Tratado dos Párias escrita por Isabela Allmeida


Capítulo 3
Dívidas e dúvidas




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Acordei com o sol em meu rosto. O excesso de luz feriu meus olhos e levei instintivamente a mão para protegê-los. Logo as cortinas foram cerradas, era um tecido claro, mas grosso e isso deixou uma penumbra agradável no quarto e pude ver melhor onde estava e também a senhora que estava ali.

Ela sorria amigável enquanto arrumava as coisas. — Olá menina, finalmente acordou, sabe por quanto tempo está nessa cama?

Balancei a cabeça negativamente, eu não sentia nenhuma simpatia por aquele rosto simpático e cheio. Sentia apenas medo de seus olhos castanhos e bondosos, tinha medo de suas mãos gordinhas e hábeis que arrumava minha refeição na bandeja enquanto ela falava comigo.

— Você delirou por vários dias em febre, depois mais alguns dias por trauma pelo que passou e por fim delirou pelo remédio que lhe foi dado. Ele mexeu com seu corpo e isso judiou de você e também te salvou a vida. Somando tudo já está nessa cama há uns dez dias.

Eu não sabia o que pensar, não sabia como interpretar isso, estava com medo vazando pelos meus poros. Não tinha sido trazida da floresta para a morte certa o que era óbvio e também não estava entre pessoas tão más.

Mas eu não confiava em ninguém, não mais, não poderia me dar ao luxo de confiar.

Tinha visto o que um adulto mais forte pode fazer com os mais fracos, estava maluca para saber como sobrevivi. Saber quem eram eles e porque me salvaram e o pior, já imaginava o que eu teria que fazer para pagar essa dívida. A quê teria que me submeter.

Eu tinha então quinze anos, mas não era idiota. Uma dívida com os mais abastados seria certamente escravidão, teria que pagar com o suor do meu trabalho ou talvez com o corpo...

O grau de minha família era um acima dos escravos, só isso já era suficiente para todos da minha casta saberem que dever aos de grau mais elevado seria perder a liberdade.

Meus pais tinham me mandado ao templo da sacerdotisa para ser preparada para o meu futuro.

Ali eu saberia qual o meu destino e quase nenhum deles era muito almejado. Pessoas da minha casta não tinham muito para onde correr e menos ainda podiam escolher.

Poderia ser uma cortesã de renome se o leilão de minha virgindade rendesse um dinheiro alto ao dono da casa de diversão, ou então uma simples escrava dos senhores. Uma sacerdotisa aprendiz se eu tivesse muita sorte ou até poderia ser uma iniciada aos serviços do Deus antigo cristão.

Até mesmo um casamento arranjado poderia acontecer e com muito, muito azar mesmo eu seria exilada para fora da cidade, virando então uma prostituta de beira de estrada. Mais especificamente a estrada dos viajantes.

O cruel é que esse era um dos destinos mais comuns. Mesmo se eu conseguisse outro destino além desse, qualquer um dos meus donos ou mesmo marido poderia me mandar para lá se sua casta fosse muito alta.

Mas ali naquele quarto eu já sabia meu futuro, devia minha vida a alguém com posses e essa dívida seria cobrada assim que eu estivesse saudável novamente.

Respirei fundo e me toquei que eu tinha me perdido em meus pensamentos.

A senhora me olhava firme com a bandeja na mão, me encolhi de medo, não tinha dado atenção a ela, tinha a deixado ali falando e isso poderia ter consequências. Ela colocou a bandeja em meu colo me deu um sorriso enviesado sentando ao meu lado da cama.

— Sei que tem medo e ouvi a conversa de meus senhores sobre o ocorrido no templo, você veio de lá não foi?

Eu afirmei com a cabeça.

— Você acha que deve a uma família de posses agora e imagina que terá que pagar pelos cuidados que recebeu aqui não é mesmo?

Novamente afirmei devagar, ela levantou a mão e eu me encolhi, então ela acariciou uma mecha de meus cabelos.

— Não somos de sua cidade menina, nem somos baseados pela regra de seu monge cristão. Temos nossas regras aqui e nossa cidade é guiada pelos meus senhores. Somos impérios diferentes e totalmente hostis um com outro.

Ela levantou e bateu no avental para alisar os vincos. — Coma devagar e mastigue pequenas poções, está de estômago vazio muito tempo. Pode ser que sinta aversão a comida, mas precisa comer tudo.

Ela me olhou com firmeza por cima de seus óculos pequenos e redondos deixando seus grandes olhos castanhos ainda maiores, falou com autoridade. — Coma tudo. Isso é uma ordem.

Voltei os olhos para baixo, era uma ordem e eu obedeceria, sabia o que acontecia aos rebeldes na minha cidade, ali poderia ser outra cidade, mas com certeza o tratamento aos escravos era igual em qualquer lugar.

Ela se dirigiu a enorme porta de carvalho e se virou para mim antes de sair. — Não levante da cama até eu voltar, não vai saber lidar com sua mudança e vai precisar de minha orientação.

Assim ela saiu fechando a porta e me dando privacidade. Era uma coisa estranha o que ela tinha dito, será que por causa de tanta febre meu rosto mudou? Derreteu ou ficou marcado?

A bandeja não era sortida, mas tudo que estava ali continha um cheiro agradável, torci o nariz para a terrina de sopa, agradável demais para meu gosto, mas tinha que comer. A senhora tinha mandado.

Levei a colher a boca, o gosto era bom ainda assim não parecia ser comida para mim, era como comer areia temperada apenas para dar sabor. O pão preto tinha cheiro agradável, mas a sensação era a mesma. Bebi o suco de uvas e esse foi o mais gostoso de todo o resto.

Uma sensação estranha passou pela minha cabeça, tinha comido mal a vida inteira com meus irmãos e ali estava uma refeição digna de senhores e eu não sentia nada demais ao comer, parecia apenas um animal comendo por extinto de sobrevivência, sabendo que meu corpo precisaria daquilo. Meu estômago estava insensível como se dormisse.

Levei a mão ao local do ferimento, a lâmina devia ter mexido com algo dentro de mim. Talvez tivesse matado meu estômago, meu pai sempre dizia que o coração e o estômago eram coisinhas exigentes.

O estômago era uma máquina viva que alimentava o corpo e o coração uma máquina viva que alimentava a alma.

Tinha terminado de comer tudo e como não podia sair da cama comecei a dormitar sentada. O alimento trabalhava dentro de mim e a nutrição me fazia querer hibernar como um urso, só não me entregava totalmente ao sono por medo de derrubar algo e quebrar e assim enfurecer a senhora.

Assim que escutei o barulho de passos fiquei desperta com o coração acelerado, dei uma rápida olhada na bandeja, não podia ter deixado nada sem comer. Ordem era ordem. Ela logo entrou com agilidade fechando a porta e sorriu pra mim ao ver a bandeja

— Vejo que comeu tudo. Muito bem. — Ela me olhou com atenção. — E vejo que isso foi demais para você, precisa descansar mais um pouco antes de sair da cama.

Tirou a bandeja de meu colo colocando no chão me ajudando de seguida a me deitar novamente e então me cobriu.

Eu queria dizer obrigada por tudo, dizer que seria a melhor das servas mas nenhum som saia, apenas fechei os olhos e me deixei levar por um sono pesado e dominador, não sei quanto tempo dormi, mas despertei com uma sensação de alerta.

Havia duas vozes distintas no quarto. Da senhora e um homem.


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Notas finais do capítulo

E então o que estão achando? Se puderem deixar seus comentários eu fico muito grata.



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