Tratado dos Párias escrita por Isabela Allmeida


Capítulo 18
Por pouco…




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Antes dele fazer qualquer coisa, balancei a cabeça dizendo não, mas o mal foi eu estar muito perto de André e isso atiçou o senso protetor de Nicolae e sem dar tempo de emitir som eu o vi se aproximar veloz.

Muito rápido ele estava com André seguro pelo colarinho. — Se afaste dela!

Não esperou André abrir a boca, o jogou e eu desesperada apenas o vi parecendo um boneco batendo de encontro à parede e Dimitri já segurando Nicolae para que não avançasse nele ali caído.

André sentou balançando a cabeça. Devia estar desnorteado tentando se levantar se apoiando na lisa parede. Sai correndo para ajudá-lo, agradeci mentalmente o sangue sombrio que corria em suas veias, a batida foi feia eu sabia que devia estar doendo muito, sangrando não estava, não senti cheiro de sangue.

Nicolae se soltou de Dimitri e avançou, eu tinha acabado de me aproximar e não tive tempo nem de ajudá-lo, então não consegui pensar em nada além de entrar na frente de André e fechar os olhos esperando o golpe que viria.

Mas o golpe nunca chegou, abri os olhos e ali estava Nicolae assustado olhando para mim com a mão em punho a centímetros de meu peito.

Ele parecia tentar entender minha reação ao mesmo tempo em que olhava para seu punho ainda fechado basicamente encostado a mim.

Sussurrou meu nome ainda sem ação, com certeza imaginando o estrago que teria feito em meu peito se o golpe tivesse seguido seu rumo, eu sei, pois estava imaginando o mesmo enquanto respirava rapidamente com o olhar vidrado em sua mão fechada.

Me puxou desesperado para ele falando febrilmente. — Está maluca? Eu poderia...Porque fez isso? Como acha que eu ficaria se tivesse te ferido?

— Desculpa Nicolae, mas não o machuque depois eu explico tudo, por favor.

Ele me olhava sem ação ainda assustado com aquilo e seu olhar voltou para André quando ele começou a se levantar.

Ao contrário do que imaginei André não parecia abalado com a reação de Nicolae apenas olhava preocupado para a porta.

Nicolae me afastou não tirando os olhos de André, ouvíamos o barulho do portão, ninguém poderia me ver abraçada a um estranho.

O clima estava tenso, ficamos estáticos. Nicolae ainda encarava André, se ele tivesse o dom de matar com o olhar André já estaria morto pela fúria que via em seus olhos, por sorte Eva entrava com os pacotes seguida de Uzias.

André pareceu nervoso naquele momento e foi logo falando humildemente.

— Senhor, muito agradecido por me oferecerem algo para comer mas não posso aceitar, temos que voltar para o príncipe, pois nosso trabalho acabou por aqui, já que estão ambas seguras, sua filha e sua esposa uma boa tarde e com licença.

Ele saiu apressado olhando o chão. Era uma deixa de André, um sinal que Uzias não era de tanta confiança ou que André não confiava nele o suficiente para falar abertamente perto dele.

Depois que os dois saíram Nicolae soltou o ar preso.

— Pequena nunca mais faça isso, o que deu em você para defender o homem que tentou te matar e o pior o proteger se colocando na frente dele?

Suspirei. Entendia Nicolae, minha reação no baile não foi das melhores quando o revi pela primeira vez, contudo depois de tudo que ouvi não poderia simplesmente deixar que o machucasse então eu contei o que conversamos no carro.

Dimitri contou tudo o que André tinha contado a ele, pulando a parte que tinha lhe salvado a vida na floresta.

Eu não o desmenti em nada, sempre guardava seus segredos quando sabia que ele iria se meter em encrencas assim como ele guardava os meus, mas ainda ia perguntar por que ele andava tão perto dos domínios dos humanos e porque carregava com ele um frasco dos preparos secretos de Rael.

Nicolae falou pensativo. — Acha que podemos confiar nele? E se formos nessa feira e for uma armadilha para nos desmascarar, sem contar que é errado o que estaremos fazendo.

