Start escrita por Queen Of The Clouds


Capítulo 35
A minha melhor lembrança




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Anastasia

Eu esperei na porta da casa enquanto Armin trazia Arnaud e Vitória de olhos fechados. Eles não pareciam muito confiantes quanto à surpresa que seu filho havia preparado.

—Me diz que você e seu irmão não esconderam outro gato na garagem, por favor.—Arnaud implorou, triste.

Armin considerou a ideia por um momento, mas continou os guiando.

—Hum... é algo maior do que um gato. Mas já que tocaram no assunto, eu adoraria adotar um furão e...

—Nem brinque com isso!—Arnaud ergueu um dedo em tom de bronca. Vitoria riu.

—Maior do que um gato? Querido, acho que nosso filho roubou um leão...—Concluiu com os braços erguidos para sentir o que estava à sua frente.

—Acho que eu também sou bem menor do que um leão.—Falei, cruzando os braços.

Os dois abriram os olhos.

—Annya!—Vitória correu para me abraçar.—Ah, eu estava com tanta... saudade... da minha... garotinha!—Ela segurou minha cabeça e distribuiu beijos por todo meu rosto.—Como você está?

—Estou melhor agora, sem dúvidas, m... Vitória—Eu sorri, disfarçando o que quase falei.

—Chega, Vitória, deixe a garota respirar.—Ouvi Arnaud dizer. Quando a mulher de cabelos encaracolados saiu do meu campo de visão, eu consegui vê-lo sorrindo para mim, afetuosamente. Ele me abraçou e me levantou no ar. Eu dei uma risada.

—Arnaud!—Minha voz saiu abafada em meio aos seus braços. Ele me soltou e beijou o topo da minha cabeça.

—Deveríamos te colocar de castigo por sumir por tanto tempo!—Vitória brigou, colocando as mãos na cintura.

—Eu concordo plenamente. Nada de videogame, nada de Armin e nada de Alexy.—Ele deu um sorriso de canto.—Estou apenas brincando. Encontrou o caminho de casa, não foi, filha?

Não fala isso, por favor...

Se eu fechasse os olhos conseguia imaginar que era o meu próprio pai falando comigo. Arnaud me lembrava tanto ele... simpático, engraçado, carismático. Eu sentia tanta falta do meu pai.

Receber todo aquele afeto era como levar um soco no estômago. Eu quase chamei Vitória de "mãe" quando ela perguntou se estava tudo bem. Armin disse que eles sentiam saudades e foi ele quem sugeriu de me levar até eles, mas... eu estava ali para me despedir. Eu não podia me sensibilizar com tudo aquilo.

—Falando em Alexy, ele está em casa?—Perguntei, tirando meu cachecol. Armin o pegou e colocou junto com o dele sobre o sofá.

—Ele está lá em cima com a Rosalya, estudando.—Vitória disse. Eu olhei a escada, indecisa.—Pode subir, querida.

Eu olhei para Armin. Ele suspirou, segurou meus ombros e me empurrou até a escada, tentando me encorajar.

Quando decidi que ia embora, senti como se um peso tivesse saído das minhas costas. Eu até mesmo deixei de ver Armin  com os mesmos olhos. Minha raiva se esvaiu e no lugar dela, ganhei um sentimento de nostalgia adiantado. A vista da minha janela parecia mais bonita, meu apartamento parecia mais acolhedor, o céu parecia mais colorido, os olhos de Armin pareciam mais azuis... eu sabia que sentiria saudade de tudo aquilo.

E agora eu me sentia mal por Armin. Quando saí para caminhar naquele dia, falei que precisava pensar e voltei tratando-o bem. Ele ficou claramente feliz, devia estar achando que tudo voltou ao normal. Ele nem sabia que eu iria deixá-lo.

Quando cheguei ao último degrau, Armin abriu a porta do quarto de Alexy e deu um tapinha nas minhas costas. Rosalya estava costurando uma blusa estranha e chamativa num canto enquanto Alexy digitava algo no computador. Por incrível que pareça, eles estavam em silêncio. Não havia música e nem conversa. Era estranho vê-los assim.

Eles me viram antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Os seus olhos arregalaram-se. Eu já esperava uma briga, então respirei fundo e logo dei início ao meu curto pedido de desculpas.

—Eu fui uma imbecil. Uma perfeita imbecil. Podem falar o que quiserem, eu aceito broncas, xingamentos... eu mereço. Não espero que me perdoem, só queria pedir desculpas e...

