca se importou com o preconceito alheio, mas não gostava que tocassem nesse assunto. Minha amiga fora adotada com três anos e não sabia, nem mesmo tinha ideia de quem eram seus pais biológicos. Não queria descobrir, tinha medo de se machucar caso soubesse que havia sido descartada no orfanato como um nada. Os pais dela sempre fizeram todas as suas vontades e sempre foram pessoas incrivelmente amorosas com ela, então não tinha motivos para querer mexer com o passado.

   - Pelo menos eu tenho dois pais que me amam muito e que não querem me despachar para longe na primeira oportunidade. – Clara deu de ombros. – Mande um beijo para sua mãe. – Ela deu um sorriso maldoso. – E para o amante dela também.

   - Pense bem antes de dizer alguma coisa, garota... – Victória, a principal cadela de Luiza se manifestou.

— O que está acontecendo aqui? – De repente a treinadora Mia entrou no vestiário com uma cara nada feliz. – Não deviam estar trocando tantos elogios agora. – Ela bufou. – Deixem seus problemas para depois, agora é hora de treinar. Vamos!

   As galinhas saíram rapidamente enquanto a treinadora as observava pelas costas. Depois que todas elas saíram Mia disse que tínhamos apenas cinco minutos para nos trocarmos e estarmos na quadra nos aquecendo. Assim que a treinadora se foi, me virei para Clara e perguntei:

   - Você está bem?

   - Aquela piran... – Ela respirou fundo. – Como eu a odeio.

   - Acho que a Luiza não gosta muito quando falam da mãe dela. Viu a cara dela quando você citou o tal amante?

   - Sim. Ela tem medo que o pai descubra, mesmo quando todos sabem. – Ela tirou a blusa e começou a se trocar. – Tudo isso porque a vadia te odeia. O que ela tem?

   - Inveja, minha amiga, é isso o que galinhas como ela têm. – Comecei a me trocar também. – Quanto mais ignoramos a existência dela, melhor.

   O treino durou duas horas apenas, pois os treinadores teriam uma reunião com o comitê do campeonato. Quando terminamos já eram 8 horas da noite. Clara disse que dormiria na minha casa, mas antes passaríamos na casa dela para ela pegar algumas roupas.

   - Você não tinha dito que seu irmão iria ver você treinar hoje? – Clara amarrou o cabelo pintado de castanho claro com uma chochinha.

   - Sim, mas ele não veio. Será que ele mudou de ideia e não me avisou? – Eu peguei o celular dentro da mochila para ver se havia alguma ligação, mas não havia. – Ele não tentou me ligar. Deve ter acontecido alguma coisa.

   - Vai ligar para ele?

   - Claro! – Desbloqueei o celular e liguei para meu irmão em questão de poucos segundos. – Toma, vá buscar o carro. – Entreguei a chave para Clara enquanto esperava Rick atender a ligação.

   Assim que Clara sumiu atrás do portão que dava para a garagem do estádio da faculdade, Rick atendeu.

   - Alô?— A voz dele saiu meio rouca.

   - Onde você está, Henrick? – Perguntei.

   - Ah, Áquila, desculpa. Eu... — Uma voz feminina gritou um palavrão no fundo da ligação. – Eh... Não posso falar agora.

   - Henrick! Me diga onde você está e eu irei te buscar. – Eu apertei a alça da mochila com força e raiva. – Espero que não esteja bêbado, pois se estiver eu juro que vai se arrepender.

   - Não... Por favor, Áquila, eu não estou... Talvez um pouco, mas não é nada demais.

   - Onde você está?

   - Na casa de um amigo. — Mais gritos e palavrões e som de música alta.

   - Rick, onde?! – Gritei.

   - Na rua do restaurante Vintenie, uma casa branca de dois andares e muros altos e... – Ouvi águem chamar o nome de Rick no fundo. – Eu vou te esperar na porta. Não quero que você entre na casa.  

   - Chego aí daqui a vinte minutos. – Desliguei a ligação sem esperar ele responder mais alguma coisa. Me virei em direção ao portão de saída do estádio na intenção de sair para esperar Clara me buscar do lado de fora, mas havia alguém parado em frente a ele. Uma silhueta alta e musculosa estava encostada na parede com os braços cruzados sobre o peito. Estava escuro o suficiente para que eu não visse quem era, mas eu tinha certeza de que não era uma mulher.

