Start escrita por Queen Of The Clouds


Capítulo 1
Minha única companhia


Notas iniciais do capítulo

Olá, novo leitor! Seja bem-vindo!
Essa é a primeira fanfic que postei no Nyah e eu espero que gostem dela tanto quanto eu gosto. É o meu xodó.
Boa leitura!

AVISO: A história foi escrita em 2016 mas em 2020 passou por um processo de atualização para uma linguagem melhor.



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Anastasia

Eu observava os pés das duas pessoas paradas à minha frente, tentando desesperadamente encontrar algo para dizer. Eu deveria abraçá-los? Dizer que os amava? Eu podia dar um simples aceno de mão e virar as costas? Eu não fazia a mínima ideia. Eu só sabia que, de uma hora para outra, os sapatos de bico quadrado do meu avô e os mocassins vermelhos da minha avó me pareciam muito interessantes.

Eu havia me mudado para os Estados Unidos há dois anos para morar com essas duas pessoas que, mesmo sendo da família, eu mal conhecia. E agora eu estava no mesmo aeroporto, mais uma vez, só que numa despedida. O meu voo de volta para a França já estava para sair e eu ainda não tinha certeza se queria estar nele.

Eu sentia que deveria abraçar os meus avós, chorar no ombro dos dois e prometer que voltaria logo. E talvez fosse o que eu queria fazer, mas... eu não conseguia. Não é como se eu fosse mal-agradecida... na verdade, eu era mais do que grata à eles. Eu só não sabia como retribuir, como expressar o que estava dentro de mim.

—Lembra seu endereço, Anastasia?—Minha avó perguntou, visivelmente preocupada, apesar de se esforçar para manter um sorriso encorajador no rosto. As rugas ao redor dos seus olhos ficavam mais evidentes quando ela sorria. Na verdade, ela era aquele tipo de pessoa que quase fechava os olhos quando exibia um sorriso, então era óbvio que as rugas ficariam mais aparentes. Observação boba, daquelas que a gente só faz de última hora.

—Marie, ela lembra o endereço, não precisa perguntar de cinco em cinco minutos.—Meu avô, Michael, respondeu por mim, repousando carinhosamente o braço sobre os ombros da minha avó. Ele precisava se curvar um pouco pra fazer isso, pela diferença de altura. As dores nas costas provavelmente vinham daí. Estranho como em dois anos eu nunca havia parado para reparar nisso.

Mais uma observação boba. Ótima hora para começar a notar e me apegar aos trejeitos deles.

—Ela pode confundir o bairro, esquecer o nome da rua, o número do prédio, o andar...—Minha avó continuou falando, mas parei de prestar atenção quando ela colocou o cabelo devidamente penteado atrás da orelha. Era ruivo, igual ao meu, com exceção de algumas dezenas de fios brancos. Fios loiros, para ser mais exata. Cabelos ruivos demoravam a ficar brancos, eu sempre me esquecia disso.

Ou, pelo menos, era o que meu pai, herdeiro desse traço genético, costumava me dizer.

Quando me dei conta, ambos me encaravam. Como sempre, pensei demais e deixei minha cabeça ir para outro lugar. Pigarreei.

—Mari... quer dizer, vó, eu vou ficar bem. E...—Engoli em seco, tentando achar as palavras adequadas.—Obrigada por me receberem durante esses anos. V-vocês... vocês me salvaram.

Os olhos do meu avô logo se encheram de lágrimas. Eu desviei o olhar, me sentindo um monstro por isso.

Talvez eu fosse.

—Não precisa nos agradecer, querida. Se precisar de qualquer coisa sabe que pode nos ligar, não é?

Deram a última chamada para o embarque.

