Admirável Novo Mundo escrita por Joana Guerra


Capítulo 14
Vi o rosto de Eurydice das neblinas




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A costureira terminava de colocar na cabeça de Anna o véu comprido que ocultava parcialmente o vestido azul bordado a ouro, um presente dos príncipes herdeiros.

A encomenda tinha sido supervisionada diretamente por Maria Leopoldina, do primeiro fio ao último botão.

Como a boneca de porcelana em tamanho real que a antiga arquiduquesa tinha tido em criança, Anna tinha levantado os braços e deixado que a vestissem. A nudez coberta com a roupa íntima de seda tinha sido revestida pela combinação de algodão puro e, depois, pelo pesado vestido de brocado.

A inglesa permitia que lhe aplicassem uma armadura de tecidos ricos, mas foi sem entusiamo que ela levantou os pés para que lhe colocassem as meias de lã até ao joelho e os sapatos forrados por um sapateiro austríaco.

A alegria pertencia toda à madrinha do enlace. Parecia que a noiva era Leopoldina. A princesa tinha usurpado a responsabilidade da escolha de cada pormenor associado à cerimónia.

A sua dama de companhia falava seis idiomas, mas não teve que recorrer a nenhum dos seus conhecimentos linguísticos para entender que, através do planejamento do casamento entre Anna e Johnson, Leopoldina exorcizava demónios do seu passado.

Sua Alteza Real não tinha podido escolher nenhum ponto do seu casamento com Pedro. Para a inglesa, seria uma distração bem-aventurada que a princesa assumisse a escolha das flores de uma receção que ela não queria dar ou do vinho que seria servido para afogar mágoas.

Maria Leopoldina tinha ido ainda mais longe e até mesmo batido o pé para que a igreja que ela tinha selecionado permitisse uma cerimónia entre não-católicos. Se Anna tinha colocado o seu casamento nas suas mãos, a princesa iria garantir que ele seria perfeito.

Anna Millman nunca tinha sido uma noiva feliz. Esse foi o único pormenor que escapou a Leopoldina.

Satisfeita ao ver o resultado dos seus desenhos traduzido para a vida real, a princesa mandou sair a costureira e as suas ajudantes, depois de as recompensar com uma gorjeta em ouro.

Miss Millman parecia decidida a assumir o desafio de se tornar num manequim, enquanto Maria Leopoldina examinava a apresentação do seu trabalho. Se era verdade que um dia um anjo caiu do céu, ele não teria causado tanto impacto quanto Anna naquele momento.

A esposa de Pedro sorriu de forma ternurenta, compondo o véu de renda em torno do rosto da sua amiga. Ele só seria descido na porta da igreja, mas já não faltava muito tempo para isso acontecer:

Meine Liebe, você ainda não me disse o que queria como presente de casamento.

Anna se sentiu um pouco confortada pelo sotaque que nunca deixaria de ser levemente teutónico. Ela pegou nas mãos da sua amiga, sabendo que o seu único verdadeiro desejo não poderia ser concedido pela fada-madrinha Real:

— O melhor presente que posso receber é o de que a minha Princesa seja um bom exemplo para as suas filhas e motivo de orgulho para o povo brasileiro.

A noiva foi surpreendida pelas lágrimas de desespero que brotaram dos olhos de Leopoldina. Aquele era o choro engolido durante anos e que ela não podia deixar que os outros vissem.

A austríaca tinha sido educada para colocar os deveres de princesa acima de tudo, mas, ainda que Anna a tivesse ajudado a não se deixar derrubar pelas vicissitudes da sua vida, a crise contínua que se abatia em cima dela e da sua família parecia uma maldição, peso insuportável de comportar. 

A inglesa sentiu os braços da princesa em torno dela, amachucando o vestido imaculado num abraço que procurava segurança. Ela soube que, inadvertidamente, tinha acertado num ponto nevrálgico quando Leopoldina lhe sussurrou ao ouvido, admitindo pela primeira vez em voz alta o que a angustiava:

— Desde que deixei a casa do meu pai, eu só conheci a infelicidade, mas a minha Anna vai ser feliz. A minha Anna tem que ser feliz.

Miss Millman teve pena de lhe revelar a verdade. Maria Leopoldina merecia um resquício de esperança, mesmo que essa fosse uma mentira no coração de Anna.

