13 escrita por Sora Inu


Capítulo 2
Apesar de todo o tempo...


Notas iniciais do capítulo

O que está entre "[...]" são lembranças passando na cabeça dos personagens ou sendo contadas por eles, por isso a narrativa muda de terceira para primeira pessoa.



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As imagens da rua passavam rapidamente para Raphael através da janela empoeirada daquele carro antigo, o silêncio imperava entre as únicas pessoas presentes naquele automóvel. Mas a mente de um deles estava repleta de indagações, e diversas emoções afloravam em seu corpo. Primeiro Raphael pensava no homem desacordado, alguém obviamente já o teria encontrado nessa altura do campeonato e o socorrido. Segundo, a confusão sentimental que se formava, sentia raiva, fúria, ira pelo melhor amigo ter sumido repentinamente por mais de uma década, e ao mesmo tempo a felicidade, alegria por Guilherme estar aqui, na sua frente, juntos depois de muito tempo, e por último, sentia medo, também estava assustado e curioso sobre os acontecimentos dos últimos minutos. E esperava uma resposta para tudo isso, e foi quando suspirou fundo, tomando coragem, proferiu as próximas palavras, quebrando o silêncio:

— Agora me explica o que está acontecendo! — Raphael falou calmo, ou pelo menos tentou manter a calma na voz, o que fora um desafio imenso para ele.

Só que a resposta nunca chegou.

Guilherme tinha total consciência de que não conseguiria agir normalmente, já levantara suspeitava demais para com o amigo, e não queria envolvê-lo num assunto muito complexo. E tinha outro fator, não existia uma maneira confortável de explicar a situação, e que Raphael também não estava preparado para tanta informação.

— Antes de qualquer coisa, está com seu celular aí? — Guilherme mudou de assunto repentinamente, abrindo a janela à sua esquerda, fazendo com que uma brisa forte entrasse.

— O quê? — exclamou. — O que isso tem haver com o assunto? — a confusão outra vez era notória na voz de Raphael.

— Só responde!

— Sim... — balbuciou.

— Me dê. — exigiu, levantando a mão.

Raphael pegou o aparelho do bolso do bermudão, olhando para o celular recém-comprado, depois de alguns segundos de hesitação colocou-o sobre a mão que estava estendida. Em movimentos rápidos demais para serem compreendidos, Guilherme jogou o celular pela janela.

— Vai tomar no cú! — gritou Raphael, sentindo sua garganta doer, sua voz mais alta do que ele mesmo tinha planejado. — Que porra você fez? Eu acabei de comprar aquele celular!

Guilherme se manteve impassível, ignorando toda a irritação do outro.

— Pensa bem... Um celular tem GPS, a gente pode ser encontrando em qualquer lugar, e isso não pode acontecer! — apesar da calmaria na voz, o tom era autoritário. Raphael não conseguia retrucar. — Não se preocupe. — desta vez ele falou convincente. — Logo tudo isso vai acabar, e vai voltar a ser como era há treze anos. Só... Eu só preciso que você me ajude. — Guilherme revisava seu olhar entre a estrada e o espelho retrovisor, encarando a expressão pensativa do antigo melhor amigo. Ficou quieto por alguns segundos, como se procurasse as palavras certas. — Eu não consegui pensar em mais ninguém.

— Mas porque você sumiu? — Raphael tocou novamente neste assunto. — Por onde você andou todo esse tempo?

Eu sempre estive te observando, não só você, a todos, observando e fazendo todo o possível para protegê-los, era isso Guilherme queria dizer, mas não podia assim ele revelaria muita coisa e teria de explicar outras mais complicadas. Então fez exatamente o que fez antes quando recebeu essa pergunta: ignorou. Mantendo-se quieto.

Desviando sua atenção do caminho, Guilherme foi até o porta-luvas, remexendo no fundo de mesmo, retirando de lá uma caixa mediana de cor preta, entregou para Raphael, que apesar da irritação pegou prontamente aquilo. Girou aquela caixa diversas vezes, até que questionou:

— Que bosta é essa? — continuava irritado, tanto por ter sido ignorado quanto pelo celular jogado.

