Um Céu Sem Estrelas escrita por boaveis


Capítulo 1
Capítulo Único




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Alex olhou para a tela do telefone. Era a terceira vez em dez minutos que Andy o ligava. Por menos que ele quisesse falar com seu melhor amigo, podia ser importante. Suspirando, atendeu.

“Alô?”

“Alex?” A voz do outro lado era familiar, doce e melódica, mas havia algo errado.

“Sim, sou eu. O que foi, Andy?” Talvez ele estivesse sendo um pouco grosseiro demais, mas não se importava.

“Eu… eu queria falar com você. Pessoalmente.”

Silêncio.

“Ahh, agora você quer falar comigo? Eu não sei, Andy…”

“Por favor. Só conversar. Por favor.”

Alex suspirou. “Se insiste... Quando quer falar comigo?”

“Amanhã, se você estiver livre?”

“Onde, então?” A voz de Andy o irritava, a simples ideia de que ele ligava, depois de tanto tempo, para conversar, o deixava com mais raiva que ele podia imaginar.

“Pode… Pode ser na sua casa?”

“Acho que sim.” Alex então passou o endereço de seu apartamento para Andy.

“Que horas?”

“Depois do almoço.”

“Tudo bem, então. Te vejo amanhã.”

Andy desligou. Alex tinha muito em que pensar. Ele não queria ver o amigo nunca mais na vida e, ao mesmo tempo, seu coração parecia que ia sair do peito se batesse mais rápido. Teria um dia cheio amanhã. Foi dormir, pensando num tempo em que as coisas eram mais simples.

 

***

Alex e Andy haviam se conhecido no primeiro ano do Ensino Fundamental. Alex havia se mudado para a cidade naquele verão, e não tinha nenhum amigo. Andy vivera lá por toda sua vida, mas ainda assim não era muito popular. Fisicamente, os dois eram opostos: Andy era pequeno, magro e ruivo, já Alex era grande demais, alto e gordo. Por mais que fossem diferentes, os dois ficaram amigos assim que começaram a conversar, amizade essa que durou plenamente durante toda a infância. Eles faziam tudo juntos, dormiam um na casa do outro, e estavam sempre rindo e se divertindo juntos.

A puberdade, no entanto, chegou. E com ela o mundo dos melhores amigos começou a ruir. Enquanto todos os outros garotos se importavam com meninas, Alex se via cada vez mais encantado por Andy. Não entendia muito bem o que estava acontecendo, e nem o porquê, mas nunca falou sobre aquilo com ninguém. Passou a maior parte da adolescência escondendo seus sentimentos de todos, inclusive de Andy, mas seu melhor amigo percebeu que algo estava errado. Eles estavam se afastando um do outro, e Andy achava que tinha feito algo de errado. Por fim, quando eles já haviam se formado, Alex finalmente explicou a seu amigo o que estava errado, o porquê de ele estar tão distante.

Dizer que Andy não aceitou aquilo bem seria diminuir a verdade. Ele disse para Alex coisas que nunca pensara em dizer, mas que, com o total choque da situação, escaparam. Por fim, Andy disse a Alex que nunca mais falasse com ele, e foi isso o que Alex fez. Até aquela tarde, nenhuma palavra foi trocada entre eles. Haviam ido cada um para uma faculdade diferente. Alex se tornou enfermeiro, e Andy fez administração, para ajudar seu pai com o negócio da família, uma loja de produtos para carros.

Alex teve um namorado na faculdade, seu nome era Max. Foi nessa época que ele se assumiu gay para sua família, e todos aceitaram melhor do que ele esperava. O namoro, no entanto, acabou não dando certo. Terminara o curso, e  voltou para sua cidade natal, onde conseguiu emprego no hospital local, e agora, depois de tanto tempo, iria ver Andy novamente. Não sabia o que esperar do dia seguinte.