— Eu confio nele Nicolae, e melhor elas no reino sombrio do que aqui com esses homens.

— Mas pequena, ele tentou te matar, quem garante que não seja uma armadilha, se ele cumpriu ordens uma vez poderá estar fazendo isso agora.

— Não sei. O que sei é que ele não me parece querer o mal dos sombrios. Ele poderia ter me levado direto ao rei, estávamos apenas nos dois na carruagem, mas me trouxe em segurança e ainda não escondeu que sabia quem eu era. Acho que ele é sim de confiança Nicolae, eu sinto isso.

— Eu também confio nele. — Disse Dimitri.

Olhei de torto para ele, alguns minutos atrás estava ali bancando o papai desconfiado agora dizia na cara de pau que confiava, ele piscou para mim, estava me ajudando a convencer o irmão.

— O que acha Eva? — Nicolae estava pesando todas as opiniões.

— Não sei senhor. Ele tem olhos sinceros. Olhos de um bom homem e acho que a ideia dele foi muito boa, se o senhor comprar umas três meninas e o senhor Dimitri umas duas sairemos daqui no lucro. Seriam mais chances de esposas para os homens sombrios que dormem, sei que o senhor Rael nunca aceitaria isso em outras condições, mas já estamos aqui dentro, e o disfarce está funcionando, deveríamos aproveitar a oportunidade.

— E acha que ele realmente quer ajudar Diana?

— Senhor, acho que se Diana diz que confia é porque de alguma forma ela sente isso, e temos que levar em conta que ela teve o maior contato com ele.

—Vamos arriscar então. — Nicolae olhou para mim sério. —Você não ira conosco, não acredito que seja uma cena boa para se ver. Mesmo que seja normal para as garotas daqui ver isso.

— Eu nem gostaria de ir realmente, acho que não suportaria ver isso.

Os dois se levantaram e Nicolae falou. — Não irei voltar antes que a carruagem chegue para levar você, só peço que fique bem. — Já se virando ele falou. — Eva arrume tudo, por favor, assim que Diana for levada iremos sair do reino, usaremos como desculpa os negócios que temos na fazenda muito bem lembrados pelo rei.

— Ele não poderia ter nos ajudado mais. — Disse Eva enquanto já se agitava mexendo nas coisas e catando os pertences para preparar as malas.

Nicolae parou, voltou e me abraçou com força — Não me mate de preocupação minha pequena, fique inteira estarei esperando ansioso sua volta para casa. Só… Volte.

Não precisava dizer mais nada, aquilo era uma despedida e depois de piscar pra mim e me dar um beijo demorado na testa andou apressado e saiu pela porta escondida do porão.

Aquela porta o levaria direto para a rua dos fundos e Dimitri saiu pela porta da frente e assim tivemos o resto do dia para preparar tudo. Ajudei Eva a arrumar as coisas para saírem o mais rápido possível do reino assim que Dimitri chegasse, havia muito que se fazer e só nos duas para dar conta.

A tarde ia chegando e eu começava a me preocupar, começava a temer uma encenação de Samuel. A cena dele fitando minha janela não me saia da cabeça, ele poderia aparecer na porta para se despedir, só esperava que não fosse tão ousado, ouvi barulho no portão e não demorou para que Dimitri entrasse na sala, me senti mais aliviada com sua presença ali.

— Pronto compra efetuada, me sinto cinco quilos de ouro mais leve. Somando tudo esse ano serão seis meninas, serão entregues a nós no portão como eu pedi, disse que estávamos de partida para nossos domínios além-muralha.

— Elas ficarão lá esperando a gente passar e levar elas?

— Não Eva. Estarão lá amarradas e reclusas em uma jaula de madeira. O pagamento acordado será feito na entrega, já Nicolae partiu em viagem levando as três meninas e nos encontrará nos domínios sombrios.