Alexy se levantou correndo e me puxou para um abraço apertado. Eu não tive reação até sentir Rosalya me abraçar também. Quando percebi, já estava chorando. Havia tantos sentimentos dentro de mim que estava impossível impedir as lágrimas de descerem. Eu chorava pela saudade que senti, pela saudade que sentiria, pela forma como os tratei, por tê-los enfiado na minha vida... estava tudo muito confuso dentro de mim.

—Ei, desde quando você chora, senhorita Anastasia?—Rosalya se afastou de nós dois, limpou as lágrimas do canto dos olhos e me dirigiu um sorriso encorajador.

—Eu não q-queria falar com vocês daquela forma, mas eu também não queria deixá-los preocupados e...

—E você acha que adiantou de alguma coisa?—Rosalya perguntou com um olhar de reprovação.—Ficamos mais preocupados ainda!

Eu continuei abraçada a Alexy, enquanto Rosalya fazia um relatório sobre tudo que aconteceu enquanto eu estive fora. Ele mantinha o rosto apoiado sobre a minha cabeça e nos balançava devagar, como se houvesse alguma música tocando em sua cabeça. Não falávamos nada.

Pelo canto dos olhos, vi Armin desencostando da moldura da porta e indo até o seu quarto, com uma expressão de satisfação no rosto.

Rosalya ia se casar. Leigh já havia feito o pedido há quase dois meses, mas eu não sabia porque bloqueei as mensagens deles. Eu me sentia tão mal por ter me afastado, como pude fazer isso com eles daquela forma? Eles eram meus melhores amigos. Entraram tão rápido na minha vida que era como se eu os conhecesse desde sempre.

Rosalya segurou minhas mãos e me tirou dos braços de Alexy. Ele se sentou na cama.

—Eu quero que você seja minha madrinha.—Anunciou, com um brilho nos olhos.

—E-eu?

—Sim! Eu mesma desenhei o vestido! Também convidei a Kim, a Violette e a Melody, mas você era quem eu mais queria... você vai aceitar, não é?

—Mas é claro que sim, eu...!

Eu parei de falar na metade da frase. A não ser que o casamento dela fosse em uma semana, eu não poderia participar.

—O que foi? O gato comeu sua língua?

Eu dei um sorriso torto.

—Na verdade, Rosa, eu... não posso aceitar.

Seu rosto se entristeceu.

—Por que não?

—Eu... tenho uma notícia para dar, mas primeiro preciso explicar tudo que aconteceu. Por que eu me afastei de vocês e...

—Annya, a gente já sabe.—Alexy finalmente se pronunciou.—Você não nos deve nenhuma explicação.

—Devo sim. É a minha obrigação. Eu fui uma idiota, os tratei mal e me isolei.

Alexy se levantou e colocou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha.

—Só fale se quiser, está bem?

Eu assenti. Rosalya, curiosa, logo perguntou qual era a notícia que eu tinha para dar. Eu preferia contar para todo mundo ao mesmo tempo, então pedi para descermos até a sala. Alexy chamou o irmão, mas disse que ele estava ocupado, falando com alguém no telefone.

Eu não fazia a mínima ideia de como começar. Tudo que eu conseguia fazer era olhar para minhas próprias mãos, repousadas sobre o meu colo. Todos pareciam ansiosos para ouvir o que eu tinha para contar, mas Alexy exibia um olhar preocupado, atento.

—Eu nunca falei sobre mim para vocês.—Comecei, sem jeito.—E nem pretendia falar, mas... se vou fazer isso, vou falar tudo de uma só vez.

Eu fitei cada um dos rostos que me observavam, tentando guardá-los na memória.

—Eu não fui planejada. Meus avós maternos expulsaram a minha mãe de casa quando descobriram que ela estava grávida. Ela dizia que eu era a raíz de todos os problemas dela e as bebidas eram a sua solução. Era o meu pai quem cuidava de mim e ele era o meu melhor amigo no mundo inteiro, mas... ele morreu num acidente de carro quando eu tinha sete anos. Minha mãe e eu sobrevivemos por pouco, por um milagre, e ainda assim...

Eu respirei fundo antes de continuar.

—...quando estávamos no hospital, eu a vi pedindo a Deus que tivesse nos levado junto com meu pai, porque ela não tinha condições de manter a casa e pagar  todas as contas. Era ele quem sustentava a casa porque ela não conseguia arrumar emprego. Ela não conseguia largar o vício das bebidas. Os meus avós paternos eram ricos, mas ela se recusava a pedir ajuda à eles. Eles moram nos Estados Unidos até hoje e, naquela época, pagavam uma escola caríssima para mim, além de mandarem uma certa quantia de dinheiro todo mês e me visitarem uma vez por ano. Era a única época do ano em que minha mãe se mantinha sóbria, para manter as aparências diante deles. Nós vivíamos afogadas em dívidas e às vezes nem tínhamos o que comer, mas eu era proibida de falar a verdade para eles.