   Eu não sabia se continuava andando até a porta ou voltava para dentro. Ainda havia pessoas dentro da quadra. Talvez ignorar seja o certo, pensei. Agarrei a alça da mochila com mais força, guardei meu celular dentro do bolso do casaco e comecei a andar. O homem desencostou da parede. Foi preciso apenas um pequeno movimento dele para eu dar meia volta e andar apressada para a porta que dava para dentro do ginásio.

   Era como se eu pudesse sentir ele andando atrás de mim, mesmo não ouvindo seus passos. Meu coração começou a acelerar, meus lábios ficaram secos e minhas mãos geladas. Quando cheguei próxima à porta que dava para os corredores me deparei com todas as luzes apagadas. Todos já haviam ido embora. Os seguranças, eles devem estar por perto. Eles tinham que estar por perto, pois o estádio não podia ficar aberto durante a noite.

   Um frio desconfortável percorreu pela minha espinha. Ele estava perto, mas silencioso. Para a minha sorte, a porta não estava trancada. Entrei no corredor rapidamente e virei à direita, em direção à escadaria do estacionamento. Peguei meu celular e liguei para Clara enquanto descia a escada, desesperada.  Ela atendeu dois segundos depois.

   - Onde você está? Eu já estou na porta do estádio.

   - Me espera na saída C3, agora! - Falei, quase tropeçando nos degraus. – Acho que tem alguém me perseguindo.

   - Alguém perseguindo você? Mas o que?!

   — É! Eu já estou chegando na saída, por favor, Clara, corre pra lá!

   - Calma, eu já estou virando na esquina!

   Ouvi o som de passos atrás de mim e acabei deixando o celular cair. Droga! Peguei o celular sem nem mesmo ver se ele havia quebrado e o coloquei de volta no bolso. As luzes das escadas sempre ficavam acesas então, pelo menos, eu conseguia ver onde estava indo. Os passos estavam se aproximando muito rápido.

   - Ei! – Alguém gritou atrás de mim.

   Não me virei, continuei correndo em direção ao portão. Faltavam apenas trinta metros... Estava quase lá. Quase caí ao escorregar na curva do corredor, mas me apoiei na parede e continuei correndo. Assim que encostei na grade do portão, o ar desapareceu do mundo e meus pulmões protestaram. Estava trancado. Eu sacudi a grade com força, mas estava fechada com uma corrente e um cadeado. Eu estava presa.

   Uma mão pegou meu ombro. Naquele momento eu podia jurar que meu coração havia parado. Me virei rapidamente e quase me joguei no chão chorando quando vi o segurança me olhando com o rosto cheio de preocupação.

   - O que está havendo? Por que estava correndo? – O homem que aparentava ter entre trinta e quarenta anos me encarou.

   - Eh... – Eu não sabia o que dizer. Não queria parecer patética por ter corrido do guarda. – Eu achei que o portão B2 estivesse trancado e corri para ver se este estava aberto. – Pior mentira de todas.

   - Você devia ter ido até o departamento de segurança que fica logo atrás da quadra. Alguém teria lhe ajudado. – O homem tirou o chaveiro cheio de chaves do bolso e começou a procurar a certa no meio de tantas.

   - Desculpe, eu farei isso na próxima vez.

   - Vocês, garotas, sempre muito desesperadas. – Ele encontrou a chave do cadeado e o abriu. O homem tirou a corrente do portão e o empurrou para fora para que eu passasse. – Tome cuidado.

   - Obrigada. – Dei um sorriso fraco, ainda sentindo meu coração acelerado dentro do meu peito.

   - Tchau! – O segurança colocou a corrente de volta no portão a trancou o cadeado.

   - Tchau! – Me virei rapidamente, já correndo em direção ao meu carro que estava parado logo à frente.

   Assim que entrei na porta do carona, Clara olhou para mim com seus olhos azuis, ela parecia estar mais assustada que eu. Afundei no banco, coloquei o sinto e disse:

   - Dirige!