Dimitri me olhou com carinho e segurou meu queixo. — Nicolae não sabe dizer essas coisas, mas eu sei. Se cuida hein. Agora está com você, virei como bom papai que sou lhe ver toda semana, mas quero que não se arrisque sem necessidade promete que não fará loucuras? Nicolae me recomendou a resposta dessa promessa o caminho todo, então promete?

— Prometo Dimitri, não farei nada que você não faria.

— Assim eu fico preocupado, melhor prometer que não fará nada que Nicolae não faria.

— Esta bem, nada que Nicolae não faria.

— Isso irmãzinha. Agora estou mais tranquilo.

Eu ri, ele era um bobo, mas com seu jeito torto só queria meu bem, Eva me abraçou com carinho.

— Se ver que não tem como pesquisar sem correr riscos deixe esse mês passar e poderemos voltar pra casa, arrumaremos outro meio de arrumar as coisas antes que o senhor dos sombrios acorde tudo bem?

Acenei afirmativamente, eu sabia que o meio que Eva dizia era essa compra disfarçada de meninas. André tinha dado uma ótima ideia e seria uma solução temporária, ainda assim eu iria aproveitar esse tempo no castelo para tentar saber o que mais pudesse sobre os planos deles para os sombrios.

Ficamos ali conversando enquanto a carruagem não vinha. Uma hora depois batiam na porta era o cocheiro real, tinha chegado a hora de eu me separar deles, de seguir um rumo diferente de tudo o que tinha planejado. Senti um frio no estomago, pela primeira vez depois de mais de dois anos eu estaria sem eles por perto e isso não era pouca coisa para mim.

Uma recusa de entrar naquele coche poderia por a vida de Eva e Dimitri em perigo e tudo o que eu mais queria era que eles pudessem sair do reino e entrar no reino sombrio sem correr riscos. Então depois de me despedir de um Dimitri nervoso e uma Eva emocionada e entrei na carruagem.

Ali estava Uzias para me ajudar com bagagem, ele sentou na parte de traz, pendurado junto com a bagagem e seguimos em silêncio.

As ruas passavam por mim como flashes. Tinha os olhos marejados, minha força e coragem me abandonavam a cada metro que eu me aproximava do castelo e me separava da casa alugada. Pensei por um momento em pular, voltar correndo para a segurança dos meus que ainda estavam na casa.

Com certeza, daria tempo de alcançá-los, mas não podia, não mais. E que eu não tivesse errada ao defender André, porque se estivesse teria facilitado a vida de um assassino.

Tinha passado pelo farol e pela rua do mercado colorido, agora passava pela avenida que dividia as casas simples da terceira casta. Essas eram feitas de madeira, com um pequeno quintal.

Do outro lado da avenida era o caos completo. Prédios tortos, cheiro de esgoto, lixo acumulado, crianças de todos os tamanhos até a idade de onze anos andavam pelas ruas, com poucas roupas ou peladinhos e todos sujos de tanto vasculhar os lixos. Outras se arriscavam pelo outro lado da avenida, o lado da casta três. Eu sabia que não pertenciam aquela vila por seus trajes imundos, seus pés descalços e seus olhares doentios pela fome. Só estavam ali para procurar sobras de comidas nos lixos, o que eu tinha certeza absoluta que era uma coisa rara de encontrar.

A casta terceira era pouco mais abastada que a segunda, mas não era uma casta aonde conseguissem se dar ao luxo de jogar comida fora. Eu mesma já tinha andado por todas aquelas ruas procurando restos nos lixos das casas e me lembro das raras vezes que tinha conseguido encontrar algo.

Um fato interessante era que não havia pássaros por nenhum lado por ali. Nenhum deles conseguiria passar vivo por mãos tão famintas como as mãos das castas segundas e até mesmo os terceiros não perderiam a chance de comer carne de pássaro se conseguissem. A vida ali se resumia a crianças famigeradas, famílias inteiras escondidas em suas casas, insetos voando de um lado a outro e imensos roedores que também serviriam de alimento se fossem capturados e muita, muita miséria.

