Tratado dos Párias escrita por Isabela Allmeida


Capítulo 16
Encontro com o malfeitor Parte 3




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— E por isso eu corro perigo? Ele sabe quem sou eu? E porque o príncipe mandaria fazerem uma barbaridade daquelas?

— Calma, o príncipe não sabe de nada. Ele é inocente nisso tudo, e Samuel não desconfia de você, mas se ele souber que você era aquela menina, ele vai terminar o serviço.

— Mas você disse que não era o melhor momento para eu voltar, o que você quis dizer com isso?

— Não posso entrar em detalhes sobre isso, só digo que tem coisas demais acontecendo, e ser foco dos poderosos não é o melhor momento agora. Ainda mais você sendo diferente, o comentário sobre você foi geral. Samuel realmente está interessado em você. O problema não é esse, se todas as minhas desconfianças estiverem certas você estaria correndo um perigo maior do que se supunha mais por estar nesse reino e ainda tendo o interesse de Samuel. Ele é perigoso menina só posso te dizer isso.

Ele me deu tempo para fazer perguntas e eu aproveitei. —Então você sabia quem eu era desde o começo?

Ele assentiu. — Desde sua primeira festa a fantasia, nesses dias todos foram mascarados, eu acompanhei o príncipe que não se identificou e como era uma festa para apresentar você...

— Fui a única que não usei máscara.

— Exato, e então eu reconheci você. Não sabia quem eram seus pais ainda e entendi tudo assim que o vi. Nunca poderia esquecer o rosto do senhor Dimitri.

Fiquei com receio, se ele reconheceu Dimitri outros também poderiam reconhecer. O mais estranho era que para reconhece-lo assim ele teria que ter tido contato próximo a ele, o que estava acontecendo?

André abaixou a cabeça e começou a falar senti pena da tristeza em sua voz. — Sei que me odeia pelo que fiz, mas eu não sou livre, cumpro ordens.

Não poderia mentir a ele, seria errado, ele estava ali me dizendo tudo e eu não poderia deixar ele pensar que eu o odiava. Nunca o odiei, nunca soube o que sentir quando pensava nele. 

— Não o odeio, não consigo sentir isso quando você salvou minha vida depois de tentar me matar, você sempre foi uma incógnita nas minhas lembranças. Me lembro de como foi respeitoso ao me colocar junto com os outros corpos. E você sabia que eu ainda vivia não me delatou quando me deixou ali e me ajudou quando eu tentei fugir. — Olhei para ele que escutava com atenção o que eu dizia. — Na verdade só tenho a agradecer, porque ter me guiado por parte da floresta me fazendo seguir o caminho para os domínios sombrios e eu lhe agradeço por isso.

Ele estava emocionado e tocou meu coração, saber que ele se culpava, depois de assentir quando o agradeci ele falou baixo. —Não poderia fazer mais nada por você, mas conheço o nariz aguçado daquela raça e sabia que sentiriam o cheiro do seu sangue enquanto faziam a ronda. Deixei você o mais perto que pude dos limites do reino deles, sempre me arrependi de não ter te levado até lá, mas não podia, imaginei que não tivesse aguentado e morrido na floresta. —André olhou para os dedos envergonhado. —Por mais que diga que não me odeia pelo que eu fiz, eu me odeio por isso todos os dias desde então.

Novamente senti pena dele, era um escravo cumprindo ordens, não conseguia odiá-lo nunca tinha conseguido antes, e agora sabia que nunca conseguiria realmente. — Porque o mandaram fazer isso?

— Não sei menina, recebi a ordem minutos antes de partir, e ela veio diretamente de Samuel, a única ordem que recebi antes disso foi que fizesse o que Samuel mandasse pois ele nesse dia representava alguém maior, me chantagearam que se não cumprisse as ordens me tirariam de perto do príncipe e ele é tudo o que me resta agora, tenho como um filho pois o criei desde pequeno.

Então era essa a dor que vi em seus olhos naquele dia, ele fazia contra a vontade, mas não podia se negar ou perderia contato com seu pupilo, cruel era o rei de usar o carinho dele para que fizesse isso, mas precisava saber mais, ainda tinha muita coisa fora do lugar, e era hora de juntar o máximo de peças.

