Faro Fino escrita por Human Being


Capítulo 5
Epílogo




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~Epílogo~

 

A situação toda tinha um toque de dèjá-vu.

Lá estava ela no quarto de Milo de novo, em pleno sábado à noite, pajeando o próprio que estava largado em sua cama de novo, porque sobrou para ela tomar conta do Escorpião Dourado porque Saga  simplesmente não se dignou a certificar-se da segurança de seu “irmão de armas”.

Shina respirou fundo, controlando sua irritação.

Resolveu ir até a cozinha para caçar pó de café para fazer um bem forte para dono da casa. Surpreendeu-se ao perceber que achar o pó de café e a panela para ferver a água foi muito mais simples do que imaginava, a cozinha de Milo chegava a ser mais organizada que a sua própria. Passou o café para si mesma, reconsiderando se Milo realmente poderia beber alguma coisa do jeito que estava.

Voltou para o quarto e sentou na cadeira, acomodou sua xícara no criado mudo atrás e olhou para o dono da casa; prostrado que estava no lado esquerdo da cama espaçosa. A perna direita dele estava semiflexionada para fora numa posição que certamente não devia ser cômoda, mas ele não movia um músculo para tentar sair da posição em que Saga o largou.

Um ronco esquisito saiu da garganta dele quando a consciência começou a lhe faltar. Ela precisou tocar-lhe o ombro numa sacudidela para que ele voltasse a abri-los. Ele tinha que ficar acordado até que o efeito passasse um pouco mais, ou poderia ter uma parada respiratória.

— Milo - Ela disse enquanto ele focava os olhos azuis celestes nela. - Se ajeita um pouco mais na cama.

Ele tentou se ajeitar como pôde; o que era muito pouco posto que ela precisou ajudá-lo a subir a perna que ficara quase de fora da cama e tirar-lhe os sapatos. Resolveu também dar uma ajeitada nos travesseiros para que a cabeça dele não ficasse tão baixa, então ela se sentou na borda da cama para elevar-lhe o tronco. A cabeça dele pendeu para trás de um jeito que certamente devia ser desconfortável e ela inclinou-se para mantê-la colada em seu pescoço, a  respiração dele perceptível em sua nuca. Ignorou a sensação e contorceu-se  para colocar uma almofada em cima da outra e deitá-lo novamente, empurrando-o mais para o centro da cama.

Os olhos entreabertos dele então focaram nela, e os lábios dele esboçaram um sorriso. Bem que Shina achou que ele fosse começar a gargalhar novamente, mas dessa vez o sorriso era diferente.

Quase como se ele estivesse feliz em vê-la ali.

Mas mesmo sorrindo, ele foi fechando os olhos de novo.

— Milo - Ela o tocou novamente no ombro e ele olhou para ela do mesmo jeito desarmado de antes, tão fora de lugar nele. - Você precisa ficar acordado. Entendeu?

Ele fez que sim com a cabeça, mas seus olhos teimavam em se fechar.

Shina sentia um nó em seu estômago, as mãos frias e úmidas.

Podia parecer até brincadeira, mas ela estava mais nervosa e envergonhada do que quando o ajudara naquele porre há meses atrás. O que era um disparate: Para quem já o viu nu em pêlo, estar com ele ali, agora, não era nada. Mas se à primeira vista a situação parecia a mesma - Ela bancando a babá de Milo após um episódio de intoxicação exógena - eram nos detalhes que estava a real dimensão das coisas.

Dessa vez, o que deixou Milo torporoso numa cama não foi um porre, foi o escrivão Teófanes. E ela sabia que, por mais que doesse admitir, era graças a Milo que ela não estava também naquele estado. Além disso…

O “além disso” era muito pior do que a mera observação de que Milo precisou defendê-la.

Desde o porre, e especialmente depois aquele dia no cinema, sua cabeça andava lhe pregando peças. Não só a sua velha fixação por Seiya: recentemente era Milo e seus olhos azuis - despidos da sua sempre presente arrogância - que a andavam assombrando.

Esses mesmos que ela via agora, entreabertos, um pouco mais escuros que o habitual por conta das pupilas dilatadas pela droga; emoldurados por um rosto bem mais bonito quando relaxado da expressão arrogante de sempre. As sobrancelhas perdiam aquela expressão quase perene de descontentamento, os lábios pareciam mais carnudos sem estarem espremidos numa linha fina de empáfia. Então aqueles olhos, mesmo semi encobertos pelos cílios longos e um tanto mais escuros que os cabelos quase dourados, brilhavam em todo o seu potencial.