Dei graças quando essa visão foi deixada para trás, logo vinha o bairro da quarta casta. Casas de alvenaria sem luxo, mas com pinturas nas paredes e vidros nas janelas. Era uma mansão se comparada às casas da terceira casta e um castelo em vista das moradias empilhadas da segunda.

Ali moravam os servos que serviam diretamente a casta real, profissionais como costureiras, botânicos e soldados de calão menor e também os famoso emergentes que por algum milagre da criação tinham comprado seu grau vindo da terceira casta.

Esses com certeza tinham comércio no mercado negro. Eu não conseguia nem imaginar que tipo e comércio era esse, mas com certeza tinha usado bem seus contatos os fazendo estar ali. Era uma casta praticamente invisível, não eram chamados para nada, pois não tinham grau para frequentar festas e também não podiam ser incomodados por outras castas por serem superiores. Por esse motivo ali com certeza era onde estava todo o centro do mercado negro.

Tudo que é mercenário, cambistas, cortesãs, leiloeiros e atravessadores eram dessa casta neutra, era um local seguro para fazer qualquer tipo de negócio escuso.

Estranhamente mesmo sendo um bairro extenso não tinha visto sequer uma criança andando por ali. Aquele bairro me deu arrepios.

Quando saímos daquela visão senti meu ar voltar aos meus pulmões. Depois de um pequeno trecho descampado avistei as grandes casas, ali era da casta suprema onde os abastados tinham moradia fixa. Nada comparado à casa que tínhamos alugado, as casas de aluguel ficavam no primeiro bairro antes das muralhas, mais próximo do portão, junto com as pensões, casas sociais e locais de eventos e basicamente perto de todo o comércio. Apesar do preço era mais fácil aos viajantes se alojarem naquele bairro agora tão distante de mim, pois não ficariam muito tempo e preferiam o local mais próximo da saída possível.

Então apesar dos dois meses ali dentro do reino, aquela parte era totalmente desconhecida para mim, pois todo o tempo passei no bairro de aluguel. Totalmente longe daquele lugar, longe do bairro da casta suprema, as casas realmente eram belas, várias cores combinando, gramado verde com jardim na entrada, portas talhadas e janelas imensas e adornadas, mas mesmo com tanto luxo eu não achava nada demais em toda aquela serenidade na decoração. Aquilo era uma disputa de vizinhos para conseguir a casa mais bela, por conta disso algumas eram muito ostensivas, o que apenas demonstrava o tipo de pessoa que vivia nela.

Demorou para sairmos daquele bairro, ao contrário do cheiro do bairro da procriação que era somente cheiro de esgoto e lixo, ali o cheiro que predominava era dos jardins. Toda casa tinha um, então o misto do cheiro de diferentes flores eram agradável e era a única coisa boa naquele local que na verdade deveria feder a corrupção lasciva.

Logo o imenso castelo se via ao longe, então seria aquele local minha morada por certamente um mês.

Depois de muitas casas começamos a seguir por uma alameda extensa e muito marcada por rodas, patas de cavalos e até mesmo marcas de pés, as árvores eram imensos carvalhos que lado a lado ainda se mantinham firmes e maravilhosos, pois o reino vivia aumentando, vários focos de mata sempre estavam sendo limpos para uma nova construção.

Via a imensidão do castelo ao longe. Os três cumes mais altos das torres maiores assustavam, pedras negras e antigas empilhadas milimetricamente formando a torre mais alta. Era a construção antiga, a parte original daquele castelo datado de séculos, mas tinha as parte nova além das três torres originais, seguia o mesmo padrão de pedras, mas com cor mais clara, tinha uma larga torre, mais baixa que as três primeiras, mas muito mais larga. Tinha uma abóbada redonda de cor cinza opaco destonando um pouco a agressividade da arquitetura do lugar, não era bonito, era assustador.

O muro era muito alto e cercava todo o castelo, o que me deu a sensação de estar indo de encontro a uma armadilha. O meu clausuro por um mês, e eu estava sozinha agora.


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