—E-eu sei. Muito obrigada por tudo, eu tenho que ir.—Dei um passo à frente para abraçá-los, mas travei no meio do caminho. Os dois me fitaram com certo receio, mas, por fim, sorriram e me puxaram para um abraço apertado. Eu respirei fundo, já me arrependendo da minha decisão. Eu deveria ficar. Era a opção correta, mais segura e saudável para mim... mas eu me conhecia o suficiente para saber que minha cabeça jamais me deixaria em paz.

Quando os soltei, não olhei novamente em seus olhos. Apenas sorri brevemente e murmurei um "tchau" quase inaudível, já me afastando.

Eu estava cometendo um erro?

Entrei no avião, e não demorei a encontrar meu assento, próximo à janela. Tentei não pensar muito durante a decolagem, eu tinha um certo medo de qualquer meio de transporte.

Talvez eu estivesse cometendo um erro.

Deixei apenas uma pequena fresta aparente na janela, por onde eu conseguia ver o vasto azul do céu. Respirei fundo, ainda sem acreditar no que estava fazendo.

Você não está cometendo um erro. Pare de pensar, Anastasia, pelo menos por um segundo.

Só percebi que ainda segurava o ar quando ele me faltou. O soltei pela boca e fechei os olhos, recostando a cabeça.

Estou sozinha outra vez.

 ***

Um táxi me levou do aeroporto até o meu novo apartamento. Conversei brevemente com o porteiro na entrada do prédio. Ele me deu as boas-vindas e foi muito gentil, mas eu estava tão nervosa que me esqueci de perguntar o seu nome. Perguntaria na próxima vez que o encontrasse. Entrei no elevador e logo já estava deixando as malas no chão da minha nova casa.

Toda a mobília já estava no seu devido lugar, porém vazia. O apartamento tinha o tamanho ideal para uma pessoa só, apesar de eu ter achado a sala exageradamente grande para alguém que não tinha muitas coisas e definitivamente não pretendia ter visitas.

Eu tinha três caixas me esperando: uma com livros e revistas, outra com roupas e mais uma, menor, marcada como "itens pessoais". Não sei como chegaram aqui. De qualquer forma, tentei deixar a maior parte das coisas para trás, então ainda havia muito a ser comprado. Eu arrastei a caixa de roupas até o quarto e as despejei em cima da cama, mas me arrependi assim que a motivação para organizá-las começou a me escapar entre os dedos. Busquei uma toalha na outra caixa e me enfiei num banho.

A água estava fria, mas tive preguiça de tentar mudar a temperatura. Agora que minha mente finalmente estava desocupada, diversos pensamentos desagradáveis começaram a pipocar na minha cabeça outra vez. Dessa vez me pareceu mais difícil de evitá-los. Eu estava na esperança de que a água fria pelo menos me incomodasse ao ponto de não me deixar pensar, mas não estava funcionando. Era sempre assim: quando eu achava que já tinha acabado, tudo voltava outra vez, como se eu tivesse acabado de viver aquela época. Os famosos fantasmas do passado, protagonistas dos meus piores momentos. Eu conseguia rever o rosto de cada um deles na minha mente. Até as pessoas que tinham um lugar no meu coração foram contaminadas pelas memórias que tenho das pessoas ruins.

E se eu conhecesse mais pessoas ruins aqui?

Fechei o chuveiro. Tive vontade de me mandar calar a boca, mas não ia ser muito eficaz. Eu estava matriculada no curso de Design de Moda e minha primeira aula era daqui a algumas horas. Só de pensar na possibilidade de interagir com alguém, me senti enjoada. Me enrolei na toalha e me joguei na cama, previamente cansada pelo que poderia acontecer hoje.

Uma coisa de cada vez.

Lembrei da minha antiga psicóloga. Ela me dizia para me concentrar nos problemas mais fáceis antes de enfrentar os mais difíceis. Qualquer progresso era bem-vindo. Eu havia acordado cedo, peguei o voo e o táxi sozinha e cheguei sã e salva em casa. Eu só precisava ir para a aula e provavelmente passaria despercebida entre o monte de alunos. Não havia nada com o que me preocupar. Tudo ia ficar bem.