   Assim que chegamos em casa eu dei a maior lição de moral que já havia dado no meu irmão. Ele estava bêbado, nem tanto, mas havia ido para uma festa sem a permissão dos meus pais e isso era imperdoável. O pior, em plena sexta à noite. Eu contaria para a mamãe quando ela voltasse do escritório.

   Clara subiu e guardou as coisas dela no meu quarto enquanto eu ia para a cozinha ver o que tinha para comermos. Mila, a nossa empregada estava terminando de limpar o fogão quando eu cheguei. Eu perguntei para ela se havia alguma besteira super gordurosa para prepara e ela riu. A mulher tinha 47 e era mãe de duas lindas moças, Mila era incrivelmente boa quando o assunto era comida.

   - Que tal batata frita? – Ela colocou o pano sujo sobre a pia. – Eu posso colocar queijo por cima e fazer suco de abacaxi com hortelã.

   - Mila, você é a melhor. – Eu sorri, empolgada. - Eu vou subir agora para escolher um filme.

   - Vai lá. – Ela continuou trabalhando enquanto eu subia as escadas, pulando de dois em dois degraus.

   Quando eu entrei no quarto me deparei com Clara sentada na cama, com várias capas de filmes espalhadas envolta dela. Me sentei na ponta da cama e peguei a capa do filme Rei leão. Minha amiga me encarou com um sorriso engraçado no rosto.

   - Lembra quando nós imploramos para sua mãe comprar as orelhinhas de leão para nós naquela viagem à Disney? – Ela deitou a cabeça na minha perna.

   - A melhor viagem de toda a minha vida. – Eu coloquei o DVD sobre a cama de novo. – As orelhinhas estão dentro do armário, ao lado da pelúcia do Nemo que seu pai me deu.

   - As minhas estão na minha prateleira de pelúcias e fotos. - Ela sorriu. – Vamos ver o que?

   - Que tal uma maratona de TWD? – Sugeri.

   - Hm... – Ela levantou e puxou uma almofada para ela. – Assistir The Walking Dead ás 9 horas da noite? - Um estalar de língua. – Tentador.

   - Liga essa TV logo. – Joguei o controle para ela. – Vou tomar banho e depois você vai. – Levantei e fui em direção ao banheiro.

   - Tá bem.

   Quando voltei, minha amiga me chamou na varanda.

   - Acho que ele está lá. – Clara deu zoom com a câmera. – As luzes não ficam acesas á toa.

   Nós sentamos em almofadas, no chão da minha varanda, espiando o quarto da casa da frente, que ficava de frente para o meu. Queríamos descobrir quem era o vizinho misterioso que se mudara para o casarão branco de uma antiga família havia duas semanas. A casa era cara demais para ser comprada por qualquer pessoa. Ou o homem era um velho divorciado, com muito dinheiro e dono de uma enorme empresa, ou um cara de meia idade filho de um velho divorciado, com muito dinheiro e dono de uma enorme empresa.

   - Ali! – Ela me entregou a câmera profissional, que era dela, e apontou para a pequena brecha entre as cortinas da janela do quarto. – Dá para ver uma escrivaninha.

   Eu olhei através da lente e só vi a quina de uma mesa de madeira. Podia ser uma escrivaninha, mas podia não ser também. Lhe entreguei a câmera e encostei na sacada de vidro da minha varanda. Aquele era o nosso ponto de observação, e uma sacada de vidro não ajudava na hora de nos escondermos então cobrimos toda a sacada com cobertores pretos. Também tínhamos almofadas, binóculos, cobertores, pelúcias, um notebook e uma barraca de camping.

   Nós dormíamos na varanda ás vezes, quando estava muito calor e o céu estava estrelado. Eu e Clara sempre fomos grandes amiga, desde os nossos nove anos de idade e nunca nos separávamos. Éramos como irmãs, e seríamos para sempre daquela forma.

   - Não vejo nada demais, Clara.

   - Como não? Aquilo pode dizer muito sobre ele. – Ela olhou novamente através da câmera. – Ela gosta de escrivaninhas bem organizadas, pois eu não vejo nenhum papel sobre ela.

   - Nem dá para ver direito.

   - Ai! Chata. – Ela me empurrou com o braço.

   - Meninas! Me ajudem a trazer a comida? – Mila gritou da porta do quarto.

