Tratado dos Párias escrita por Isabela Allmeida


Capítulo 7
Os três príncipes sombrios.




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Olhei para Eva meio desesperada, ela agiu normalmente como uma mãe pronta a acolher todos os medos de sua filha. Uma desconfiança de nós três era que Samuel tinha plantado uma espiã ali para saber meus reais sentimentos por ele.

— Querida não se preocupe, você não vai ser escolhida por mais ninguém, irá se casar com Samuel e será muito feliz.

—Tomara que sim mamãe, não sei o que faria se não pudesse ficar ao lado de meu grande amor.

Senti nojo de mim mesma ao falar aquilo, nojo de como aquela frase saiu da minha boca, era necessário encenar.

Não precisava estar ali, não precisava rever Samuel ou enfrentar meu maior medo que era seus olhos, mas sem mim os sombrios iriam ficar no escuro. Só eu sabia do ocorrido no passado, então era a única que saberia o que procurar, quais rostos observar. Quem tivesse planejado tudo estava tranquilo achando que ninguém sabia que houve um plano de boicote porque não havia sobrevivente.

A desculpa do rei quando foi procurado sobre a encomenda é que cumpriu o acordo, as meninas foram levadas vivas ao templo, se aconteceu alguma coisa lá era problema da sacerdotisa e era ela que teria que prestar conta. Mas ela nunca mais foi vista depois daquele dia.

Então depois de tentar pela lei do tratado e não ter conseguido nada aqui estávamos nós, e eu vou dar tudo de mim tenho motivos maiores para querer que a raça sombria não suma. Eles merecem mais que os humanos, não tratam sua própria raça com desrespeito nem mesmo os que eles tomam sob sua proteção, então eu dei a ideia e depois de muitos nãos e mais argumentos e discussões, acabaram aceitando minha ajuda.

Ainda acho que Samuel é precavido por isso mandou as criadas e me sinto incomodada na presença delas. Não havia como saber qual das três era a espiã, então via as três como inimigas e iria atuar sempre que o cheiro delas estivesse por perto.

Era uma situação enfadonha aquele mimo todo, óleo perfumado por todo o corpo, aparar e pintar cada unha, limpar a pele do rosto e busto com cremes. Deitei e fingi dormitar para ter paz, era cansativo ser quem não era o tempo todo.

Voltei a lembrar do dia em que estava na banheira com Eva me esfregando...

Tinha acabado o banho. Ainda não conseguia perder o medo constante de ser surpreendida por um dos três irmãos. Eva me enxugava e parecia um pouco preocupada.

— Querida, quero que fique calma, você não é a mesma de antes, vai ver como está agora no espelho, e saiba que é você mesma, apenas está com um corpo diferente.

Eu não tinha entendido nada do que ela tinha dito. Entendi quando olhei o espelho. Não era uma menina que estava de frente a ele, mas sim uma mulher. Tinha aparência de uns vinte e quatro anos, o corpo esguio, cabelos negros e ondulados caiam livres pelos meus ombros. Meus olhos que até então eram castanhos cor de mel agora era de um verde acastanhado tão claro que eu fiquei com medo de mim mesma.

Meus seios eram fartos e firmes, minha pele estava clarinha, sedosa e sensível depois de ter sido tão esfregada. A única coisa que destoava o corpo perfeito era o ferimento perto do meu umbigo ao lado direito, passei a mão pela mancha azulada em volta do corte quase sarado.

Eva colocou a mão em cima da minha. —Vai sumir essa mancha e apenas uma cicatriz ficará ai, essa cor é pela enfermidade grave que você sofreu, a mistura se concentrou, pois estava inflamando, vai ver, logo não terá mais essa cor.

Acenei para ela pelo espelho e passei a mão pelo meu rosto ainda estranhando tanta mudança. Não senti medo do que via ou como aconteceu. Estava apenas deslumbrada de que algo tão fantástico pudesse acontecer comigo depois de tudo o que tinha passado até ali. Eva me deu tempo para me contemplar no espelho, acompanhava meus olhos olhando o mesmo que eu. Meu nariz sempre tinha sido pequeno e bem feito, mas era um nariz infantil, agora eu via uma mulher bonita que tinha meus traços da adolescência.

Olhei para Eva pedindo socorro com os olhos, queria entender como tinha mudado tanto em apenas dias.

— Querida, sei que esta estranhando sua aparência, você passou por um processo que as meninas teriam que ter passado se tudo tivesse sido diferente. Se a encomenda não tivesse sido boicotada nenhuma menina teria morrido e estariam agora ao seu lado se contemplando no espelho igual você.