Era no mínimo irônico que o Destino, ou o que quer que seja que rege as vidas dos mortais, andasse se ocupando em mostrar a ela, logo a ela, essa faceta de Milo.  Todos viam - e como viam - o Escorpião Dourado, o Impacto Vermelho, o terrível Corregedor das Tropas; guerreiro exemplar moldado com suor, sangue e dedicação absoluta. Por isso, talvez, as adolescentes que treinava se comportavam como tietes: como não idolatrar a reluzente imponência do Guardião da Oitava Casa?

Mas esse Milo diante de si, transparecendo por uma vulnerabilidade que ele jamais se permitia, era algo que talvez nunca alguém tivesse visto além dela.

Ali, agora, se alguém perguntasse para Milo a sua senha do banco ele responderia sem nem titubear.

Talvez o que realmente a estivesse deixando nervosa era saber que sim, ela sentia vontade de lhe perguntar algumas coisas; mas também sabia que isso poderia ser uma traição à sua confiança.

Mas… Ele precisava ficar acordado, não precisava?

— Milo - Ela mal acompanhou sua voz saindo de sua boca. - Me responde uma coisa…

Ele focou novamente os olhos cerúleos nela.

— Você achou mesmo aquele maço de cigarros no campo de amazonas?

Perguntas abertas, não sugira as respostas. Como todos no Santuário, já estudara e fora preparada para interrogatórios; sabia muito bem conduzir um. E essa era uma pergunta boa sobre um assunto seguro; Milo não se comprometeria em responder mesmo sob efeito do soro.

— Achei... - A voz dele, suave e arrastando as consoantes, era a antítese do tom metálico que lhe era habitual. - ...Perto das arquibancadas… Eu chutei eles sem querer… Fui ver o que era, aí… - Ele franziu de leve as sobrancelhas. - O Camus... Ele disse que a gente devia guardar eles pra fumar depois… Pode uma coisa dessa, esse francês doido... Eu nunca nem fumei isso!... Será que… Será que é parecido com isso que eu tomei?...

— E por que você estava lá? - Shina perguntou. - Eu tinha falado para vocês saírem de lá, não disse?

Milo meneou a cabeça no travesseiro, piscando devagar. Sua mão direita, sua arma de eleição, estava largada quase ao lado da cabeça, dedos semiflexionados e palma para cima.

— Eu… Estava puto com o Saga, não queria ver ninguém. O Saga… - Ele franziu as sobrancelhas e os lábios como uma criança emburrada. - Ele disse que só me nomeou corregedor por causa do Gigars… Como se… eu não merecesse? Eu sou um bom corregedor, eu não aceito que ele fale que eu não sou!... Merecia que eu quebrasse a cara dele, ele acha que eu não posso?...  Posso, sim senhor… Ele que me aguarde, ele e o irmão dele… Aquele outro puto, cuzão…  Eu ia furar ele com umas sessenta agulhas… - Novamente aquela risada anasalada, quase silenciosa. - Ele ia ficar uma peneira dessa vez… Ia sangrar até, esse cuzão...

— Ah, é? Pois da próxima vez eu não separo! - Shina bufou. - Mas será possível que vocês não vão esquecer isso?

— Mas eu não fiz nada!... Eles é que ficam perturbando... a ordem do treino das meninas!... - Era engraçado um dos típicos arroubos de Milo com ele ali, deitado, arrastando as sílabas sem sequer conseguir manter a pose de soldado perfeito. - Eles deram pra... dizer que as meninas estavam secando minha bunda!... Olha só que absurdo...

Mas elas estavam, Shina pensou enquanto apertava os lábios. Elas estavam te secando inteiro e você sabe disso.

Não queria se sentir irritada por isso e não tinha nada a ver com o que quer que Milo fizesse de sua vida, mas isso - ele se empenhar tanto em lustrar o seu ego bem diante do seu nariz- a estava tirando do sério.

E não, não era ciúme. É porque era o cúmulo do desplante ele se fazer de doido e ir lá toda santa tarde ‘inspecionar os treinos’ daquelas adolescentes como se não soubesse de nada, como se não estivesse percebendo o quanto ele as afetava.