Ela virou e obrigou a austríaca a encarar o espelho de corpo inteiro na sua frente. Por detrás dela, a inglesa encostou o queixo no ombro da Princesa e a abraçou pela cintura, focando na imagem invertida das duas:

— Há pouco a Prinzessin me perguntou qual o presente que eu desejava.

Anna penteava com os dedos o cabelo da princesa, o mesmo gesto que tranquilizava Maria da Glória quando a criança caía e se magoava:

— Talvez o motivo para o destino ter roubado a sua liberdade seja porque ele a queira encarregar da libertação de muitos outros. Lute. Nunca desista de lutar pela liberdade do seu povo. É nas suas mãos que será colocada a felicidade de gente que nem conhece.

Ambas se recordavam das noites passadas atrás de portas fechadas para o mundo, das muitas vezes que Anna fazia companhia a Leopoldina nas madrugadas em que Pedro desaparecia com outra mulher passageira.

Evitando falar do presente ausente na sala, sentadas em cima de almofadões colocados no chão enquanto dividiam uma garrafa de vinho e citações de filósofos contemporâneos, elas faziam planos para o futuro de um novo mundo.

Maria Leopoldina tinha as vantagens do saber teórico adquirido com os maiores dos mestres europeus e, a isso, Anna acrescentava o conhecimento da realidade do Brasil que Tiago lhe tinha mostrado.

Fazendo o exercício mental de contemplar a possibilidade de construir uma nova sociedade desde os seus alicerces, as duas amigas idealizavam um país que superasse todos os outros, que aceitasse e soubesse dar valor às suas diferenças, um Brasil em que cor da pele, género e estatuto social fossem conceitos e não divisores.

Consumindo a grande reserva de tinto madeirense, elas esboçavam decretos fraternos que atendiam às necessidades de cada cidadão, leis pensadas na igualdade de todos, uma Constituição assente na liberdade plena.

Não raras vezes, a Princesa parecia despertar da concentração do trabalho, perguntando à sua dama de companhia:

— Foi um sonho bom. Não foi, Anna?

Como um hábito, a inglesa lhe devolvia uma resposta envolta num sorriso enigmático:

— Talvez ainda o venha a ser, Prinzessin.

No momento em que Anna Millman já deveria estar a caminho da igreja, Maria Leopoldina parecia esquecida dos meses de preparação para o casamento:

 — O meu Pedro não está pronto para o que vai acontecer se ele declarar a Independência. Como vai conciliar cabeça e coração?

O raciocínio do Príncipe Regente aparentava estar bem intacto naquele mês de maio de 1822.

No mês anterior, a forte e positiva receção popular durante a viagem a Minas Gerais o tinha feito crer que, se ele tomasse a decisão de fazer do Brasil um país independente, teria todos os brasileiros lutando ao seu lado.

 Pedro arriscava e tinha chamado sobre si a responsabilidade da validação de todos os decretos das Cortes, o que se traduzia em conferir plena soberania à antiga colónia. Lisboa bufava em desacordo.

Por falta de reflexão, na data em que se festejava o aniversário de Dom João VI, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro pediu ao Príncipe Regente que aceitasse para si e para seus descendentes o título de Defensor Perpétuo do Brasil.

Mais uma vez, Pedro de Alcântara e Bragança se via encurralado no meio da escolha forçada entre o país que sentia seu para governar e a família longínqua.

Prestes a se entregar para pagar uma dívida, Anna se despediu da esposa do príncipe com o melhor conselho que ainda poderia dar:

— É para isso que o Príncipe precisa da minha Prinzessin. Só a minha Maria Leopoldina o poderá guiar.

A inglesa tinha noção da escala de esforço que seria necessário efetuar se o casal Bragança quisesse levar o país a bom porto. Se, politicamente, até o Brasil estava fraturado entre norte e sul e retalhado entre muitas fações nos espaços entre pontos cardeais, como encontrar uma unidade?

Charles Johnson procurava também a reconstrução da sua equipa. As visitas amiúde à noiva acobertavam os planos que ele vinha tecendo. No topo da sua perigosidade, o espião lutava pela própria sobrevivência.

No dia da última prova do vestido de noiva, enquanto a costureira saía por momentos para buscar alfinetes, Anna se mantinha colocada no pedestal circular, permitindo que Charles avaliasse bem a peça de arte rara adquirida:

— Que linda é a Senhora Anna Johnson…

De expressão imperturbável, ela o interrompeu de imediato:

— Ainda sou Anna Millman.