Então poderiam ser desposadas por um sombrio, basicamente todos eles dormem, apenas os senhores permanecem acordados. Precisam de muito pouco sono e então cuidam do reino e seguem velando o sono dos outros. Se encomenda chegasse como deveria eles acordariam todos para que cortejassem as mulheres para que pudessem se conhecer e dar tempo ao tempo para descobrirem o sentimento.

Não conseguia falar, mas apontei pra mim em dúvida.

— Sim querida você e mais treze meninas agora passariam por cuidados para poderem crescer mentalmente já que fisicamente estariam prontas para serem desposadas.

Olhei assustada para Eva, então era isso, eu realmente teria que me sujeitar a um senhor mesmo que fosse casamento.

— Não… não. Já sei o que passa pela sua cabeça, mas você não seria escolhida como se fosse um pedaço de carne, aqui as coisas não funcionam assim. Eles estariam ali conhecendo vocês e vocês a eles, saberia quando encontrasse um sombrio que a merecesse, e esse seria seu futuro marido para toda a eternidade. Por isso que teria que ser escolha sua, o trabalho deles seria conquistá-las como manda os costumes de sua raça. Eles são antigos. Não acreditam em subjugar e sim conquistar uma mulher e não acreditam também em estar sem amor.

Deixei Eva falar, ela parecia nervosa tentando me fazer entender que seus senhores eram boa gente, achei interessante essa bravura dela na defesa daquela raça.

E ela continuou falando rápido. —Vai entender querida, a vida longa ao lado de quem não se ama e isso não vale a pena a eles. Por isso teriam o tempo para encontrar em vocês o que precisam e para mostrar todos seus valores e vocês teriam tempo para observar cada um deles por anos a fio, mesmo que isso demorasse muito tempo mesmo, mas agora nunca saberemos se funcionaria não é mesmo, só sobrou você.

Apontei para Eva, não entendia porque ela não estava ali linda e casada.

—Eu? Não querida. Vim de um pacote menor de servidão, por isso entendo o que lhe aflige. Se eu quisesse poderia ter acontecido, mas conheci meu falecido marido aqui. Fui trazida em anos normais apenas para servir e me casei com um humano normal. Ele faleceu depois de uma ronda na floresta, morto por um leviatã. Por vezes alguns são pegos invadindo outros domínios, se não forem mortos rapidamente conseguem fazer estragos, ao contrário do que pensa, não são somente sombrios que vivem nesse reino, aqui há muitos humanos que foram exilados pelos nobres do reino Humanis para serem encontrados por leviatãs. Alguns conseguem fugir vindo chegar aos domínios dos sombrios e alguns alcançam os domínios dos licans também, não sabemos o que acontece com eles lá e como são tratados pelos lobos. Aqui são recebidos e tem alguma chance.

Claro. Se forem pessoas boas ou pelo menos passiveis de correção de seus erros são aceitos e tem uma vida normal, caso cometam crimes ou mostrem que não merecem confiança, os senhores dão jeito neles.

Apertei os olhos para Eva, queria muito perguntar sobre seu marido, saber o que aconteceria ali comigo, onde e iria morar, eram tantas dúvidas, mas não saia nada de meus lábios.

Ela me olhou solidária parecendo ver a frustração em meus olhos.

— Sei que queria saber mais coisas querida, mas temos muito trabalho a fazer, primeiro vamos vestir você e ainda preciso levar você na biblioteca para começar sua educação. Você chegou aqui uma menina e sai daqui uma mulher, mas sua mente ainda funciona como se tivesse quinze anos, você se chama Próxima não é?

Afirmei e apertei os olhos, queria meu novo nome, um nome que seria me dado por meu senhor.

— Não gosta de seu nome eu sei, também já me chamei Próxima. Quando cheguei aqui o senhor Nicolae me deu o nome Eva, talvez ele possa lhe dar um ou você possa escolher futuramente, realmente não sei como eles irão fazer, isso é tão novo pra mim quanto pra você. Achei que teria quatorze meninas para cuidar, e preparar para a sublevação dos homens, mas aqui tenho você, traumatizada, muda e sobrevivente de uma chacina.

Ficamos ali ainda um tempo, não estava muito ansiosa para sair do quarto, estava segura e calma somente ao lado de Eva. Não conseguia imaginar como seria quando saísse dali e me dava um pouco de medo mesmo ela dizendo que nada aconteceria comigo. Depois de vestida e o cabelo preso em uma enorme trança acompanhei Eva até o quarto, usava um vestido cinza grosso de mangas longas justo na cintura e solto até os pés, era simples, quente e macio, o que era bom, pelo pouco que tinha visto lá fora, havia neve por todos os lados.