Eu fechei os olhos e respirei fundo. Nesse breve momento de tranquilidade, acabei adormecendo. Como de costume, não tive sonhos. Acordei assustada, horas depois, percebendo que estava atrasada para a aula. Me levantei num pulo e puxei a primeira roupa que vi pela frente, ciente de que não era uma boa ideia, considerando o meu curso. Pensei em levar minha mochila, mas lembrei que não havia comprado nem mesmo o meu material ainda. Procurei uma bolsa menor, só para não andar com as mãos abanando e enfiei um casaco e uma carteira dentro dela.

Demorei para chegar à faculdade e demorei mais ainda para encontrar a minha sala. Eu estava tão nervosa que nem pensei antes de abrir a porta. Dei de cara com uma turma lotada e interrompi a professora no meio da explicação. Para completar o momento, ela fez questão de observar que minha blusa estava do lado do avesso. Eu não pude fazer nada além de agradecer pelo aviso e me esconder no fim da sala.

Ótimo! Comecei com o pé direito: atrasada, com uma blusa do lado contrário, sem material, numa sala cheia de desconhecidos e com uma professora convenientemente observadora.

"Pense pelo lado positivo, pelo menos encontrou a sala", uma voz engraçadinha resolveu dizer no fundo da minha mente.

A aula voltou a correr, mas eu não conseguia me concentrar depois do que aconteceu, ainda mais por sentir que estava sendo observada. Tentei ignorar a sensação por um bom tempo, até porque poderia ser coisa da minha cabeça: eu ainda estava caindo de sono pela viagem.

Mas, na segunda aula, antes do professor entrar, alguém cutucou meu braço. Quando me virei, um garoto de cabelos azuis e uma garota de cabelos platinados me cumprimentaram e arrastaram suas cadeiras para perto de mim.

—Não dá ideia para aquela professora. Todo mundo diz que ela gosta de constranger os alunos.—A garota disse, revirando os olhos. Parecia muito concentrada lixando as unhas, mas, ainda assim, me dirigiu um sorriso de solidariedade.

—Ah, obrigad...

—Eu amei o seu cabelo!—O garoto disse deslizando uma mecha do meu cabelo entre os dedos.—É ruivo natural?

—É-é sim.—Respondi, sem jeito, não deixando de notar a cor do seu cabelo também. Era definitivamente azul, mas possuía vários tons, desde a raiz cor de gelo às pontas em tons de turquesa. E, pra falar a verdade, lhe caía muito bem. Pensei em elogiá-lo, mas não sabia exatamente como fazer isso. Deixei a ideia de lado.

—Ai... se eu pudesse, pintaria o meu da mesma cor.

A garota riu e fechou seu caderno repleto de anotações da última aula que havia passado. Não sei de onde ela tirou todo aquele conteúdo, mas me senti pressionada só por ver aquilo. Eu estava ciente de que estava uma semana atrasada por conta dos preparativos para a mudança, mas não podia usar isso como desculpa. Amanhã mesmo iria procurar um lugar para comprar todo o material que eu precisasse ou acabaria ficando para trás.

—Seu cabelo ia ficar horrível, Alexy.

—Obrigado pelo apoio, viu?—Ele começou a fazer uma trança no meu cabelo, mas parou para encará-la.—Adoro quando você corta as minhas asas.

—É claro! Seu irmão já fala mal do azul, imagine o que ele diria do laranja.

—Rui-vo! Laranja é fruta! Já tivemos essa discussão antes.

—Ah, eu me lembro bem e com certeza não quero recomeçá-la.—Ela se aproximou para desfazer a trança no meu cabelo.—Você fala demais e vai acabar deixando nossa nova amiga tonta de tanta dor de cabeça.—Ele mostrou a língua para ela e ela retribuiu, antes de se voltar para mim.—A propósito, qual é o seu nome?

—Anastasia.

Eles se entreolharam, erguendo as sobrancelhas.