Condescendente, ele sorriu em resposta:

— Por pouco tempo, minha querida.

Johnson estava divertido. Quando tudo fazia supor que ele e Anna seriam assassinados durante o sono, o extremo da situação tinha originado uma última oportunidade:

— O Conde está desesperado e precisa da nossa ajuda. Já não se trata da questão de saber se Pedro vai declarar a independência, mas sim quando o idiota o vai fazer.

Ela compôs a manga finalizada, mas o excesso de força com que a puxou fez abrir as costuras. Johnson não o notou:

— Foi uma sorte que o pateta continuasse gastando todo o seu tempo com as suas amantes linguarudas. Pode me agradecer, minha querida, pois foi assim que tive acesso às informações que nos fizeram ganhar tempo até que o Conde tivesse a certeza de que conseguiria substituir Pedro por alguém mais adequado.

Ana picou o dedo ao mexer numa prega incompleta da saia do vestido, presa por alfinetes precários. Ao ver a gota de sangue que lhe nascia na pele, a espia contrariada viu o destino com que o futuro marido lhe acenava.

O Conde exigia a morte de Pedro. A jeito para a concretizar, o casal Johnson serviria de carrasco.

 Charles tirou de um bolso um lenço com o seu monograma bordado e o usou para limpar a mão da noiva, comentando com o ímpeto de um viciado no jogo a quem é entregue uma grande soma em dinheiro e que, por isso, o aposta todo na roleta russa:

— Nunca planejei passar a nossa lua-de-mel num caixão, mas essa é a nossa última chance. É o tudo ou nada. Quando a ordem chegar, os seus dotes serão muito úteis, Milady.

Certo da vitória que se aproximava, o inglês ajeitou a gravata janota, se fingindo de sério e honesto, num tom de deboche bem-disposto:  

— Prometo que continuarei sendo, pelo todo resto da breve vida dele, o melhor amigo e servidor que o nosso Príncipe Regente já teve.

Anna finalmente abriu a boca, encarando o noivo com um semblante torturado:

— Eu sei. Conheço bem as suas duas caras, Charles.

A inglesa piscou os olhos e deixou de estar na sala adjacente ao seu quarto de solteira. Pedro esperava que ela saísse da carruagem parada na praça frente à igreja e esticou o braço para que ela se apoiasse nele.

Mesmo sendo um casamento odioso, Miss Millman sentiu falta da presença do pai. Talvez isso tivesse tornado tudo mais tolerável.

Ela arrastou o vestido pela calçada, achando curiosa a presença de sinais de obras num prédio contíguo. Pedro pensou o mesmo. Que coisa estranha e pouco estética, todos aqueles toldos tapando toda a lateral de um edifício na praça central. Na primeira ocasião propícia, mandaria averiguar as circunstâncias da remodelação.

Debaixo de um sol quente, Anna tremia de frio e o véu colocado na sua face oscilava levemente com a respiração descontrolada, escondendo a angústia de quem efetuava uma ação contrária à pretendida.

O Príncipe percebeu e, na porta da igreja, recorreu ao charme de um sorriso e de uma proposta indecente:

— Se quiser, ainda dá tempo para fugir comigo.

Ela olhou para ele e engoliu o reflexo de uma gargalhada.

— Estou falando sério, Anna. A gente foge para uma ilha do Caribe e abre uma taberna junto à praia.

  Nunca seria realmente possível perceber quando Pedro falava com seriedade. Ele seria para sempre refém de um insensato coração, capaz de promessas impensadas.

Apertando a mão do príncipe, ela agradeceu a boa intenção:

— É uma oferta muito generosa, mas, atendendo à sede de Sua Alteza Real, creio que abriríamos falência em menos de um mês.

Pedro puxou a mão britânica em direção aos seus lábios e a beijou profundamente:

— Pronta?

Anna nunca estaria preparada, mas se tratava de um sacrifício necessário.

A música começou a tocar, enquanto eles avançavam para o altar. Debaixo da neblina do véu, ela via os contornos de conhecidos e estranhos, as figuras das testemunhas de um matrimónio forçado.