— Não entendo, porque diz que corro perigo se ninguém sabe quem sou realmente?

— Isso é obvio, você ia noivar com Samuel, e até agora não sei porque Diabos você tomou esse caminho para perseguir o que pretende, Samuel não é nem de longe o monstro que você pensa, ele é pior que isso. — Ele olhou para mim e perguntou. — Porque fez isso afinal? Se por em risco dessa forma?

— Porque eu não tinha outra saída, era apenas uma hipótese de Samuel ser escolhido ao cargo, depois que ele foi não tinha outro jeito, não até o príncipe olhar pra mim.

— Ele já tinha lhe observado desde o baile de máscaras menina, ficou impressionado com sua beleza, principalmente com seus olhos verdes, mas ontem depois de dançar com você ele viu que você não é igual as outras mulheres, já não está tão impressionado com sua aparência mas com sua personalidade forte, você tenta ser igual, mas não conseguiu disfarçar muito bem com ele.

Torci a boca em desgosto. — Ele conseguiu me tirar do sério no baile.

André riu, e era um sorriso agradável e chegava aos seus olhos azuis, o tipo de sorriso que eu gostava, o verdadeiro.

— Não se lamente por isso, essa sua perca de foco com alguém como o príncipe só fez uma coisa, chamou a atenção dele salvando seguramente sua vida, eu percebi o interesse dele em você e o aconselhei a interceder, contei então que Samuel e eu fomos os autores da chacina e contei como Samuel agiu nesse dia e então o príncipe foi ao baile de seu noivado disposto a conhecer melhor a mulher que teria seu destino traçado por um animal como Samuel e você fez muito bem em não conseguir disfarçar como é de verdade a ele, quando o conhecer melhor verá que ele é uma boa pessoa.

Olhei para ele ainda desconfiada. — O que você cochichava no ouvido dele naquela noite?

— Pedi a ele que não enfrentasse Samuel tão abertamente o encarando daquela maneira, porque Samuel é vingativo.

— E o príncipe sabe dessas suas desconfianças com relação a Samuel?

— Não posso dividir isso com ele e com ninguém, ainda é cedo para isso, mas acho que Samuel percebeu que desconfio de algo, ele não perde nenhuma oportunidade de tentar me desacreditar perante o príncipe, por sorte ele me tem em alta conta e não confia em Samuel.

Ele não me revelaria essas desconfianças isso já estava claro, se nem ao príncipe que o protegia ele contou, restava então continuar cavar onde a terra estava mole, porque aquele assunto seria pedra para escavar e não ia dar em nada. — Não sei que dizer, então esse golpe de sorte teve dedo seu, e mais uma vez você me guiou por um caminho diferente em meu destino.

— Apenas tentando me redimir pelo que te causei, e tentando fazer Samuel de uma forma ou outra pagar pelo que fez, a ordem era matar as meninas não aquela carnificina.

Senti empatia por suas palavras, éramos dois movidos pelo passado, o mesmo passado e tentando fazer a mesma pessoa pagar por sua crueldade, era diferente e acolhedor conversar com uma pessoa que sabia, entendia e compartilhava de seus sentimentos de ódio sobre uma pessoa.

Pela janela eu via que estávamos chegando precisava descobrir mais coisas.

— Me diz uma coisa, sei que você se revoltou com tudo o que aconteceu naquele dia, mas me parece que seu problema com Samuel é mais particular.

Ele nem pensou para responder, falou com mágoa. —Na verdade eu o odeio por que me transformei em assassino por causa dele. Não era eu que tinha que ir naquele dia. Eu sou um servo do príncipe, sirvo diretamente a ele, naquele dia eu fui escolhido para essa tarefa porque o príncipe tinha seguido em uma curta viagem de caça e então eu teria que obedecer a casta real e nada abaixo disso e nesse dia Samuel estava com um selo pintado em sua mão e isso lhe dava direitos a essa casta, mesmo que provisório, então dentre tantos soldados comum ele escolheu a mim para acompanha-lo, pois nunca aceitou que o príncipe confiasse mais em mim um servo do que nele um soldado que ganhava patentes atrás de patentes e seu rancor era porque tinha a confiança do rei, mas não do filho dele, seu futuro rei.