— Abre primeiro.

Raphael obedeceu, retirando de lá um aparelho pequeno, também preto, parecia um modelo antigo, uma cópia exata do famoso Nokia azul, que fora um sucesso na época em que os celulares começaram a entrar na moda.

— É um celular que eu mesmo montei. — explicou ao mesmo tempo em que o amigo remexia o celular, ligando-o.

— Se quisesse montar um, podia ter feito um upgrade nele! Mas como essa porra funciona? Nem tem teclas... Quer dizer, quase, tem apenas uma. — começou a se queixar.

— Ele só serve para falar comigo, aperte essa tecla do centro e pronto. Eu também tenho um, pra eu falar com você vai ser a mesma coisa. — retirou um aparelho idêntico do bolso, balançando-o na frente do amigo.

Raphael não compreendia, ainda estava indignado com tudo aquilo. Pra que tanta precaução? Ele estava se sentindo o protagonista de um seriado policial, só que ele no caso era o ladrão, não o tira.

— Pra que isso? — perguntou ríspido. — Não, pra que tudo isso? — ressaltou. E mais uma vez não houve resposta. Paciência era uma das muitas virtudes de Raphael, mas existia um ponto crítico para tudo, e ele já havia passado desse ponto. — Quer saber? Vai se foder seu retardado filho de uma puta! Pare a merda do carro, eu vou pra casa!

— Para de ser ingrato! Eu estou te salvando! — era notável que Guilherme estava se segurando, como se estivesse tentando controlar suas palavras. Mas seu limite estava próximo de se exaurir.

— Me salvando? — repetiu, soltando uma risada debochada. — Me salvando do quê? Eu nem sei o que está acontecendo! — gesticulava os braços demonstrando sua raiva. — Sem contar que eu não estaria passando por isso se não fosse você!

O carro da uma freada, um movimento tão brusco que o corpo de Raphael é jogado para frente, batendo com a testa no banco do motorista. Estava prestes a se queixar outra vez, mas Guilherme foi mais rápido, virando o corpo em 180º graus, e a expressão que ele carregava era pavorosa, o cenho estava franzido, e os castanhos amendoados pareciam duas orbes de pedra, nada além de raiva podia ser notado.

— Se você soubesse exatamente o que está acontecendo, e se você tivesse consciência de pelo menos dez por cento do quanto eu me esforcei para te manter seguro ou pra você continuar vivendo essa coisa medíocre que você chama de vida, você calaria a porra dessa boca e implorava perdão por tudo que acabou de falar! — berrou em plenos pulmões, apontando o dedo indicador para o rosto de Raphael. Cada palavra foi carregada de uma fúria jamais vista, intimidando o carona.

Raphael estava colado no banco traseiro, suas costas pareciam se fundir com o estofamento. O semblante que este carregava no rosto era de aterrorizado, sua respiração estava descompassada, estava com medo daquele Guilherme, com medo de seu melhor amigo. E o outro percebeu isso, percebeu que estava passando dos limites. Como numa peça improvisada, ele precisa disfarçar aquela ação e foi exatamente isso que fez.

Uma risada cortou todo o silêncio, uma gargalhada falsa.

— Você devia ter visto sua cara! — continuava rindo, exibindo todos os dentes, era uma risada forçada, Raphael sabia. Guilherme virou o corpo, tocando no volante, ainda tentando disfarçar a situação com aquela gargalhada. — Não se preocupe com essas coisas, acho que depois que sumi eu fiquei mais idiota do que o normal... Se isso foi possível. — ele foi parando de rir juntando com as frases finais, voltando a se controlar.

— É... Parece que sim... — murmurou para si mesmo, normalizando a respiração, tentando relaxar os músculos sobre o banco. — Mas... Você ainda não me falou o que aconteceu. — insistiu outra vez.