As poucas casas tinham seus telhados repletos de uma camada branca e havia muitas arvores no fim da carreira de casas, fiquei um longo tempo olhando pela janela. Não parecia um reino, mas sim um vilarejo com casas espaçadas demais e poucas demais.

Eva se aproximou e olhou para fora pensativa. — Não se engane com a força dos sombrios querida, o poder deles não esta em cima, mas embaixo do solo. Há muitos lugares como esse, com casa a grande dos sombrios  que descansam e seus criados com casinhas perto do senhorio por toda a nossa extensão demográfica.

Eles só acordarão em duas hipóteses, em um ataque ou sendo chamados pelos príncipes, o que não acontecerá depois do que aconteceu com as garotas. Enquanto isso as famílias vão tocando a vida e esperando para servir ao seu senhor quando este acordar.

Parecia uma vida tranquila e boa, eu iria gostar de trabalhar ali se tudo o que ela disse fosse verdade. Acompanhei ela quando seguiu para um corredor que tinha uma escada à frente. Estávamos finalmente indo à biblioteca, me sentia insegura. Estava com um misto de apreensão e curiosidade.

Paramos em frente a uma grande porta de mogno. Eva abriu e me pegou pela mão me fazendo entrar na enorme sala fechando a porta em seguida. Ali havia imensas janelas, os vidros eram pequenos quadrados e esfumaçados dando uma cor escurecida ao ambiente deixando tudo aconchegante e mesmo com os vidros escuros dava para ver toda a tempestade de neve que acontecia lá fora.

Olhava tudo com interesse, prateleiras repletas de livros, poltronas espalhadas muito bem combinadas. Quando me virei para o sofá perto da mesa vi três homens que me olhavam com curiosidade.

Estaquei olhando para eles, meu medo tinha me deixado paralisada, ficamos nos olhando, eles me analisando e eu a eles.

Deviam estar curiosos com as mudanças que pelo que entendi foram eles que causaram e eu curiosa para saber o que fariam comigo e como eram.

Todos os três tinham cabelos escuros em diferentes tamanhos emoldurando seus rostos belos e cruéis, mas ao ver a cor de seus olhos eu senti toda a frágil calma me abandonar, eram todos azuis o que me deixou ali embaraçada de pavor.

Não eram como de Samuel, mas para mim pareciam perigosos. Não tinha confiança neles, pareciam caçadores espreitando sua presa com olhos curiosos e assassinos, ao menos para mim pareciam assim naquele momento. Meu medo me fazia os ver como inimigos.

O primeiro a falar foi o de cabelo mais comprido chegando até abaixo dos ombros sem nenhum fio arrepiado, aparados com esmero.

— Sou Rael, folgo em saber que está bem e passou incólume pelo processo.

Pronto voz masculina, olhos azuis e era forte. Meu medo irracional me dominou, era um homem e maior que Samuel, imagina o que poderia fazer comigo?

Balancei a cabeça mentalmente dizendo não para as imagens que voltavam enquanto dava passos para trás até chegar à parede e então não tinha para onde correr. A porta estava fechada e ele não estava muito longe, me pegaria mesmo se eu fugisse.

Não poderia fazer escândalo, ele tinha poder sobre minha vida, não importava o que Eva dissesse. Eu sabia que era só um deslize e seria condenada por meus atos insurgentes.

Não sabia mais o que fazer e ali grudada à parede sem poder continuar a me afastar fiz o que minha mãe tinha me dito para fazer quando encontrasse meu senhor, marido, mestre, dono ou cafetão.

Me curvei como uma serva teria feito.

— Não, por favor.

O de cabelo mais curto se aproximou e fez menção de me levantar, mas o outro homem falou.

— Não Nicolae, não pode tocá-la. Esta traumatizada, eu tentei e ela quase  teve um surto. Melhor dar tempo, assim ela verá que não teve um destino tão ruim sendo encontrada por você do que teria tido sendo encontrada por qualquer outra raça.

Aquela voz eu conhecia era de Dimitri. O homem que estava no quarto, mas aqueles braços que tentaram me levantar eu conhecia melhor ainda. Foram os braços que me salvaram da morte. O seu cheiro me era agradável e me fazia lembrar o conforto que senti em seus braços quando ele me carregou na floresta.

Então me agarrei a ele como um pedido de socorro, ele tinha me salvado uma vez e poderia fazer isso de novo eu sei que podia. Não me deixou morrer na floresta, não fez comigo o que Samuel fez com as meninas indefesas e pelos antigos, eu estava indefesa e fraca quando me encontrou. Me apertei em seu peito e ele me abraçou olhando assustado para os outros dois que estavam tão surpresos quanto ele.


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