 

***

 

No dia seguinte, por volta das duas e meia da tarde, um táxi parava na frente do prédio de Alex. Andy desceu. Ele estava extremamente nervoso. Alex provavelmente o odiava, e com razão. Ele disse coisas horríveis, e se afastou de seu único amigo verdadeiro. Suas melhores lembranças eram com Alex. Havia uma específica, de quando Alex machucou as costas em um acidente com vidro. Eles deviam ter onze ou doze anos. Andy se lembrava de passar muito tempo ajudando o amigo com os curativos, indo atrás de remédios para dor e mais tarde, quando os machucados já haviam sido curados, passar as mãos pelas cicatrizes que restaram. Havia algo estranhamente íntimo naquela lembrança, mais do que Andy queria analisar.

Por muito tempo, ele havia tentado esquecer seu amigo, e o que ele disse. Por muito tempo, se recusou a analisar o fato de que só pensar em Alex fazia com que seu coração batesse mais forte. Foi no último ano de faculdade que ele finalmente se deu conta da verdade: precisava de Alex. Era uma ideia completamente nova e absurda, afinal ele sempre gostou de garotas, mas, apesar de não entender o porquê daquilo, não havia como negar que o que sentia pelo outro era mais forte do que qualquer coisa que já sentira antes, e, se parasse para pensar, Andy perceberia as inúmeras vezes nas quais ele havia se interessado por garotos, e, especificamente, por Alex. Ele o amava, como nunca havia amado ninguém. Saber disso, no entanto, não fez com que ele se aproximasse de seu amigo e, na verdade, teve o efeito contrário; se antes ele não queria falar com Alex, agora simplesmente pensar nele o deixava mal. Ele o amava, mas o quê fazer? Viver com outro homem, amar outro homem? Aquilo não parecia certo. Cercado por seus próprios preconceitos Andy decidiu ignorar seus sentimentos. Havia sido bem sucedido, até que um acidente – que, em sua cabeça sempre seria o acidente – fizesse ele repensar todas as suas atitudes, inclusive com relação a Alex. Depois de quase sete anos, ele estava voltando para Alex, e para todos aqueles sentimentos que ele, por tanto tempo, havia negligenciado.  Ele só esperava que não fosse tarde demais.

Andy iria se desculpar por tudo que fizera. Talvez ele conseguisse arrumar sua bagunça, talvez eles pudessem ser amigos novamente e talvez (e essa possibilidade era tão pequena que Andy não ousava sonhar com ela) eles pudessem ser mais. De qualquer forma, ele sentia falta do amigo e depois de seu próprio acidente, bem mais grave que o de Alex, ele precisava conversar com alguém familiar e confiável. Com a ajuda do porteiro do prédio, Andy chegou até o andar certo e, respirando fundo, bateu à porta de Alex.

Por favor, não me odeie, por favor.

 

***

 

Alex ouviu as três batidas em sua porta. Andy sempre batia três vezes, era um hábito que ele, aparentemente, não havia perdido com o tempo. Tomou coragem, e abriu. Ele não sabia o que esperar, mas definitivamente não era aquilo o que viu: Andy, ainda baixo, ainda magro, com o cabelo tão laranja como sempre, usava óculos extremamente escuros, pretos talvez, e uma bengala, daquelas que deficientes visuais utilizam.

“Andy?”

“Oi, Alex.”

“O que… o que aconteceu com você?”

“Então você não ficou sabendo do acidente?”

“Não.”

“Posso entrar?”

“Ah, claro! Quer ajuda?”

“Seria bom.”

Fechando a porta, Alex guiou Andy até o sofá mais próximo, onde sentou ao lado de seu amigo.

“Você quer saber o que aconteceu?” começou Andy.

“Sim.”

“Bom, eu… eu sofri um acidente de carro. Já faz quase um ano. Um cara passou no farol vermelho e bateu no meu carro. Eu não me lembro de muita coisa, mas eu sei que havia vidro por todo lado, e alguns pedaços entraram nos meus olhos. Foi assim que isso aconteceu.”

“Você disse que faz quase um ano que o acidente aconteceu? Por que não me procurou antes?”

“Eu estava com medo. Depois de tudo o que aconteceu, eu pensei que você fosse me odiar, ou ao menos estar muito bravo comigo. Mas você sempre foi meu melhor amigo, e eu precisava falar com alguém, então…”

“Você devia ter me procurado antes, Andy. Eu poderia ter te ajudado. Meu Deus, eu nunca te negaria ajuda. Eu nunca te negaria nada na verdade. Mas como você tem lidado com tudo isso?”