E o silêncio foi a resposta. Raphael não suportava aquele silêncio, não aguentava essa impásseis do amigo.

— Não vai mesmo falar? — reforçou. — Vai continuar com essas merdas de segredinhos como antes?

— Calado! — Guilherme pronunciou alto, não tão agressivo como antes, mas continuava com a voz feroz. Respirou fundo, voltando a ligar o carro. — Nunca tive "segredinhos" que não fossem importantes, mas eu tentei te contar tudo através de alguns enigmas, só que você é meio burro para entender. — ele rua debochado a cada palavra, como se tentasse amenizar alguma coisa.

E isso não passou despercebido por Raphael, às risadas eram forçadas, como se Guilherme estive evitando um clima de tensão se apossar do ar ao redor deles. Raphael manteve-se quieto, duas opções se formularam em sua mente. Ou ele continuaria exigindo uma resposta, ou desse um tempo para o amigo, e lhe contava quando fosse à hora necessária. Optou pela segunda.

Aproximou-se mais da janela empoeirada, voltando a encarar a paisagem que passava rapidamente, não reconhecendo está área da cidade. Já fazia uns bons minutos que eles estavam andando de carro, e esse tal restaurante parecia não chegar nunca.

O silêncio lhe incomodava, apesar de apreciar a calmaria, estar no mesmo local que Guilherme e nenhuma palavra ser dita era algo tão absurdo que poderia ser equivalente a um vegetariano numa churrascaria bovina. Precisava quebrar o silêncio, mas afinal, o que falaria? Contar o quanto sua vida continuava pacata? Não, pelo que parece, ele já sabia disso. E então se lembrou de algo que o amigo sempre lhe contava.

— Ainda tem aquelas ideias de mudar o mundo com alguma coisa? — sorriu nostálgico, lembrando-se das longas conversas que tinham. Desviou o olhar da janela vendo Guilherme pelo retrovisor, que só agora percebera que o vidro estava partido. — Lembro que você queria inventar qualquer coisa. Montar uma banda, escrever um livro, criar um jogo, essas coisas. Algo que pudesse mudar, ajudar as pessoas. — recordava.

Guilherme ergueu o olhar, analisando a expressão que apossava na face do amigo, ele aparecia estar mais calmo. Ele voltou a sorrir, mas desta vez seu sorriso era verdadeiro, diferente dos outros. Radiante.

— Sim. — respondeu animado. — Ainda estou, e ainda conto com você pra me ajudar com isso. Agora minha pergunta padrão de sempre. — Guilherme ergueu a mão direita mantendo o punho fechado, curvando levemente o membro, como se estivesse celebrando alguma coisa. — Vamos mudar o mundo?

Raphael riu debochado. Parece que apesar dos treze anos distantes, Guilherme continuava o mesmo idiota. Mesmo sendo um homem adulto tinha uma infantilidade típica de uma criança de dez anos. E aquilo era algo marcante na personalidade do amigo.

— Você continua o mesmo cara de anos atrás. — sorriu amarelo. — Você nem imagina quanto seu jeito meio sem nexo de ser fez falta.

Ambos riram diante esse comentário. Era incrível como uma amizade verdade não se abala pelo tempo. Amigos de verdade serão sempre amigos de verdade, não importando quanto tempo fiquem distante um do outro.

— Cara, eu tentava...

Antes de conseguir concluir a frase, o carro dá um cavalo de pau bruto, o som estridente dos pneus cantando no asfalto quase deixaram Raphael surdo. Não estava preparado para aquele ato.

Guilherme virou o rosto, sorrindo para o amigo que estava segurando-se com toda a força no cinto de segurança do banco traseiro.

— Chegamos, hora do almoço!

Raphael olhou para o local onde Guilherme havia estacionado, não era nada parecido com o restaurante que ele havia dito que eles iriam, longe disso, aquilo nem chegava a ser um estabelecimento comercial, parecia, literalmente, um barraco, como aqueles montados em periferias. Alguns pedaços quadrados de madeira podre, e muito mal colocados cobriam o quintal, parecia que um simples movimento brusco faria com que elas fossem diretamente para o chão, quebrando-se.