—Ouviu? Senti firmeza.

—Nome de princesa, né?

—Eu achei.

Eu acabei dando um sorriso com a reação dos dois, o que pareceu agradá-los.

—Aí está ele! Era esse sorriso que eu estava esperando.—O garoto sorriu também e pareceu ficar mais tranquilo. De repente, parecia que eu havia diminuído a velocidade dos dois. Ele suspirou.—Sério, ninguém merece dar de cara com uma professora dessas no primeiro dia de aula. Você está bem?

—Estou sim. Obrigada por perguntar.

—Eu me chamo Alexy e essa peste de cabelo platinado é Rosalya.

—Invejoso.—Rosalya resmungou.

—Mandona.—Ele retrucou, sem olhá-la. Não parecia ser a primeira vez que se provocavam dessa forma.

Eu não tive muitos amigos ao longo da minha vida. Na verdade, posso dizer com certeza que nunca tive um amigo. Mas não era necessário ser nenhuma expert no assunto — se é que isso existe — para perceber que a amizade daqueles dois já era algo antigo. A dinâmica era notável, eles deviam se conhecer há anos.

Mas não pense demais sobre isso, Anastasia, vai acabar relembrando memórias que definitivamente não quer desenterrar.

—...enfim, se precisar de alguma coisa, pode falar com a gente.—Alexy provavelmente falou outras coisas antes disso, no entanto, mais uma vez, eu não prestei atenção. Palmas para mim!

—Não que a gente consiga resolver tudo, mas é bom saber que tem alguém por perto.—Ela piscou pra mim.

—Ah, obrigada. É um prazer conhecê-los.—Eu acenei com a cabeça, simplesmente. Tentei responder da forma mais genérica possível, considerando que não ouvi uma palavra do que disseram.

—Ai, você é uma gracinha. Não tem namorado, tem?

—Alexy!—Rosalya bateu no braço dele.

—O que foi? Só estou perguntando.

Eu franzi o cenho por um segundo, confusa.

Eu tive a impressão de que ele era...

Mas será que isso foi uma...?

—Isso não foi uma cantada, foi?—Perguntei, me arrependendo no segundo seguinte.

Os dois me olharam... então se olharam... e desataram a rir. Fiquei imóvel, alternando meu olhar entre os dois amigos.

—Ai, foi mal!—Ele exclamou, secando uma lágrima do canto do olho.—Olha, não é nada pessoal, você é linda, Anastasia, mas...—Ele estava claramente segurando o riso.—Eu iria preferir se tivesse um irmão, entende?

Eu ergui as sobrancelhas. Era exatamente o que eu tinha pensado!

—A-ah! Desculpe. Eu tive essa impressão, mas fiquei um pouco...

Desconfortável?—Rosalya murmurou.—Eu imagino.—Dessa vez, Alexy quem a empurrou.

—Não escuta a Rosa. Eu perguntei porque tenho um cara pra te apresentar. Ele é lindo, modéstia à parte, né, super...—Rosalya o interrompeu, com um olhar incrédulo.

—Para de tentar empurrar ele pra cima dos outros, garoto!

—Eu não tô empurrando ninguém, só...

—É... foi mal.—Eu interrompi a discussão dos dois, antes que me envolvesse em algo que não deveria.—Eu agradeço, mas não estou interessada em nada disso no momento. Só quero me concentrar na faculdade.

Que fofo! Ele diz a mesma coisa!

—Ele ficaria furioso com você se visse a propaganda que anda fazendo dele por aí.

—Um dia ele vai me agradecer.

Rosalya riu e revirou os olhos, como se dissesse "inacreditável".

"Ele, ele, ele"... de quem eles estavam falando? 

Não tive tempo e nem coragem para perguntar. Logo um novo professor entrou na sala e começou a encher o quadro com informações e datas.

—Outra hora você banca o cupido, Alexy.—Ela arrastou sua cadeira para o lugar de antes e se virou para mim.—Adorei conhecer você.