Então ele aproveitou a oportunidade e me usou para cumprir suas ordens nesse dia, e eu não o perdoo por isso, se tudo desse errado eu seria o bode expiatório, respondendo por tudo. Ou seja, enquanto ele sairia incólume eu viraria comida de leviatã, o que ele para ele seria muito bom, pois seria um perigo a menos para seus planos para o reino Humanis, só peço que não me pergunte senhora sobre isso.

Nem tive tempo de continuar a perguntar mais nada, a carroça parou e André desceu me ajudando a descer em seguida. — Há alguns pacotes senhora se quiser posso ajudar a recolher.

Era uma deixa e eu aproveitei. — Sim, por favor, faça isso.

Paguei ao cocheiro uma moeda de prata e três bronzes pela viagem e subimos a escada sem trocar uma palavra abri a porta e entrei seguida de André que depois de deixar os pacotes na mesa me seguiu.

Dimitri lia esparramado no sofá vermelho de veludo, estava distraído.

— Dimitri precisamos conversar.

Ao levantar a cabeça ele viu que eu não estava sozinha. — Acho que pai seria de mais educação não é minha adorada, mas mal criada filha.

Revirei os olhos sem paciência. Dimitri ainda não sabia que ele era meu malfeitor. — Oras deixemos de encenação, ele sabe de tudo.— Não pude deixar de achar graça ao ver Dimitri desconcertado.

— Você diz tudo Diana, mas que tudo é esse? Poderia ser mais específica na extensão desse tudo?

Cruzei os braços olhando séria para ele. — Esse é André. O homem que quase me matou e antes que você o ataque já lhe digo que confio nele.

Ele coçou o queixo enquanto pensava. — Então o que faremos? Matamos ele?

André riu baixo, e novamente eu gostei daquele som. — Isso seria engraçado senhor, vindo do homem que me salvou a vida há muitos anos atrás.

— Salvei? — Dimitri pareceu realmente não lembrar disso e eu achei estranho.

— Sim senhor, quando o meu príncipe tinha então pouco mais de nove  anos foi mandado para fazer a ronda junto comigo e um soldado, eu como servo dele e o soldado como proteção.

— E porque diabos o rei colocaria a vida do filho em perigo dessa forma o fazendo sair para a floresta?

—Segundo o rei era para que seu filho se tornasse corajoso e não temesse de sair do reino se um dia precisasse, mas nesse dia um leviatã rebelde rondava nossos domínios e atacou o soldado, enquanto isso eu fiz o príncipe correr e fui ao encontro do Leviatã para que me atacasse depois do soldado, assim ganhando tempo para que ele se aproximasse do portão e ser defendido pelos soldados de campana, o leviatã me perseguiu pela floresta, eu corri o mais que pude na direção oposta e então quando ele me alcançou quase me arranca o ombro. ­­— André soltou as amarras da camisa e deixou o ombro a mostra, uma fila enorme de dentes era visível ali como uma feia cicatriz.

Ele então continuou. — Me lembro de ele ter me mordido, mas depois de um tempo ele não pareceu ter forças mais logo caindo morto, acho que minha sorte foi que ele era alérgico ao sangue humano e só o soldado foi suficiente para a alergia atingir seu auge, essa foi minha sorte.

Corri o mais longe dele que consegui, mas me sentia morrer, e então o vi senhor. Me lembro do vidro que retirou do bolso e também do corte que fez em sua mão e de deixar seu sangue escorrer para dentro do vidro e depois recolheu o meu sangue também me dando a mistura para beber em seguida e o senhor me ajudou a chegar o mais perto do portão possível sem que pudessem vê-lo, e lá meu príncipe me esperava.

Ele mesmo ficou comigo aquela noite senhor, eu então tinha quarenta anos e ele presenciou a mudança em minhas feições, viu quando eu ganhei massa muscular, quando eu rejuvenesci um pouco e desde então nunca mais mudei e isso já se conta quatorze anos e eu nunca ganhei uma única ruga.

