Liame escrita por Alice Fitzwillian


Capítulo 5
Equilíbrio 2




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Dois anos depois.

O Rei das almas, diziam os pobres e o nobres, era o senhor supremo de todo o equilíbrio. Ele impedia que os dois mundos se encontrassem para que não ocorresse de tudo desaparecer no mais completo caos de poeira e inexistência. Além do mais, vivos devem estar no mundo dos vivos. Mortos em qualquer outro lugar que não seja a terra. Certo? Bom, mas o que é estar vivo? Kurosaki Ichigo estava vivo? Aquela coisa, mecânica e estranha, aquela rotina que ele compartilhava com a mulher o filho...Aquilo poderia ser considerado vida? Ichigo se perguntava todos os dias, depois de levantar-se da cama e ir ao escritório onde trabalhava, do outro lado da cidade. Escolheu estar longe de casa não por acaso.

 Naquele dia, amanheceu estranhamente mais pensativo. Refletia especialmente, sobre suas chances e aquela baboseira toda de equilíbrio e almas. Isso quer dizer que temos uma só chance de fazer a coisa certa na vida. E de fazer a coisa errada também. No passado, ele se sentia como se tivesse desperdiçado muitas coisas na adolescência, por causa do trabalho de shinigami. Mas agora, que ele tinha tempo e vivia a vida de um humano normal, porque ele não sentia que estava aproveitando-a? Será que os anos que se arrastavam eram um turbilhão de chances desperdiçadas? Ou era o contrário? Ichigo fechou os olhos, na tentativa de diminuir a pressão das dúvidas. Teoricamente, ser adulto significaria ter menos incertezas. Ele nunca esteve tão maduro e tão incerto.

...

À noite, depois de buscar Kazui na escola e sentar-se à mesa, com Inoue. Ichigo lembrou-se quando Urahara, depois do fim da Guerra de inverno, chamou-o pra conversar em um canto e contou-lhe um pequeno segredo. Ele disse “Ichigo, o rei das almas não equilibra apenas a balança, mas a vida das pessoas. Uma alma está sempre onde deve estar.É o motivo de as pessoas pensarem nele o tempo todo. Tudo acontece com o propósito de restaurar o equilíbrio em algum ponto.” Sempre assustava-se com as possibilidades de mudança em seu mundo, mas Rukia significou uma espécie de saída da zona de conforto e ele gostava muito disso. A Soul Society era o lugar das almas, ela estava no lugar errado naquela época, mas estranhamente, pra ele, ela não poderia ter vindo em melhor hora.

—Ichigo, você está bem? Não tocou na comida ainda. –Inoue, comentou, preocupada.

—Estou pensativo. –Falou, começando a comer, finalmente. Inoue baixava a vista, impotente. Desde que se casara, essa sensação aumentara mais do que devia.

—Papai, eu aprendi sobre a morte na escola hoje! –Kazui comia, um pouco desanimado também.- Ela é ruim papai. Ela faz as pessoas sofrerem, ela destrói tudo!

—Esse é o tipo de coisa que não se pode evitar filho. –Ele falou, olhando-o nos olhos, admirado. Ichigo gostava da forma como Kazui enxergava as coisas. O pensamento infantil era simplista, ele tinha uma visão otimista sobre tudo, mas também era muito sensível. Poderia ser ruim pra outras pessoas que ele pensasse assim, mas talvez, o mundo precisasse dessa inocência e ele se orgulhava de cria-lo dessa forma. Ichigo escolhera pra Kazui a vida mais semelhante à dos outros humanos. Ele saberia o que é, de fato, a morte, quando fosse a hora certa. Por enquanto, os espíritos não o incomodavam, já que as “soul candy” de Urahara inibiam essa habilidade.

—E porque as pessoas morrem papai? –Os grandes olhos irados por essa dúvida. Ichigo sorriu, pensando que aquele foi o “Xeque mate” do dia. Ele também, teoricamente deveria saber como responder esse tipo de pergunta, porque ele era adulto. Mas ele não sabia.