—Eu adorei mais.—Alexy sussurrou, sorrindo. Eu sorri de volta e me virei para a aula.

Eu ainda não podia dizer o mesmo. Não os conheço. Nem eles deveriam dizer isso, na real. Se me conhecessem melhor, pelo menos, não diriam.

Foco, Anastasia. Foco na aula.

O professor estava apenas fazendo uma introdução da matéria, falando sobre os métodos de avaliação e a programação para o período que estava começando. Pelo visto, era a primeira aula dele. Melhor assim. Se eu fosse mal nessa disciplina, não poderia usar minha mudança para me justificar.

A aula acabou bem mais cedo do que deveria. Rosalya e Alexy me acompanharam até o pátio, me explicando sobre a faculdade e o nosso curso. Descemos a escadaria do prédio com uma multidão ao nosso redor, falando e rindo alto demais para o meu gosto. O lado de fora não estava muito diferente, mas tinha o "bônus" das buzinas e barulhos vindos da rua. Mal podia esperar para chegar em casa e aproveitar o meu silêncio, sozinha.

De repente, percebi que eles começaram a andar em direção à um grupo grande de pessoas. Apertei as alças da bolsa entre as mãos.

—Aonde estão indo?—Perguntei, cautelosa, reduzindo a velocidade dos passos. Os dois pararam e se viraram para me olhar, mas só Alexy me respondeu:

—Vamos dar "olá" para uns amigos e encontrar meu irmão para irmos para casa.

Definitivamente, não. Eu estreitei os olhos para analisar o grupo e, numa contagem rápida, identifiquei quase nove pessoas. Minhas mãos começaram a suar frio só de pensar em me enfiar em outra interação e com tanta gente. Se com duas pessoas já foi demais, nove seria mais que um desastre.

Eu preciso sair daqui.

—A-ah, entendi. Então, okay. Vão lá. Até amanhã.

—O quê? Não! Vem conhecer o pessoal!

—Não... talvez outro dia.—Mentira.—Eu estou um pouco cansada hoje.—Mentira de novo!—Tenho que ir para casa.

—Tem certeza?—Rosalya insistiu.—Olha, eu juro que são gente boa.

"Gente boa". Isso me lembrou tantas coisas. Da última vez que me envolvi com esse tipo de pessoa, descobri o contrário.

Forcei um sorriso, esperando ser convincente.

—Obrigada, mas é melhor deixar para a próxima.

—Okay, então... até, Anastasia!—Alexy me mandou beijos, já se afastando.

—Tchau! Até amanhã!—Rosalya se despediu, adiantando-se para alcançá-lo.

—Até.—Murmurei, acenando. Parei para observá-los de longe, por um momento. Eu mal conseguia ver os rostos das pessoas de tão longe que elas estavam. Quando a dupla se aproximou, todos os abraçaram e então voltaram a conversar, rindo.

Eu dei meia-volta e segui sozinha para o meu prédio. Já estava na frente dele quando me lembrei que não havia absolutamente nada na minha geladeira. Voltei a caminhar, estressada, e procurei uma lanchonete qualquer. Por sorte, encontrei uma que já estava prestes a fechar. Meu jantar foi hambúrguer e batatas-fritas. Alimentação nota zero.

Mandei mensagem para a minha avó: "acabei de sair da aula. correu tudo bem :)"

Ela respondeu com o gif de um gato dançando. Eu sorri.

Quando finalmente cheguei em casa, às onze em ponto, uma música preenchia o corredor do meu andar. Escutei vozes altas e animadas no apartamento do meu vizinho no fim do corredor, mas assim que tranquei minha porta o barulho praticamente desapareceu. Eu não ouvia mais nada além dos meus próprios passos, ecoando pela sala parcialmente vazia. Sem sons de trânsito, sem música, sem vozes escandalosas ou risadas altas.