   - Estamos indo! – Clara gritou de volta. – Não tire os olhos dele! – Ela levantou e correu para ajudar Mila.

   Peguei a câmera que ela havia deixado sobre a almofada e comecei a observar a janela do quarto. As luzes ainda estavam acesas, mas nenhum sinal de movimento. Talvez a cama dele fosse distante das janelas. De repente tudo ficou escuro. Ele havia apagado as luzes.

   - Droga. – Suspirei.

   Mas algo me chamou a atenção... As cortinas começaram a se mexer e uma figura alta saiu de dentro do quarto. Era apenas uma silhueta alta para mim, pois estava escuro o suficiente para que eu não conseguisse ver o rosto nem mesmo com a câmera. Me escondi atrás da sacada e continuei observando pelo vão entre o vidro e o ferro da sacada.

   Ele, em duas semanas, nunca saíra até a varanda, àquela era a primeira vez. Eu precisava ver melhor, mas escondida não dava. Levantei, aproveitando que ele estava olhando para o lado, distraído, e dei mais zoom. Não conseguia ver o rosto dele direito, mesmo com o zoom. Droga! Como eu queria matar minha curiosidade...

   Ele começou a se virar na minha direção e a iluminação do poste de luz me auxiliou a enxergar seu rosto. Diminuí o zoom, podendo ver seus lábios... Perfeitos? Nossa! Eu estava praticamente entrando em transe enquanto observava pela câmera. Seu nariz parecia ter sido esculpido á mão por um artista renomado. E os olhos... Aqueles olhos que pareciam brilhar no escuro eram duas pedras cor de âmbar me encarando... Encarando?

   Deus! Eu havia ficado tão distraída que não percebera que ele me encarava. Praticamente me atirei no chão quando ouvi a voz da minha amiga cantando Sorry, música do Justin Bieber, bem alto. Ela colocou as coisas sobre a mesa, seguida por Mila e então veio até mim na varanda.

   - Por que está jogada no chão? – Ela me ajudou a levantar.

   - Ele! O homem saiu na varanda!

   - O que?! – Ela gritou.

   - Não grita! – Tapei a boca dela e olhei para trás. Ele não estava mais lá e a janela estava fechada. Meu coração tentava sair do meu peito enquanto eu olhava para o lugar onde vira o homem, como se ele ainda estivesse lá. – Vamos para dentro.

   Nós comemos toda aquela comida extremamente gordurosa enquanto víamos Rei Leão pela centésima vez. Clara não parava de reclamar, dizendo que eu deveria pelo menos ter tirado alguma foto do homem para que ela visse também. Eu até teria tirado se não tivesse surtado no momento em que percebi que ele me encarava, mas minha amiga não entendeu isso, continuou dizendo que eu era uma frouxa e que queria ter visto o homem.

   Quando o relógio apitou, às 3h da manhã, nós levamos os pratos e copos sujos para a cozinha e voltamos para o quarto. Minha mãe passara lá horas atrás para dizer “oi” e perguntar se estava tudo bem. Nós a abraçamos, principalmente Clara, pois ela já não via minha mãe há três dias, e então ela voltou para o quarto dela. Depois que meu quarto já estava limpo novamente, dormimos como lindas ogras.

   Oito horas da manhã! Rick ousou nos acordar, em pleno sábado, às oito da manhã. Como eu o odiava por aquilo... Mas o idiota disse que precisava de ajuda com a arrumação da garagem e eu havia prometido que o ajudaria caso ele precisasse. Meu querido irmão só havia feito àquilo para se vingar de mim, pois eu o acordava todos os dias, bem cedo.  

   Depois de duas horas extremamente demoradas de arrumação na garagem, eu, Clara e Rick decidimos que seria cabível irmos juntos ao cinema antes do treino de vôlei. Quando voltamos do shopping já estava quase na hora do treino. Clara sugeriu que fossemos direto para o estádio e depois passássemos na casa dela para pegar o pudim de leite condensado. Era sábado de tarde e logo estaria na hora do jantar com nosso querido, e desconhecido, vizinho.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado >.<
Me desculpem caso tenha algum erro de ortografia, pontuação etc.
S2



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