—Outra hora conversamos sobre isso filho. Coma! –Ele voltou-se para o prato, dando a genérica resposta que os pais dão quando seus filhos lhe fazem essas perguntas, que soam como cobranças. “Porque o mundo é como é?” Existia uma inquietação que o fazia sentir-se ainda mais acomodado que o resto dos seres humanos. Mas a verdade é que todos nós fizemos o melhor que pudemos. E só podemos nos mover para o que temos hoje.

...

De madrugada, simultaneamente, as pequenas balanças que regiam os mundos de Ichigo e Rukia despencaram. O rei das almas fez o seu desajuste. Os antecedentes para a harmonia foram brutais e desgastantes.

Às três da manhã, Orihime decidiu levantar-se, quando sentiu uma tontura forte. Quase caiu, mas segurou-se na maçaneta da porta. Já era a quarta vez em duas semanas que se sentia daquela forma. Um cansaço contínuo e por vezes, tonturas e dores de cabeça. Dessa vez decidiu beber água pra dispersar a preocupação consigo mesma e com Ichigo, que estava mais arredio que o de costume no jantar. Antes que cruzasse a porta, ouviu-o sussurrar ainda dormindo.

—Rukia. –Ele dizia seu nome como se não fosse suportar ser abandonado. O desespero era palpável. Inoue não se conteve. Kazui estava dormindo e as possibilidades de Ichigo acordar só lhe fariam sofrer ainda mais então ela decidiu deixar a máscara cair um pouco e sentou-se ao pé da escada, chorando.

Porque sua felicidade estava sempre ameaçada aquela forma? Mesmo Rukia estando longe, era como se ela estivesse ali, o tempo todo entre eles. Não foram poucas as vezes em que se sentira uma intrusa em sua própria casa. Ela já o viu perder outras noites tendo pesadelos com ela ou com a mãe, mas ela fingia que não havia escutado nada durante a noite. Eles dormiam na mesma cama, ele sabia que era impossível.

—Orihime! O que está fazendo aí a essa hora? –Ele acordara, o corpo molhado de suor. Sentou-se ao lado dela, afagando seus ombros, mas a mulher reagiu arisca como ele não via a muito tempo.

—Me deixa Ichigo! –Desceu correndo as escadas e foi pra geladeira, acalmar-se tomando um copo d’água.

—Aconteceu alguma coisa? Porque está chorando? – Ele sentou-se na mesa, surpreso. Orihime sentou-se na sua frente, seu choro era descontrolado.

—Vem acontecendo a muito tempo. E você sabe. Até quando você vai mentir pra mim? –Ela perguntou, os punhos na mesa cerrados de fúria. –Você sonha com ela todas as noites Ichigo. É humilhante dormir na mesma cama que vocês dois. –Apoiou o queixo em uma mão, ainda descrente.

—Eu não tenho culpa de estar sonhando com a Rukia. Eu...-Ichigo se deu conta de que sequer haviam citado o nome dela e Orihime riu, sarcástica.

—Olha só, pelo menos dessa vez eu não vou precisar dizer de quem nós estamos falando. –Ele cruzou os braços. O mais constrangedor de tudo isso, era que ele sequer se lembrava de seus sonhos. Obviamente, um artifício de seu inconsciente para liberar as emoções que ele o tempo todo reprimia.

—Você está com ciúme de um sonho. Inoue eu vivo com você à 10 anos. Eu gosto de você. – A mulher olhou-o, deprimida e arrependida.

—Me desculpe Ichigo, eu só...-Colocou as duas mãos no rosto, limpando as lágrimas e recompondo-se. – estou um pouco nervosa hoje. Esses dias eu –Passou a mão distraidamente na cabeça. Os olhos arregalaram-se tentando manter o foco, que de repente parecia uma tarefa difícil. A vista escureceu e ela ouvia a voz de Ichigo cada vez mais longe, ao passo que ia perdendo os sentidos até cair desmaiada, em cima da mesa de jantar, na frente dele.