Só que agora, Shina pensou, esse desplante teria um preço.

— Mas Milo - Ela aproximou seu rosto do dele e disse numa voz melodiosa, chamando a atenção dele para si com um toque suave no ombro. - Você acha que elas não te secam nem um pouquinho?...

Milo piscou os olhos azuis, absorvendo a pergunta.

— Você sabe que elas ficam te olhando… - Shina assentiu, aplicando um pouco mais de persuasão. - Não sabe?

Ele deixou escapar um sorrisinho ela definiria facilmente como maroto— se não se tratasse ali de Milo de Escorpião e sua legendária alergia à malandragem.  

— É por isso que você está sempre por lá… Pra ser paquerado por um bando de molecas. - Ela disse, satisfeita por ele ter mordido sua isca. -  Elas te interessam, Milo?

— Não, claro que não… - Ele soltou um sussurro que ela só ouviu por estar com o rosto tão próximo, e ladeou a cabeça em negativa.

— Então, Milo, conta pra mim… Por que é que você vai lá se mostrar pra elas, hm?

— Eu… - Outro sorrisinho, e ele abaixou ainda mais a voz como se fosse lhe contar um segredo. - ...Eu queria que você visse elas me paquerando, sabe…

— O quê?  -  Ela se afastou de golpe, calor de suas bochechas denunciavam o quão vermelhas elas deviam estar. - O que foi que você disse?

— Eu… - Milo franziu as sobrancelhas, talvez estranhando a sua mudança de postura. - Eu… Eu sei, isso é errado, eu… Me desculpe…?

Aquela irritação de antes agora virava uma raiva que lhe subia pelo peito, suas mãos mais geladas que antes.

Era isso o que ele queria? Usar as meninas para jogar com ela e lustrar seu ego?

— Por que, Milo - Ela disse, a voz baixa porém dura. - Você queria que eu te visse sendo paquerado por elas?

Milo piscou lentamente, lutando contra a droga para formular uma resposta.

— Responda - Sua voz, porém, não lhe deixava espaço para evasivas. Ele não tinha escolha a não ser falar, e ele ia falar.

— Você gosta… do Seiya… - Ele ainda hesitava em responder. - Eu queria... que você visse que… que… eu…

— Continua, Milo. - Ela tinha aproximado seu rosto novamente, sua mão segurando-lhe o queixo para que ele não desviasse os olhos dela. - Continua. Você queria que eu visse que você o quê?

— Eu… Eu não devia dizer isso… - Ele desfocou os olhos, e ela via o quanto ele lutava para se manter calado. - Desculpe, eu… Não devia dizer isso, eu… eu não quero falar disso… Shina, eu não  quero…

— O que você quer é brincar comigo, não é? - Ela continuava o pressionando. - Por que eu gosto do Seiya? Por que você não se conforma que eu não seja doida por você feito aquelas molecas?

— Brincar?... Não… eu… não quero brincar, eu nunca brinquei com isso… eu… Eu não quero falar disso, Shina, eu…

— Nunca brincou. - Shina respondeu, um tantinho de ironia na sua voz apesar de que Milo não estava em condições de captá-la. - E agora, Milo, você quer brincar?

Ele piscou os olhos azuis com pupilas enormes, o dedo indicador dela passou pelos lábios entreabertos dele.

— Você quer brincar comigo agora, Milo?

Ela se debruçou sobre ele, a mão dele se apoiou desajeitadamente no braço que a apoiava no colchão. Sua outra mão o segurava pela nuca, as unhas roçando delicadamente em sua pele.

Ele queria brincar com fogo.

Ele merecia se queimar.

Tocou os lábios dele com os seus, aqueles que ele mantinha escondido de todos pela expressão sempre dura em seu rosto. Foi só um toque, a boca dele era macia. Ele fechou os olhos, não resistiu quando ela aprofundou o beijo. Os olhos dela se fecharam quando sentiu a língua dele com a sua, lentamente lhe imitando os movimentos; ele beijava bem, muito bem, apesar do torpor nas suas reações. Seu corpo pressionou o dele na cama, o cheiro dele era bom, a garganta dele vibrou de leve em sua mão por um gemido abafado. Ela continuou o beijo, ele era gostoso de beijar, e ela ia mostrar para ele bem direitinho com quem é que ele estava brincando.

Ele ia ver que ela não era uma menina boba e inexperiente como aquelas pivetas pra quem ele adorava se mostrar.