“Agora eu tô bem, eu acho. No começo, eu não sabia fazer nada, mas já consigo ler o básico em braile, e consigo andar por lugares que já conheço sem problemas. Foi difícil, mas o pior são as coisas que eu nunca mais irei ver: o sol, o céu, as flores, as pessoas. Meu Deus, quantas pessoas eu conheci depois de perder a visão? Eu não tenho a menor ideia de como elas são, eu não sei nada. Tudo é sempre escuro, como naquelas noites em que íamos para a cabana de sua família no interior e não havia estrelas, nem luz, nem nada. É um eterno céu sem estrelas.”

Andy começou a chorar. Depois de tanto tempo sem falar com ninguém, sem realmente contar o que se passava em sua mente, ele estava cansado. Alex o abraçou.

“Andy… Tudo vai ficar bem, eu prometo. Eu… eu vou te ajudar. Vai dar tudo certo.”

“Eu não sei o que fiz pra merecer um amigo como você. Sério. Eu queria pedir desculpas por tudo o que disse, por tudo o que fiz. Foi terrível. Eu não sabia lidar com aquilo, era demais e eu, não sei, fiquei um pouco assustado. Sinto muito. Me desculpa?”

“Claro que sim, eu não consigo ficar bravo com você.”

Andy sorriu, e ele era tão lindo quando sorria, que Alex não se conteve. Antes que pudesse pensar sobre o que estava fazendo, o beijou. O beijo durou alguns segundos, até que Alex percebesse o que estava fazendo e se afastasse.

“Andy, eu sinto muito! Eu não pensei, de verdade, eu não…” Andy o interrompeu.

“Eu gostei.”

“O quê?!”

“O beijo. Eu gostei. Você pode fazer de novo?”

Antes que sua parte racional o impedisse, Alex o beijou. Ele poderia passar horas, dias, sua vida inteira, beijando Andy. Era um sonho, daqueles distantes que se tem certeza que não se tornarão realidade. E o melhor de tudo era a resposta de Andy, se agarrando a ele, pelos cabelos, pela blusa, por todo lugar. A única coisa que fez com que eles se separassem foi a falta de ar, e mesmo assim eles logo se entregaram novamente aos beijos, beijos lentos e doces, rápidos e violentos, cada um diferente do outro, cada um melhor que o anterior, até que estivessem tão intrinsecamente unidos que fosse impossível dizer onde terminava um e começava o outro.

Eles foram para o quarto de Alex, onde se livraram de todas as suas roupas e se deitaram na cama, pele contra pele.

 

***

 

Andy daria qualquer coisa para vê-lo naquele momento. Qualquer coisa. Mas era impossível. Ele nunca mais veria nada, ninguém. Nunca mais veria o sol nascer, nunca mais poderia ver seu rosto. Ele o abraçou, e correu suas mãos pelas costas do outro. Naqueles últimos meses, seu tato havia ficado bastante apurado, e Andy foi lembrado mais uma vez, naquele mesmo dia, do incidente com o vidro, quando cuidara das costas do amigo. As cicatrizes estavam lá, exatamente como ele se lembrava. Conseguir sentir novamente depois de tanto tempo sua pele contra a dele, as cicatrizes em suas costas, a textura macia, que ele poderia explorar por horas, fez com que ele percebesse que por mais que  não conseguisse enxergar, ele ainda sentia. Sua pele contra a dele era uma sensação inédita, mas que parecia tão correta que era como se sempre tivesse existido. Era assustador e libertador, terrível e maravilhoso. Um sentimento ao mesmo tempo tão novo e tão familiar se apoderou de Andy e o fez perceber que ainda havia tempo. Ele tinha muito tempo pela frente. Aquele foi o momento no qual ele percebeu que, talvez, sua vida não tivesse acabado após o acidente. Talvez, ele ainda fosse capaz de amar e ser amado. Talvez, apenas talvez, tudo fosse dar certo.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! :3