Eu engoli em seco, evitando olhar outra vez para os seus rostos. Minhas mãos suavam.

—Eu nunca havia feito nenhuma amizade até mudar para esse colégio novo... cheio de pessoas ricas. De repente, de um ano para o outro eu tinha uma sala inteira de amigos. Era tudo perfeito até eles descobrirem que... bem, eu não tinha dinheiro como eles. Todos se afastaram de mim e me tratavam como um animal. Se algo sumisse na sala de aula, eu era a acusada. Eles riam de mim e faziam piadas, dizendo que eu roubava para comprar bebidas para minha mãe.

Eu senti meus olhos arderem e comecei a bater o pé no chão, inquieta. Cometi o erro de olhar para Vitória e vi uma lágrima escorrer pela sua bochecha. Eu comecei a falar de Viktor. Contei tudo que havia acontecido, assim como contei para Armin. Quando finalmente olhei em seus rostos, vi que todos os quatro choravam, apesar de Arnaud e Alexy estarem mais relutantes.

—... e então eu voltei para a França e cá estamos. Eu falei isso tudo só para agradecer por tudo que fizeram por mim.—Eu dei uma risada, me esforçando para segurar as lágrimas.—Acho que não sou capaz de expressar o quanto sou agradecida por ter conhecido cada um de vocês porque... vocês foram as melhores pessoas que já apareceram na minha vida desde o meu pai e eu nunca fui tão...

Um nó surgiu na minha garganta e eu simplesmente não consegui continuar. Vitória se sentou ao meu lado e me abraçou.

—Querida, você faz parte da nossa família agora. Não precisa agradecer.

Eu levantei os olhos para ela. Mal conseguia ver seu rosto, com o monte de lágrimas que se acumularam nos meus olhos.

—Eu preciso agradecer porque vou embora... vou voltar para os Estados Unidos.

—O quê?—Eu escutei uma voz atrás de mim. Quando me virei, Armin desencostava da parede, indignado.

—Há... há quanto tempo você está aí?

—Tempo suficiente para saber que você não pode ir embora.

—Armin...

—Eu não posso acreditar que você vai nos deixar.—Falou, claramente magoado.

—Eu preciso ir...

Ele cruzou os braços.

—Por quê?

—Armin, olha o monte de problemas que eu causei.

—Você é humana, Annya. Você sempre vai causar problemas, não importa o lugar do planeta em que você esteja.

—Se eu não me apegar a ninguém, posso evitar os problemas.

—Então pretende passar o resto da vida sozinha?

—Se for preciso...

Ele me encarou por alguns segundos e então subiu as escadas, ainda inconformado. Eu respirei fundo e me virei para frente.

—Vocês não vão reagir como ele também, não é?

—Eu estou me sentindo tentada, admito!—Rosalya ralhou. Seu nariz estava avermelhado por ter chorado.—Que ideia maluca é essa, Annya?

—Meus avós já compraram as passagens e eu vou voltar a morar com eles.

—Mas você já está matriculada na faculdade daqui.—Tentou argumentar.

—Eu vou pedir transferência.

—Você não pode ir!—Alexy estava tão revoltado quanto o irmão.

—Alexy, eu...

—Annya, tem certeza de que está tomando a decisão correta?—Arnaud se inclinou.

—Acho que sim.

—Por quê?

Eu o fitei.

—Porque eu não quero que se preocupem com a Rachel vir atrás de mim, porque eu quase fiz a Lily terminar com o Armin, porque eu fiz o Armin e o Castiel pararem de se falar, porque eu preocupei Alexy e Rosalya, porque...

—Com exceção da Rachel, todos os outros problemas são culpa da Lily, não seus.

—Alexy, eu também não gosto dela, mas não posso fingir que a culpa não foi minha.

Ele deu uma risada de escárnio.

—Todos os problemas começaram quando ela apareceu!—Ele gesticulava de forma exagerada, irritado.—Aposto que se ela desaparecesse você ficaria, não é?

Eu hesitei.

Talvez.

—O que está planejando? Um sequestro?—Brinquei, com um sorriso nervoso.

Vitória interveio.

—Querido, ninguém aqui está feliz com essa notícia, mas não podemos obrigá-la a ficar. Poderíamos amarrá-la no sótão, mas eu sou jovem demais para ir para a cadeia.—Ela esticou a pele do rosto e sorriu para mim.

Lá no fundo, eu estava torcendo para ser forçada a ficar, mesmo se fosse amarrada. Eu não queria ir, mas Sophie e Lily tinham razão. Eu estava atrapalhando todo mundo.