Quando se deu por satisfeita, afastou o rosto com um sorriso vitorioso nos lábios, a mão firme em seu pescoço. Olhou de esguelha para a virilha dele e constatou, um tanto orgulhosa, que mesmo como ele estava ele tinha gostado. Ótimo, que ele tenha aproveitado, porque é bom que ele tenha o gostinho da sua própria brincadeira.

— Gostou, Milo? Dá pra ver que sim… - Foi até o ouvido dele e sussurrou melodiosamente, seus lábios roçando no lóbulo da orelha dele. - Então, agora você entendeu quem brinca com quem?

— Você gosta do Seiya… - Ele balbuciou quase que sem som. - Não de mim, não… não faz isso comigo, eu...

— Mas não era você quem queria brincar? Não era pra isso que você ia lá se exibir pras meninotas que eu treino?

— Eu só queria que... você olhasse pra mim que nem... pra ele… só isso… eu não… quero mais falar, não me faz falar, por favor…

— Como assim? - Ela meneou a cabeça, e a sua hesitação lhe deu tempo o suficiente para ela pensar.

De um golpe, lhe veio a imagem dele nos seus braços, desfalecido por uma bebedeira randômica que realmente não lhe era característica. Depois a imagem dele olhando para ela com aqueles olhos azuis e tristes numa sala de cinema. Depois ele se jogando em sua direção para levar os dardos de Teófanes por ela. E então ele aparecia, não o Escorpião Dourado, a criatura forte, orgulhosa e infalível que tanto irritava a todo mundo; mas sim ele.

Aquele Milo que só ela via.

Milo também tinha uma máscara, e ela viu através dela.

Se ele fosse uma amazona, ele teria que matá-la; essa era a Lei, Milo era tão afeito às leis. Mas Milo não a puniu por sua desonra; ele nunca o faria e ela sabia o porquê.

Ela se levantou da cama como se o contato de Milo lhe desse um choque. Seu peito, antes com a sensação quente do prazer do beijo, agora tinha um buraco que parecia que a engoliria inteira.

Ela amou Seiya porque ele a viu em seus momentos mais frágeis e ainda assim lhe tratou com gentileza. Ele viu além da máscara de amazona guerreira, líder das amazonas de prata, capaz de quebrar pedras com os próprios punhos e destroçar inimigos com a força de seu cosmo; a máscara moldada através de sangue, suor e dedicação absoluta.

Mas quando ela se mostrou a Seiya, quando ele viu através da máscara, ele lhe tratou com respeito. Mesmo que não a amasse, ele a tratou com respeito.

E você, Shina, o que foi que você fez?

O que foi que você fez???

— Milo - A voz dela mal saía, presa no bolo que se formava em sua garganta. - Milo, eu…  

— Vai embora… - Ele mantinha os olhos fechados, a voz baixa e arrastada. - Por favor, vai embora…

— Você não pode ficar sozinho… - Ela respondeu, mas não tinha nem a coragem de insistir. Não depois do que ela tinha feito. - Eu… eu vou ligar pro Camus.

— Não, o Camus não!… - Milo tentou balançar a cabeça. - Eu não quero ver o Camus… Me largou lá sozinho pra ser preso… com você, e olha que ele sabe… Ele sabe que eu… Eu... quero ficar sozinho, por favor… Eu quero que você vai, Shina, vai embora…

— Eu vou. - Shina disse, firmando a voz como podia. - Eu vou, Milo. Eu já estou indo.

Ela saiu do quarto, cabeça baixa, tremendo como se tivesse sido escorraçada dali. Inútil o esforço de se manter composta, de não deixar a voz tremer pelo choro que ela segurava, Milo não estava em condições de regozijar-se em ver seu orgulho escorrendo pelo ralo.

Foi até o telefone que ficava na antessala da área privativa da oitava casa e discou o número de Leão, sabia de cabeça porque às vezes tinha que encontrar Marin por lá. Quando Aiolia (graças aos Deuses) atendeu, modulou a voz para que ele não percebesse nada. Não entrou em muitos detalhes, embora (obviamente) Aiolia quisesse saber por que diabos ela estava ali todas as vezes em que Escorpião se metia em coisas assim. Ele chegaria em poucos minutos, ele disse, e ela olhou para Milo pela porta.