Porque eu estava sozinha.

Era o que eu queria há meses e agora...

Balancei a cabeça, tentando afastar os pensamentos ruins.

Não pense demais. Vá dormir.

Empurrei minhas roupas para o outro lado da cama e me deitei cedo, já que não havia mais nada para fazer. A televisão que meus avós me compraram — que, diga-se de passagem, eu havia tentado recusar inúmeras vezes — ainda não havia chegado e meu celular descarregou. Os videogames e aparelhos de música que eles me deram, assim como todos os demais presentes caros, deixei na casa deles, com a desculpa de que logo estaria de volta.

Mentira. Mentira deslavada!

Pra início de conversa, eu nem deveria ter recebido esse monte de "presentes", eles poderiam ter gastado o dinheiro deles de uma forma mais útil. Eu não queria os vestidos caros, as tecnologias de última geração, as maquiagens que pareciam durar para sempre... pelo menos, não dessa forma. Eu não havia movido um único dedo para conseguir nada daquilo. Não me esforcei para alcançar nenhuma dessas coisas, logo, elas não eram minhas. Simples.

Da mesma forma, cada metro quadrado desse apartamento me incomodava. Me causava desconforto por não tê-lo conquistado por conta própria. Meus avós insistiam em me ajudar em tudo que eu precisasse e, a contragosto, eu iria aceitar, por ora. Mas, no futuro, assim que eu conseguisse um emprego decente iria me esforçar para devolver cada centavo à eles. Mesmo sabendo que eles não precisavam, mesmo sabendo que eles não se importavam com o dinheiro, mesmo sabendo que provavelmente iriam recusar. Eu iria devolver, nem que levasse a minha vida inteira para isso, o que eu sabia que não iria levar. E meus avós nem tinham uma idade tão avançada assim, eu com certeza conseguiria pagá-los antes que...

Abri os olhos. Não pense nisso.

Troquei de posição na cama, desconfortável, e voltei a fechar os olhos.

A questão nem mesmo era essa. O que eu estava pensando antes?

Ah!

Não que eu estivesse com muita motivação para fazer qualquer coisa agora, como jogar videogame ou algo do tipo. Eu realmente não tinha muitas opções além de dormir, admito que aqueles dois até que conseguiram me deixar bem cansada. Eu havia cuspido meia dúzia de palavras essa noite e já foi mais que o suficiente. Poderia ficar em silêncio por semanas, depois de hoje. Eles falavam demais, me incomodava um pouco.

Mas pareciam ser pessoas boas. Eu poderia tentar de novo.

Me virei outra vez na cama, irritada, tentando pensar em outra coisa. Na verdade, tentando não pensar!

Por que eu simplesmente não conseguia deixar as coisas acontecerem naturalmente?

Respirei fundo mas dessa vez, pelo menos, me lembrei de expirar. Consegui ouvir quando os convidados do meu vizinho começaram a cantar "parabéns pra você", todos juntos. Será que havia mais de nove pessoas ali também?

Bobagem! Claro que havia mais de nove pessoas ali.

Mas, mesmo assim, me peguei em em silêncio, tentando separar cada uma das vozes para contá-las. Quando me dei conta, comecei a cantar também, baixinho, até finalmente dormir.

Eu havia sobrevivido ao meu primeiro dia de volta à França. Sozinha.

 ***

No segundo dia de aula, tive o cuidado de vestir a blusa do lado certo e chegar antes do horário. Antes de ir para a aula, encontrei uma papelaria, onde comprei todo o material que eu poderia precisar. Tive apenas uma aula, onde a professora explicou sobre a moda através dos séculos e, para o meu azar, passou um seminário obrigatório em grupo. Eu estava decidida a tentar convencê-la de me deixar fazer sozinha e, assim que a aula terminou, enfiei meu material na mochila de qualquer jeito para ir atrás dela. Estava prestes a sair da sala quando duas figuras entraram na minha frente.