Eles continuaram discutindo entre si por alguns minutos, até Vitória desconversar. Eu nem vi quando aconteceu, mas ela deu um jeito de mudar o assunto. Devia ser o superpoder dela. Eu dei um jeito de sair da conversa e me esgueirei até o andar de cima. Bati na porta e entrei, devagar. Armin me olhou de soslaio.

—...okay, te vejo amanhã. Durma bem. Beijos.—Ele desligou e colocou o celular em cima da mesa.

—Desculpe. Eu não sabia que estava interrompendo.—Murmurei, saindo de novo do quarto.

—Eu já ia desligar antes de você chegar. Entre.

Eu fechei a porta e coloquei as mãos nas costas, desajeitada. Já fazia tanto tempo que eu não entrava naquele quarto...

—Você e Lily estão bem outra vez?

Seu rosto se contorceu e ele balançou a cabeça, incerto.

—Na medida do possível, sim... mas ela tem agido estranho.

—Estranho como? 

—Não sei...—Ele respirou fundo e passou a mão pelo rosto.—Ela parece não ter tempo para nada, está sempre tensa e pergunta muito sobre você.

Eu apontei para o meu rosto.

—Sobre mim?

—Sim, mas isso não importa agora. Deve ser apenas ciúme.

Eu franzi o cenho, ainda incomodada. Ele girou a cadeira na minha direção.

—Annya, eu pensei que estivesse tudo bem. Por que decidiu ir embora?

—Porque eu estou atrapalhando vocês.

—Não, não está. Você sabe que todo mundo nessa casa ama você.

Eu o olhei por um segundo e comecei a caminhar de um lado para o outro, enumerando os problemas:

—Nós não podemos voltar ao que éramos antes, Armin, e você sabe que nós dois não funcionamos de outra forma. Não conseguimos ser apenas colegas. E agora, com a Lily... eu não posso simplesmente dividir a cama com você e esperar que ela fique feliz. É ridículo. Eu não posso fazer isso com ela.

Eu girei nos calcanhares, ainda sem olhá-lo.

—Além disso, meus avós descobriram que eu dei entrada num hospital e também estão insistindo que eu volte. Vou voltar a ter acompanhamento psicológico. Eles querem ficar de olho em mim para ter certeza de que não... farei nenhuma besteira.

Armin se levantou.

Eu posso ficar de olho em você.

Eu sorri.

—Armin...

—Estou falando sério. Meu pai tem uma amiga que é psicóloga, nós poderíamos...—Ele parou  de falar quando olhou para mim.—O que foi?

—É exatamente esse tipo de coisa que eu quero evitar. Vocês estão sempre se desdobrando por mim.

Ele virou o rosto, encarando a parede. Eu me aproximei e segurei suas mãos.

—Obrigada por me trazer aqui. Eu precisava vê-los.

—Fui eu quem te afastou deles, nada mais justo que eu os aproximasse também.

Eu segurei seu queixo e o virei para mim. Seus ombros caíram.

—Você não me afastou deles.

—Você sabe que sim.

—Nós dois erramos naquele dia, estávamos com a cabeça quente. E falando em cabeça quente, você precisa voltar a falar com o Castiel.

—Esse é o seu último desejo?

Meus olhos desceram até a sua boca por uma fração de segundos e eu me afastei. Meu último desejo jamais poderia ser desejado.

—Sim, é o meu último desejo. Acha que pode cumpri-lo por mim?

Ele me dirigiu um sorriso triste. Já havia sido difícil me despedir dos outros, mas me despedir de Armin era de cortar o coração. Eu nem mesmo conseguia acreditar que estava fazendo aquilo. Nós passamos por tanta coisa juntos. Depois daqueles olhos azuis, eu nunca mais olharia o mar da mesma forma outra vez.

Gostei do vestido rosa.—Ele falou, escondendo as mãos nos bolsos.

—Gostou?—Eu girei, fazendo o tecido esvoaçar ao meu redor.—Fui eu que costurei.

—A roupa é tão bonita quanto a costureira.

Eu sorri, sentindo minhas bochechas esquentarem. Seus olhos estavam vermelhos e ele mordia o lábio, se controlando para não chorar.

—Eu te proíbo de chorar por mim.—Eu o abracei, sentindo seus braços me apertarem.

—Não estou chorando. Só caíram cinquenta ciscos no meu olho.

Eu dei uma risada e soquei seu braço, me afastando até a porta. Ele me observava.

—Você sempre vai ser a minha melhor lembrança.—Falei, antes de tocar a maçaneta.—Adeus, Armin.


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