Ele mantinha os olhos fechados, a respiração um pouco mais ruidosa do que o normal. Ele tem que ficar acordado, mas se ficasse acordado ele diria a Aiolia o que aconteceu? Ele não podia se envergonhar mais, o que ela fizera a ele já era vergonha o suficiente, ela sabia, ela era uma amazona.

Ela conhecia a lei da Máscara que cobria o verdadeiro rosto de um guerreiro.

Aiolia chegou, ‘valeu, tchau’, foi o que ela disse, e quando ela passou por Libra já corria em disparada para sua casa.

OOO

O telefone da casa da Amazona de Vampiro tocava insistentemente a ponto de fazê-la sair pingando de dentro do box do banheiro para atender logo essa porcaria. Quase onze horas da noite de Sábado, uma festa bacana em Atenas (pra qual ela já estava atrasada, pra variar) e ela não podia nem sequer lavar os cabelos em paz?

Atendeu quase com um berro, esperava que sua voz traísse o incômodo que sentia. Mas o que ouviu do outro lado da linha mudou todos os seus planos.

A voz baixa e trêmula de Shina lhe dizia com cem por cento de certeza que a amiga estava em apuros.

Desligou o telefone e se preparou para chegar na casa da melhor amiga em menos de cinco minutos.

E não era para menos. Entrou na casa para encontrar a amazona de Cobra com olhos empapuçados, falando desordenadamente sobre um maço de cigarros com baseados dentro, uma briga onde foi levada à delegacia pelo Inspetor Teófanes e sobre como o Inspetor pegou uma espingarda de zoológico para atirar dardos com soro da verdade em Milo de Escorpião.

A história toda era bem difícil de acreditar e ela só não estava questionando porque, bem, esse era o Santuário de Atena; mas na parte onde Saga pegava Milo para levá-lo embora depois de ter dado um Satã Imperial em Teófanes (sério isso? bendito seja Zeus no Olimpo!!!) Shina parava porque sua voz tremia tanto pelos soluços que ela tentava segurar que ficava bem difícil entender o que amiga queria dizer.

— Shina, calma, respira. - Ela a segurava pelos ombros, meio que sem saber o que fazer porque não entendia o que estava acontecendo. - O que o Milo te fez?

Foi ela dizer isso e a amiga desatou a chorar. Chorar, mesmo, como ela não a via chorar em, sei lá, uns bons anos.

Qualquer um que fizesse mal a seus entes queridos podia contar com uma boa surra; mas se alguém fazia Shina de Cobra chorar feito uma menininha de cinco anos de idade que perde o cachorro no meio da mudança, é porque estava merecendo comer capim pela raiz.

Levantou-se disposta a espetar a cabeça de Milo na parede de Máscara da Morte (de quem ela não gostava nem um pouco e sim ela tinha seus motivos), mas Shina a segurou quase implorando para que ela ficasse, dizendo que ela não estava entendendo nada.

— Ele estava dopado, Geist, tomou três dardos de soro da verdade, o Saga queria largar ele sozinho…

— Aí você ficou lá de novo pra pajear o Milo? - Ela assentiu, os lábios tremendo enquanto ela tentava respirar. - E aí?

Porque sinceramente ela não estava entendendo a parte onde Milo de Escorpião, dopado em uma cama vendo elefantinhos cor-de-rosa, poderia tirar Shina do prumo desse jeito.

Então que, entre fungadas e soluços, Shina começou a lhe contar sobre como ela, para manter Milo acordado, entabulou uma conversa com uma pessoa sob efeitos do Soro da Verdade - ou seja lá o que diabos Teófanes tenha colocado nos dardos. Só que, conversa vai, conversa vem, Shina fez exatamente o que Geist esperava que ela fizesse - apertou o Milo até ele falar a respeito das saintias que o tietavam, e que tanto tiravam ela do sério.

E Milo fez exatamente o que se espera de uma pessoa dopada com soro da verdade: Falou a real na lata.

Sim, porque só a Shina que não percebia que ele ia lá se mostrar pras Bichetes porque queria fazer ciúmes pra ela.

Aliás, claro que a Shina ficou putíssima. Mas não ia falar para a amiga que ela tinha ficado puta não porque ‘Milo quisesse brincar com ela’, como ela estava dizendo, mas porque ela realmente estava se mordendo de ciúmes, como inclusive ela já tinha dito antes e ouvido poucas e boas dessa criatura teimosa.  E sinceramente ela achava ótimo que Shina se mordesse por Milo, porque queria mais que ela largasse de mão do Pégaso e Milo era um prospecto muito melhor.