Tudo parecia fora de lugar naquela hierarquia igualitariamente sentada, desde os convidados aristocratas de muitas nacionalidades que nada lhe diziam até aos monges franciscanos dispersos pela igreja. Não bastasse praticarem o credo errado para aquela cerimónia, Anna nem lhes conseguia ver a cara escondida pelos capuzes.

Ela caminhava com as costas muito direitas, puxando o peso do vestido, incapaz de virar o pescoço, ou de parar para se voltar na direção contrária.

Segundo a mitologia grega, Orfeu tinha invadido o Inferno para recuperar a sua esposa Eurídice, disposto a pagar o preço de não a poder ver até regressarem ao mundo dos vivos, mas Anna tinha o receio de se voltar para trás e ver a imagem do seu Tiago se esfumando em nada.

Sentada num cadeirão rubro junto ao altar, Maria Leopoldina sorria com a alegria de uma criança, e no seu colo, Maria da Glória acenava com o braço rechonchudo de querubim espalhando a sua inocência.

Nada ansioso, Charles a aguardava junto ao padre. A farda militar carregada de medalhas atribuídas por atos valorosos, várias delas concedidas por Pedro, reluzia pelo excesso de polimento.

O espião escondido estava orgulhoso do momento de ser o centro das atenções.

O padrinho relutou em entregar a noiva, mas, debaixo do teto de uma igreja, a lei de um Príncipe ainda não estava acima da vontade divina.

Para Miss Millman, a cerimónia decorria com a falta de definição de um nevoeiro, deturpada. As palavras proferidas pareciam distorcidas, convertidas num idioma que não era nenhum dos seis que ela conhecia.

Quando Anna acordou novamente, o padre referia os votos que selariam o seu destino e pedia a concordância do casal:

— Charles Thomas Johnson, aceita Anna Christine Millman como a sua legítima esposa?

Antes que ele tivesse oportunidade de responder, uma outra voz masculina se fez ouvir, protesto sonoro que ecoou na boa acústica do edifício:  

— Ele até pode aceitar, mas eu não aceito.

A inglesa lançou para trás o véu, ao ver saindo de debaixo de um dos bons hábitos Ferrão e a sua espada polida.

A sua expressão de surpresa desejada se cruzou com o olhar de estupefação de Pedro e Leopoldina.

O combinado tinha sido que Tiago nunca mais chegasse sequer perto dos limites do Rio de Janeiro.

Charles desembainhou a espada, levantando o braço para manter a noiva atrás de si. Aquela oportunidade lhe permitiria ter plateia para fingir ser o herói que não era:

— Eu te protejo, Anna.

Tiago sorriu com a certeza da verdade, olhando diretamente para a loira na hora de responder:

— Ela nunca foi sua para você a proteger.

O traidor inglês podia pensar que teria o apoio dos soldados da Guarda Real, mas eles se viram atarefados já que nenhum dos frades presentes na igreja sabia rezar.

Um a um, eles se revelaram como a tripulação do antigo Lobo do Amor, atualmente ocupados em reaver a mulher por quem o seu Capitão se tinha apaixonado.

Os músicos deixaram de ter trabalho, já que os sons das espadas se cruzando preencheram os ouvidos de quem estava no templo.

Impedido de lutar pelos guardas que o protegiam, Pedro acompanhava com o olhar atento e invejoso o desenrolar dos golpes.

Tiago Ferrão tinha a força de mil homens e o ímpeto de um amor que não o deixava desistir.

A custo, embaraçou Johnson quando o fez tombar e lhe retirou a arma. O Capitão do mar era um homem honrado também em terra. Ele não ia matar um homem desarmado, muito menos num espaço sagrado.

Desacordando o noivo da mulher amada com um soco que se fez ouvir no Peru, Tiago fez uma vénia profunda diante da Família Real e fez tenção de carregar a dama de Maria Leopoldina com ele.

Ferrão aproveitava a teatralidade de um momento grandioso para lhe oferecer a mão estendida com decisão e um sorriso safado:

— Foge comigo, Anna Millman.

Ela mexeu os lábios num agradecimento que só ele soube entender.

Anna se virou na direção de Pedro e Leopoldina e levantou a mão em tom de despedida. O Regente abria e fechava a boca, sem nada entender em relação àquela obsessão por piratas, mas a Princesa finalmente entendeu tudo e, com um sorriso tímido, reciprocou o gesto.