— Almoço? — Raphael foi o primeiro a se pronunciar. Aquele local não lhe trazia nenhuma confiança, pelo contrário. — Você tem certeza? Quero dizer, olha para isso! — ele apontava com a mão espalmada, claramente debochando do local. — É um portão feito com madeiras velhas!

— É... Eu sei! — Guilherme falou contagiante, como se fosse uma criança mostrando um brinquedo novo. — Eu moro aqui. — sorriu olhando diretamente para o amigo, que arregalou os olhos, surpresos. — Mas relaxa, deve ter um pouco de arroz, ovo e alguma coisa de óleo. — a voz mudou, voltando a ser aquela típica alegria boba de Guilherme, a mão direita passava a mão na testa, como se ele estivesse pensando em alguma coisa.

Após alguns longos segundos, Guilherme saí do carro, Raphael querendo se ver livre de dentro daquele estofamento furado e empoeirado levanta o banco do motorista, preparado para também sair, mas sente uma mão empurrá-lo para dentro com uma força absurda e a porta é fechada num estrondo alto.

— Mas que porra...? — Raphael se queixa tocando no ombro, onde fora empurrado. — Você est...

— Calado! — Guilherme o interrompe outra vez. — Espera um pouco.

O desaparecido olha para toda a extensão da rua, depois levanta o rosto, vendo o segundo andar dos sobrados, ninguém os estava observando, e isso já era um ótimo sinal. Um pouco menos tenso, Guilherme abre novamente a porta e desta vez, ele mesmo levanta o banco do motorista.

— Tranquilo, pode vir. — avisou.

— Você está começando a me deixar realmente assustado. — revela Raphael, enquanto sai do carro com gestos lentos.

— Não se preocupe, tá comigo, tá seguro... — Raphael percebeu que não havia convicção nessas palavras, encarou diretamente seu antigo melhor amigo, as amêndoas encontraram o tom sépia dos orbes alheias. Guilherme deu mais um sorriso, tentando transparecer confiança. — Confie em mim, por favor. — arriscou fazer um olhar de "cachorro que caiu da mudança", só que em resposta recebeu uma negativa seguida de um sorriso.

— Eu sempre confiei em você, e você sabe muito bem disso. — Raphael colocou a mão esquerda no ombro do amigo, sorrindo amargamente. Logo o soltou, dando alguns passos para frente de seu amigo, ficando trás dele nenhum dos dois se olhos, mas o ar melancólico e cabisbaixo tomava conta do ambiente. —Talvez você nunca tenha confiado em mim... — murmurou baixo, mas num tom audível o bastante para que chegasse aos ouvidos de Guilherme.

— Certo. — sorriu. — Mas não temos tempo para discutir confiança, entra! — Guilherme começava a retirar alguns pedaços da madeira podre.

Raphael negou com a cabeça, virando o rosto para os lados, finalmente observando a rua. Parecia que todo o bairro era de periferia, as casas eram mal construídas, totalmente desniveladas, muitos portões de madeira ocupavam a rua, mas nada comparados ao que Guilherme dissera que era "sua casa", só que as casas pareciam velhas, abandonadas, como se ninguém morasse aqui há anos. Parecia uma rua fantasma de tão deserta. Olhando mais ao fundo da mesma rua, podia ver que começava uma longa estrada de terra.

Guilherme o chama baixinho, acordando-o do transe, os dois passam por um corredor estreito, formado por diversas madeiras pobres, como se fosse criado propositalmente para ocultar algo.

— Onde estamos? — Raphael finalmente criou coragem para perguntar.

— Já falei, estamos na minha casa. — respondeu o óbvio.

— Isso eu sei. — falou irônico. — Mas eu quero dizer, em que parte da cidade estamos?