— Ei, ei, ei, espera. - Cortou subitamente o semi monólogo de Shina porque algo lhe chamou a atenção. - Ele te disse isso e aí você perguntou pra ele se ele queria brincar com você?

Os olhos de Shina começaram a lacrimejar de novo. E ela, que até agora vinha falando quase que numa torrente ininterrupta, ficou calada.

— Shina - Geist não estava gostando muito do rumo da conversa, porque Shina puta da vida com um Milo falador de verdades prostrado numa cama, sem defesa, não ia dar em boa coisa. - O que foi que aconteceu?

— Eu… Fiquei insistindo pra ele me dizer o porquê, por que ele queria que eu visse ele com as meninas, se ele queria brincar comigo. Ele foi ficando evasivo, evasivo…

Claro que ele foi ficando evasivo, e isso deve ter feito Shina apertá-lo ainda mais - e no estado em que estava Milo não aguentaria muito tempo.

— E aí?

— Eu fiquei tão puta que… - Ela sussurrou, cabeça baixa e voz trêmula - Eu disse pra ele que, se era brincar comigo que ele queria, então a gente ia brincar. E aí eu beijei ele.  

Puta merda.

— Eu peguei ele pelo rosto e beijei ele por uns cinco minutos. Eu queria dar uma lição nele, mostrar para ele quem brinca com quem, e… - Ela engoliu em seco. - Porque eu não sou mulher de brincadeira, entende? E eu achei na hora que ele estava querendo jogar comigo pra parecer o fodão pras meninas…

Sim, Shina não era de se prestar a esse papel, só que o Milo também não era.

E a Shina devia saber disso.

— Shina - Geist disse depois de um período de silêncio entre as duas. - Você entendeu que ele meio que deixou claro que gosta de você, certo?

Shina continuou calada, olhando para as mãos crispadas.

Talvez agora ela estivesse entendendo algo que Geist suspeitava há muito tempo - que ela não era, de jeito nenhum, indiferente ao Milo. Muito pelo contrário: Se ela superasse o Seiya Perfeito que ela criou e que não existia em nenhum outro lugar do mundo a não ser na cabeça dela, seria perfeitamente possível - esperado, até - que ela se interessasse por Milo. E mesmo com o Seiya Perfeito ocupando as casinhas românticas do seu coração, Geist também sabia que Milo atraía a sua amiga o suficiente para que eles dois alimentassem um dos casos de tensão sexual mais icônicos do Santuário de Atena.

O problema, senhoras e senhores, é que, arrancando o Milo de seu safe space e beijando-o para ‘mostrar quem brinca com quem’, Shina tinha feito uma cagada colossal.

— Ele disse… depois… que queria que eu olhasse pra ele como eu olhava pro Seiya.  - Ela disse num fio de voz. - Ele me pedia pra ir embora, ele implorou, na verdade, pediu por favor pra eu não fazer ele falar… E eu...

Puta. Merda.

Geist fechou os olhos, respirando fundo.

Cagada colossal era apelido.

— Eu fui um monstro… - Shina segurou a cabeça com as duas mãos, enredando os dedos nos cabelos. - O que eu fiz com ele… Ele também usava uma máscara. Não física como a nossa, mas usava. Eu arranquei ela dele, eu quis usar isso pra magoar… Você tá me entendendo?

Claro que sim, afinal quase todo mundo se esconde um pouco pra evitar se machucar. Só que as máscaras de uns são mais pesadas e densas do que de outros, e no caso de Milo isso era especialmente verdade. De Shina, então, nem se fala; e não é só uma questão da Lei Ancestral da Amazonas. Porque se um achasse que todas as amazonas levavam as leis ancestrais assim tão a ferro e fogo quanto Shina, estaria redondamente enganado.

A imensa maioria das amazonas cagavam e andavam para a regra, mesmo as mais certinhas como Marin de Águia.

Mas Shina estava certa. Milo, mesmo que sem querer, acabou se expondo para ela - e ele é o tipo de pessoa que detesta se expor. Ainda mais para ser feito de ridículo; se tinha uma coisa que sobra no bicho é orgulho. Em condições normais Shina não faria isso, vá, mas agora…

Agora nada vai tirar da cabeça do Milo que ela faria.