É um segredo meu e dele, se alguém descobre eu serei condenado a morte porque não sou um humano puro, e isso me ajudou muito na segurança de meu príncipe. Nunca deixarei de ser grato ao senhor por isso, pela minha segunda chance para servir e ver ele ser coroado um dia.

Isso se eu não for assassinado, porque de velhice foi assegurado pelo senhor que eu não morrerei.

Dimitri pareceu meio envergonhado e meio preocupado e eu desconfiada que André se sentia perseguido. O que ele sabia poderia por sua vida em risco? Por isso Samuel escolheu justamente ele para aquela missão? Caso o rei fosse muito pressionado poderia achar um autor dos crimes e esse com certeza seria André. Isso juntava outra questão, Samuel e o rei, era um plano do rei, então porque Samuel que preparou tudo e ainda pode escolher seu parceiro? Só uma coisa me veio à cabeça naquele momento... jogo de interesses.

— Sabe que eu tenho um irmão muito bravo não sabe? — Disse Dimitri.

— Sim senhor, seu irmão mais velho, não sei seu nome, mas sei que dentre os três príncipes sombrios é mais rigoroso.

— E sabe que se ele descobre uma coisa dessas serão apenas dois príncipes sombrios não é? Porque eu estarei fora da jogada.

André riu comedido. — Senhor, até hoje isso ficou comigo e tirando a senhora Diana ninguém mais sabe além do príncipe e eu. Agradeço a senhora por ter me deixado entrar, eu nunca tive e oportunidade de agradecer e mesmo não sendo o real motivo de eu estar aqui hoje eu pude aproveitar a oportunidade. Devo mais coisas aos senhores mas creio que não terei tempo para agradecer tudo.

Franzi o cenho, André tinha muitos segredos, mas eu via honestidade em seus olhos, ele continuou falando rápido, seu tempo era curto.

— Na verdade venho dar minha palavra que cuidarei pessoalmente da senhora Diana, serei seu servo enquanto ela se mantiver no castelo, pedi ao príncipe que me indicasse a ela, dizendo a ele que tinha muito apreço por sua família. Disse que um de meus irmãos foi servo da família Salazar sendo tratado com bondade até a velhice e era um meio de agradecer pelo tratamento dado então ele concordou.

Os olhos azuis celeste de Dimitri ficaram levemente nublados. — Você ficará perto de minha Diana todo esse mês no castelo? Você que a apunhalou mortalmente no celeiro?

Eu não pude permitir que André fosse tratado como assassino. Não depois de tudo o que conversamos no carro antes de chegar ali. Toquei no braço de Dimitri e o fiz olhar pra mim.

— Eu confio nele Dimitri, deixe que ele fique responsável por mim, sendo assim poderá voltar com Nicolae e Eva para o reino sombrio.

André não se deixou abalar por aquele rompante de desconfiança de Dimitri. — Senhora se me permite uma sugestão, hoje a tarde vai ter uma feira de treze meninas no salão do farol, não quero ser cruel, mas sei o que a morte das meninas da entrega naquele ano fez com vocês.

— Sim. — Dimitri respondeu. —Tivemos três meninas apenas como entrega em um ano e quatro no seguinte e esse ano será três novamente.

— Então senhor, mas mesmo aos poucos poderão se reerguer, deviam aproveitar e comprar algumas meninas, levando consigo em sua viagem de volta mais uma pequena quantia de possíveis esposas. Não é uma oportunidade que aparecerá tão facilmente novamente e veio muito a calhar acontecer essa feira com vocês aqui. Por mais que achem ser errado e que fira as regras, vocês também foram enganados. Então isso não é nada visto a sabotagem que fizeram com vocês, estarão apenas pegando o que é de vocês por direito.

— É uma ótima ideia Dimitri. — Eu disse esperançosa, não senti vergonha de pensar no comércio delas, ao contrário dos humanos, os sombrios as comprariam sim, mas elas seriam sortudas por isso.

— O que é uma ótima ideia?

Nicolae aparecia ali na sala como que por magica e seus olhos cravaram em André, não mudou o semblante, mas eu conhecia bem aqueles olhos para saber que ele estava pronto para não deixar André sair vivo dali.


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