— Ah, não se preocupe. — o outro deu de ombros, empurrando a porta de ferro com força, tentando abri-la. — É um bairro vizinho do seu... Não lembro o nome agora. Mas fica tranquilo! — um estrondo enorme foi ouvido, significando que ele conseguiu abrir a porta. Guilherme passou o antebraço na testa limpando algumas gotas de suor, soltou um suspiro vitorioso. — Aqui é bom de viver.

Um estalo alto foi ouvido, provavelmente um tiro, Raphael encolheu o corpo, tampando os ouvidos com ambas as mãos, assustado, abriu os olhos que haviam se fechado pelo susto repentino, vendo que Guilherme continuava parado no mesmo local, calmo e impassível.

— Você não ouviu isso? — Raphael questionou indignado. — O que está acontecendo?

— Calma. São só os vizinhos, eles discutem, brigam, mas quase ninguém morre, a mira deles é péssima. — gargalhou, adentrando para a cozinha, sendo seguido pelo antigo melhor amigo.

— Cara, você me deve muitas explicações. — balançou a cabeça observando a pequena cozinha.

Os azulejos das paredes um dia já foram brancos, agora estavam amarelados, a pia de alumínio estava gordurosa, da torneira algumas gotas caíam de três em três segundos. Desviou o olhar para o amigo que abria a porta da geladeira, retirando um par de ovos, abriu um dos armários pegando uma frigideira de cor preta, com diversos arranhões na superfície. Enquanto Guilherme fritava os ovos, Raphael foi até um pequeno corredor que dava para um lugar tão pequeno quanto o cômodo da cozinha, obviamente seria o quarto. Não conseguia distinguir a cama ou qualquer outro móvel lá dentro, estava tão desarrumado e sujo quanto à cozinha. Em sua mente apenas uma pergunta se formava: como alguém poderia morar num lugar como aquele?

Após alguns minutos, o anfitrião pegou dois pratos que estavam no armário indo até a torneira, limpando-os superficialmente, abriu uma das gavetas debaixo da pia, retirando um par de garfos, fazendo o mesmo que com os pratos. Guilherme pegou uma panela que estava no fogão, que não fora percebido por Raphael, abrindo e colocando um pouco de arroz em ambos os pratos, e por último colocou os ovos.

Foi até um canto afastado da cozinha, pegando duas cadeiras de bar enferrujadas e um caixote de frutas embolorado, que serviria de mesa. Entregou um prato e o garfo para Raphael que olhava com nojo aquela comida, remexendo com o talher ele pode perceber que o arroz estava parcialmente queimado e ovo visivelmente coberto de sal.

— Anda come! — Guilherme incentivou o amigo dando garfadas no próprio prato e mastigando com certa dificuldade. — Está uma delícia. — outra vez a voz tentou demonstrar algum tipo de convicção.

Um tanto relutante Raphael pega um pouco do arroz com certa dificuldade, cortando um pedaço do ovo. Olhou desconfiado para a comida no garfo.

— Vai logo. Pare de frescura! — o amigo ri.

Criando coragem Raphael finalmente coloca o garfo com todo o alimento na boca e, de imediato, fez uma careta de desgosto, tossindo involuntariamente.

— Isso aqui tá horrível! — Raphael apoiou o prato no caixote improvisado de mesa, forçando agora a tosse para retirar o gosto que aquilo deixou em sua língua.

— É... Eu sei. — balbuciou, colocando o prato também no caixote. — Mas é o que tem pra comer por hora. — forçou um sorriso outra vez. — Come um pouco só pra não ficar de barriga vazia, prometo que mais tarde vamos numa lanchonete e...

— Nossa! — Raphael levantou-se na cadeira num pulo, fazendo com que a mesma tombasse, fazendo um som alto quando chegou ao chão. — Você acabou de me lembrar que eu tenho que falar com a Jully.