— Eu vou falar com ele… - Shina assoava o nariz num lencinho de papel. - Assim que a poeira sentar, vou falar com ele. Ele precisa saber que eu não sou esse tipo de gente, eu jamais faria com ele uma coisa dessas… Eu não sei porque eu fiz isso, eu não sei o que me aconteceu naquela hora, eu…

— Sabe sim, Shina. - Geist a cortou. - Aconteceu que você tava putíssima porque na real estava morta de ciúmes mesmo. De um bando de molecas. Eu te disse isso uma vez e você me chamou de doida, quase me botou pra fora da sua casa…

— Eu quase te botei pra fora porque isso é uma doidice! - Shina protestou, mesmo que com a voz chorosa. - Por que é que eu teria ciúme dele?

— Shina. Chega. - Geist interrompeu a amiga. - Olha só, negação não vai adiantar agora.

— Eu não tô negando nada! - Ela crispou as mãos. - Geist, eu quero que você me ajude, não que você venha falar besteira na minha cabeça!

— Bom, é isso que eu tô tentando fazer…

— Não estou vendo como. - Ela limpou o nariz no lencinho, torcendo a boca.

— Ah, é? - Gisty cruzou os braços. - Então, Shina, me responde: Por que é que diabos você fez isso? Vai falar pra mim que foi birrinha porque ele tava se fazendo de doido pra cima de você, se mostrando pra um bando de adolescentes que paqueram com ele?

Shina não respondeu, olhando para o lencinho crispando em suas mãos.

— O Milo mexe com você. Isso nem é uma pergunta, é um fato. - Geist continuou. - O que eu te pergunto é se você ainda acha que eu estou errada.

— Está, eu…

A negativa não era surpresa nenhuma.

Era surpresa, porém, a hesitação com que a amiga falava algo que antes ela bradava a plenos pulmões.

— Shina… Na boa, eu sempre achei o Milo um cara legal. Assim, por baixo de toda aquela pose, aquela coisa de ‘soldado modelo das tropas’... Ele é um cara íntegro, tem caráter, isso é bem mais importante do que ser bonito ou bancar o fodão. Não é como uns e outros aí que… Bom, enfim, ele é um cara bacana. E é um cara possível, não é uma construção da sua cabeça feito o Seiya que você acha que ama…

Shina tentou falar, ela levantou a mão para que ficasse quieta e a esperasse terminar.

Não, porque se alguém nessa história toda tivesse tomado o tempo de perguntá-la a respeito da suas opiniões, certeza que agora ninguém estaria vivendo esse enrosco todo.

— ...Então que, Shina, vamos pelo amor dos Deuses passar da fase de ‘eu não sinto nada pelo Milo’, até porque, né, amiga, cinco minutos de beijo e o cara tava largado numa cama.

Shina arregalou os olhos, e por um momento Geist acreditou que sim, ela ia finalmente ver a luz.

— ...Eu não sinto… isso pelo Milo, Geist. Eu… não sinto por ele o que eu sinto pelo Seiya.

— Claro que não. - Geist a cortou. - Você idealiza o Seiya. Ninguém tem como competir com uma ilusão de perfeição projetada em outra pessoa.

— Mesmo assim, eu… - Shina engoliu em seco. - Mas nem que eu sentisse. Se ele se lembrar do que aconteceu ele não vai me perdoar nunca. E vamos ser sinceras… A chance de ele não se lembrar de nada é muito pequena.

Geist quase abriu a boca para falar que ‘gente, é só um beijo’; mas sabia - vida triste essa de amiga de gente dramática  - que se Milo se lembrasse do que aconteceu o drama seria tão grande quanto ou maior. E sobre o que sabia sobre Soros da Verdade (e sabia um pouco mais do que a média), amnésia não costumava estar na lista dos sintomas mais comuns.

É.  Sua amiga podia ser uma tonta (e toda a querela do Seiya estava aí pra provar), mas quando ela estava inspirada ela fazia leituras bem decentes sobre o risco de uma situação.

Shina estava seriamente arriscada a nunca mais ver a cara do Escorpião. E se for esse o caso… Para o bem dela, melhor que seu mantra de que ‘não sente nada pelo Milo’ passe a funcionar de verdade.

OOO

Continua


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Notas finais do capítulo

Em breve teremos novidades via Human Being Productions!

Vem aí...



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