...

Ichigo chamou o pai na casa vizinha apressadamente. Isshin tentou reanima-la, sem sucesso. Inoue foi levada para o hospital onde o pai de Ishida trabalhava. Ryuuken então suplicou por calma, depois de quase duas horas de atendimento sob um silêncio perturbador, especialmente para o pobre Kazui, que oscilava entre o choro baixo e orações silenciosas. Ichigo por um momento relembrou a morte de sua mãe e pensou filho, abraçando-o.

—Kurosaki, preciso conversar com você. –Ryuuken ajeitou o óculos, a expressão minimamente alterada. Ichigo lançou um olhar compassivo à Kazui, tentando reconfortá-lo e seguiu até a pequena sala onde Orihime estava. No caminho, suas pernas e pés não pareciam as de um homem de 28 anos, mas de uma criança, que não sabia de fato onde pisar.

—A garota...Inoue. Ela está com câncer.-Até mesmo Ryuuken, aquele homem frio, sentiu-se comovido com a situação. –Em fase terminal. –E nessa hora Ichigo sentou-se na cadeira de metal frio, tateando o piso debaixo de si.

Quatro semanas atrás, Kurosaki Ichigo não imaginava que existisse aquele estado de cansaço em que ele se encontrava. Ele transitava entre vagar quase dormindo pelos corredores do hospital geral de Karakura e de fato, dormir na poltrona ao lado da cama de Orihime. Fazia um dia frio lá fora e ele não podia detestar mais as baixas temperaturas.

A internação de Orihime era urgente, por isso, na mesma noite em que recebeu a notícia, os Ishida providenciaram uma vaga pra ela, no setor de oncologia. Não havia muito o que se fazer já que a descoberta tardia prejudicava de uma forma irreversível a recuperação dela. Tudo que estavam vivendo agora se baseava na premissa de diminuir o avanço da doença. Ichigo tentava ter esperanças, mas o cansaço minava qualquer esforço para fazer preces.

Naquele dia em especial, depois de ensinar à Kazui algumas tarefas escolares, Ichigo teve uma conversa dolorosa com sua pequena cria.

—Pai...Se a mamãe morrer...Com quem o senhor vai ficar? –Kazui encarou-o preocupado. As olheiras do garoto expressavam seu desejo de seguir em frente, assim como ele. –Papai, eu quero muito que ela sobreviva, mas ela sofre tanto que... –Kazui chorou por um momento. –Eu só quero que saiba que eu vou entender se não for capaz de ficar sozinho quando ela se for. –Kazui encostou-se em seu braço, limpando as lágrimas. E peito de Ichigo doeu com esses pensamentos e ele só desejou que Inoue e todos eles tivessem um pouco de paz.

...

Eram por volta de Oito da noite quando ela finalmente se foi. Ichigo estava ao seu lado na mesma poltrona dura em que ele dormira por todos o mês. Naquele dia em especial, havia recebido visita de todos os seus amigos. Ichigo estava sonolento como sempre, quando sentiu a mãe de Orihime buscar a sua. O fez por reflexo.

—O que foi Orihime? – Ele perguntou, insone, em alerta.

—Não se prive. Não se prive de mais nada. Ame a Rukia. Como você sempre quis. –E então, sem que sequer Ichigo pudesse questionar, o irritante aparelho que media as batidas de seu coração fez aquele som estridente. Ele mesmo fez sua passagem para o outro mundo, tocando a testa dela com o cabo de sua espada. A noite terminou com a uma borboleta infernal levando-a pra a eternidade, atravessando a janela do quarto da UTI.

Ichigo bem sabia que nunca mais a veria, porque quando alguém morre, perde todas as lembranças do mundo dos humanos. Mesmo que um dia voltassem a se encontrar, eles seriam estranhos um para o outro. Por um momento sentiu-se em paz.


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Notas finais do capítulo

:)



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