—Oi, Annya!—Alexy surgiu, sorridente.—Eu posso te chamar de Annya, não posso?

Meu pai costumava me chamar assim.

—Ahn... Por que não poderia?—Retruquei, recebendo um sorriso maior ainda em resposta.

—Você já tem grupo para o trabalho de história da moda?

—Na verdade, eu estava indo pedir à professora para fazer sozinha.—Eu fiquei na ponta dos pés, tentando encontrá-la entre o monte de alunos.

—Por que não faz com a gente?

—Eu...

—Vamos, vai ser legal!

Eu ponderei a ideia por alguns segundos antes de responder. A professora já havia saído do meu campo de visão e em algum momento eu teria que me aproximar de um monte de desconhecidos para alguma atividade. Pelo menos aqueles dois eram desconhecidos que aparentavam ser gentis. Eu não tinha muito a perder.

—Claro. Podemos fazer o trabalho juntos.

—Legal! Estamos indo para a casa do Alexy agora para começarmos hoje mesmo, quer vir?

Eu levantei as sobrancelhas, surpresa. Eu mal os conhecia!

—Precisa ser agora? Quero dizer... hoje... eu tenho que ir para casa.—Murmurei, tentando fugir da proposta.

—Tem alguém te esperando?

—Não, mas...

Alexy me interrompeu, com a mesma animação inabalável.

—Então não tem com o que se preocupar! Vamos! Vai ser divertido, eu prometo!—Ele entrelaçou o braço no meu e me acompanhou, ou melhor, me arrastou para fora do prédio. Só aquele ato já conseguiu fazer com que a minha cabeça inteira começasse a girar, tentando inutilmente descobrir onde foi que tudo começou a dar errado. Quando eu comecei a ser tão "esquisita" ao ponto de viver mais dentro da minha própria cabeça do que no mundo exterior?

O problema é que, até onde eu me lembrava, eu nunca tinha sido muito sociável. Quando eu era criança, meu melhor amigo de infância era o meu pai. Eu tinha aulas em casa, nunca entendi muito bem o porquê; devia ser apenas capricho de um pai superprotetor. De qualquer forma, eu jamais iria atribuir a culpa das minhas manias e esquisitices à ele.

Mas era inegável que não possuir experiências ou interações me deixou sem defesas para o mundo. Quando comecei a estudar numa escola normal, junto com outros adolescentes, até pensei que as coisas poderiam tomar um bom rumo, mas aconteceu o extremo oposto. Com o tempo, os poucos amigos que conquistei se revelaram como péssimas pessoas. Quando precisei, ninguém ficou ao meu lado e eu tive que me tornar a minha única companhia.

Prometi a mim mesma que nunca mais confiaria em ninguém e me distanciei de todos. No entanto, cometi o erro de quebrar a minha própria promessa e me apaixonei... foi a pior decisão da minha vida. Minha vida se tornou um inferno ainda maior.  Chegou à um ponto em que, quando meus avós paternos souberam de tudo que estava acontecendo, exigiram que eu me mudasse para os Estados Unidos para morar com eles, onde fiquei até ontem.

Talvez possa ser besteira da minha parte, mas até hoje não consegui me recuperar totalmente. Depois de todo esse histórico que carrego, ter duas pessoas sendo gentis comigo e se esforçando para se aproximar de mim me trazem uma sensação estranha, como se eu estivesse cometendo outro erro.

Nem todo mundo é ruim. Eu sei disso. Eles só devem estar tentando serem legais, é apenas a minha primeira semana na nova cidade e acho que isso está estampado no meu rosto. Mas eu sinto como se estivesse sendo arrastada para fora da minha zona de conforto. Eu não conseguia calar aquele sentimento de que minha vida estava começando a mudar, saindo totalmente do caminho que planejei.

E eu não tinha certeza se queria essa mudança.


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Notas finais do capítulo

Comentários e críticas construtivas são sempre bem-vindas!



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