— Não tem não, ainda não. — Guilherme falou calmo, tocando o ombro do amigo levemente. — Eu sei que vocês iam sair hoje, mas isso não vai ser possível. — Pegou os dois pratos, jogando um, com toda a comida, dentro da pia. — Assim que tudo se resolver a gente explica para ela... Até por que... — Guilherme vira o rosto, encarando o antigo melhor amigo, e nos olhos castanhos escuros era possível notar algo enigmático, misterioso. — Você não quer colocá-la em risco a envolvendo nisso, não é mesmo?

— Como você sabe que íamos sair hoje? — questionou agressivamente, apesar do tom na voz Raphael estava espantado. — Aliás, como você sabe da Thaís? Eu a conheci depois que você sumiu! E como assim colocá-la em risco? — vociferava aproximando-se de Guilherme, queria suspender-lhe pelos colarinhos, exigir todas as respostas de suas perguntas ainda não respondidas.

— Antes de tudo, relaxa. — fez um movimento com a mão pedindo paciência para o amigo. — Eu sei de bastante coisa, não se preocupe. — Guilherme ainda segurava o outro prato, apoiou o corpo na pia, colocando todo o pouco peso. — Só me responda: você quer mesmo colocá-la em risco?

Raphael aquietou-se, controlando a respiração que começara a descompassara e ele nem havia percebido, abaixou os braços, relaxando os ombros.

— Eu já nem sei mais o que falar... Mas tudo bem. Você está certo. Eu não quero envolvê-la nisso. — a voz soou mais branda, ofegante apesar de tudo. — Mas, por favor... Me fala, envolvê-la no quê? O que está acontecendo? — suplicou mais uma vez, só que agora Guilherme abaixou o rosto, pondo-se a pensar.

— Tudo bem... Vou explicar em partes...

 [...]

Isso foi há muito tempo, bem antes d'eu resolver desaparecer, mais de treze anos... Pra ser mais exato foi quando voltei para a cidade, depois de ter feito o free-lance com o Robson, queríamos celebrar o meu retorno e o resultado de um trabalho finalmente acabado, marcamos naquele barzinho de sempre, você veio acompanhado da Jennifer, lembro muito bem dela, os cabelos tingidos de laranja, ela era bem magra naquela época, mas era bonita, eu adorava a maneira que o rosto fino dela enquadrava com o resto do corpo, o nariz empinado, a boca avermelhada e bem desenhada, mas o que eu realmente gostava nela era como era possível distinguir os olhares que ela carregava, bem expressivo, quando ela estava animada, chateada, só que ela sempre tinha uma melancolia estranha, triste demais para o meu gosto. Eu suspeitava que aquele olhar triste fosse por causa do namorado idiota dela, mas achava melhor não me intrometer.

E você, seu cabelo enroladinho e preto, gordinho, alto, seu nariz de batata com o rosto largo o ajudava a não ficar tão estranho, seu típico olhar de peixe morto e os lábios carnudos... Não que você tenha mudado muito, pelo contrário, você só ganhou um pouco mais de altura.

Pra mim vocês seriam um casal perfeito. Uma pena você nunca ter tido atitude.

Voltando... Estávamos os três naquele lugar, depois de algum tempo vocês dois saíram, e eu fiquei sozinho, mas não estava incomodado, o clima lá era bem legal, animado, as mesas do lado de fora com diversas pessoas, a rua consideravelmente movimentada. Em nossa mesa havia três copos pela metade e duas garrafas vazias de cerveja. Aquilo deveria ser uma simples reunião de amigos, mas não acabou sendo isso...

Eu não sei quando aquele carro preto chegou, mas ele parou bem em frente ao bar alguns minutos depois de vocês saírem. Então... Um cara bem estranho desceu do carro, alto, usava uma jaqueta negra de couro, óculos escuros, não me lembro de mais detalhes além disso. Andou diretamente até mim e me perguntou em palavras secas e ríspidas se eu era o Raphael. Percebi que não se tratava de nenhum amigo seu, ou algo do tipo, então fingi ser você.

— Sim. Precisa de alguma ajuda?

— Venha comigo! — a voz dele lembrava a minha, era grave, não muito grossa. — Tenho uma coisa pra você.

Por um instante pensei em revelar que eu não era você, mas sabia que se ele descobrisse voltaria pra te procurar, então resolvi segui-lo. De primeira achei que ele iria me levar até o carro, mas passamos dele, andando alguns metros longe do bar até que nos deparamos num beco escuro, e num movimento repentino ele tentou me acertar um soco, por alguma força divina naquele tempo eu já estava treinando taekwondo, meus reflexos apesar de lentos foram o suficiente para desviar do soco dele. Num ato desesperado peguei meu fiel canivete e o acertei próximo ao pulmão diversas vezes... Eu não sei se o matei, mas ele ficou inerte no chão. Eu fiquei desesperado depois daquilo, não sabia o que fazer. Mas sabe nos filmes de ação onde os caras depois de matarem alguém começam a mexer nos bolsos procurando alguma coisa? Eu sempre quis fazer uma dessas coisas, claro que naquele momento eu fiz aquilo para investigá-lo, saber o porquê ele veio atrás de você, no entanto, infelizmente só encontrei as chaves do carro. Peguei e prontamente voltei para o bar. Quando voltei, não se você se lembra, mas eu estava afobado, escondendo o canivete, preocupado com tudo aquilo, disse em poucas palavras que eu precisava ir e você, curioso como sempre:

— Ir pra onde? Você marcou hoje para a gente se reencontrar! Fica aí, vamos curtir já que a gente não consegue mais sair junto por causa dos seus treinos bobos. — acho que você, assim como eu, naquele dia, queria apenas curtir a companhia dos amigos...

— Sério, preciso ir. Aconteceu um imprevisto, e acho que vocês têm coisas para conversarem! — eu tentei te enrolar com aquele papo, e acredito que deu certo, bom, pelo menos nenhum de vocês veio correndo atrás de mim.

Depois que dei as costas eu escutei a sua voz, mas ignorei. Entrei no carro daquele cara, antes de sair dirigindo a esmo, fuxiquei tudo quanta coisa lá dentro, talvez achasse alguma pista, mas não encontrei nada outra vez. Então resolvi dirigir por aí, achar um lugar onde eu pudesse ficar sozinho e pensar, sabe... Acho que eu devo ser meio psicótico por conseguir "matar" um cara e não me importar com isso. E de repente eu escutei um barulho, era um celular, mas não era o meu, percebi que o som vinha de baixo do banco, tateei até encontrar e atendi prontamente. Lembra que eu disse que nós tínhamos uma voz parecida? Só precisei forçar o grave da minha voz, isso era fácil já que eu dava aulas de música.

—... Alô? — falei o mais respeitoso possível.

— Carlos? — o cara do outro lado da linha chamou o nome alto, ele estava irritado, muito irritado. — Por que demorou tanto pra atender essa merda? Você fez o que mandamos? — ele começou gritando e eu afastei um pouco meu ouvido do celular.

— Ah... Cla-Claro que sim! — tentei soar o mais convicto possível, o que você sabe que eu não sou muito bom, então precisava complementar. — Acha que eu não sou confiável?

— Cala a boca seu imbecil imprestável! Você só faz merda! — apesar de toda a minha paciência eu queria muito dar um soco nesse cara só de ouvir essa voz arrogante. — Eu recebi uma foto desse tal de Raphael. Se você tiver fodido com tudo dessa vez eu mesmo terei como resolver... — senti um desconforto ouvindo aquilo. — E te respondendo, não, você não é nem um pouco confiável! Agora vá para algum lugar que ninguém te ache!

Ele desligou a chamada, e eu fiquei por alguns segundos olhando para o celular sem saber o que fazer.

[...]

Um silêncio imperou entre os dois. Raphael respirava ruidosamente, tentando absorver toda aquela informação. Já Guilherme olhava para o prato que permanecia em sua mão, soltou-o, e com a queda ele estilhaçou em diversos pedaços no chão, levantou os orbes, encarando o melhor amigo.

— Vamos nessa?


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