 Com o objetivo alcançado, os homens do Marquesa trataram de fugir da cruz e desapareceram pela cidade.

Anna correu lado a lado com Tiago até à saída, mas ele parou por um momento para a envergar num espetáculo público.

Quem estava fora da igreja tinha tanto direito a usufruir da imagem daquele beijo adiado que os consumia quanto quem estava dentro.

Recuperando das fortes emoções, o padre sorriu e abençoou com um sinal discreto o casal em fuga.

Anna Millman esperava uma surpresa quanto ao meio de fuga empregue, mas ficou boquiaberta ao ver descer o toldo que tapava o enorme balão de ar quente escondido na praça.

A nada discreta tela encarnada seria visível a quilómetros de distância.

Tiago tinha dificuldade em a fazer apressar-se com tanto vestido e acabou empurrando a inglesa pelo derrière, para a fazer entrar rapidamente dentro do cesto de vime.

Enquanto se desfazia dos sacos de areia que lhe serviam de pesos e começavam a subir no ar, Ferrão recebeu um leve estalo sonoro que lhe fez despertar todos os sentidos.

— Isso foi pela idiotice de ter arriscado voltar para me buscar.

Seguindo uma lógica absurda, Anna o agarrou pelo colarinho e tomou conta de uma boca que também era sua com um beijo derretido:

— E isso também foi pela idiotice de ter arriscado voltar para me buscar…

O pirata retirava cuidadosamente os alfinetes que lhe prendiam o véu. Ao cair do último, o pedaço trabalhado e decorado com fina renda se soltou, balançando ao sabor do vento antes de cair aos pés de Charles.

Recorrendo a um clássico, Ferrão abraçou a fugitiva por trás e depositou um beijo para os invejosos de plantão no ombro da loira.

O casal de fugitivos viu a mobilização que se desenrolava em terra. Sabiam que seriam seguidos por alguém em fúria. Charles devia estar espumando pela boca, o que preocupava a espia:

— A gente tem armas?

Tiago a virou e a segurou pela cintura, encostando os corpos e enrugando a testa de forma sugestiva:

— Sei. Isso é tudo vontade de voltar a empunhar a minha pistola, Marquesa?

Atingido por uma corrente de ar, o balão estabilizou, quase andando nas nuvens. Anna olhou em volta e sorriu ao bater de novo o nariz contra o do raptor que a enlaçava. Tudo era minúsculo comparado com aquele homem.

Sério, Ferrão levantou o queixo da loira, decidido a fazer daquele um final de uma história de literatura de cordel encantado:

— Vamos prometer uma coisa: acabou essa história de altruísmo melodramático em que você decide que quer morrer por mim e vice-versa. Eu te amo. Você me ama. Está decidido. Vamos ser felizes e passar o resto das nossas longas vidas fazendo muita safadeza.

Uma oscilação traduzida numa pequena queda em altura fez tremer o cesto. Tiago colocou a cabeça de fora e espreitou, confirmando a existência de um rasgão na tela por onde se escapava o ar quente, e um rápido diagnóstico:

— Não é grave. Vai dar para aterrar tranquilamente.

Quando o cesto embateu com impacto no meio da floresta, Anna estava demasiado ocupada a tentar evitar mais ferimentos para conseguir puxar a orelha do pirata pela mentira pregada.

Naquela ocasião, tinham sido os grandes galhos a ampararem a queda por entre as árvores.

 O casal rolou pelo chão, procurando uma saída de debaixo da enorme tela desinflamada.

Enquanto massageava a protuberância do seu posterior, a inglesa esperava pelo passo seguinte do plano, mas Ferrão parecia apreciar o cenário, comentando descaradamente:

— Quer ajuda?

Ela queria o auxílio, mas para uma outra necessidade básica: a da sobrevivência.

Rindo, a loira contrapôs com uma crítica humorada à capacidade de navegação do pirata dos mares e dos ares:

— Isso é a sua ideia de aterrar tranquilamente ou perdi algo na tradução?

De mãos dadas, eles seguiram por horas pelos caminhos da floresta, se achando sós no meio da Natureza indomada.

Ferrão tinha um plano. A canoa escondida no meio de um canavial e apetrechada de remos já lá tinha sido deixada umas semanas antes, mas ainda não tinha sido engolida pela flora.

Anna avaliava a necessidade de ter que cortar parte do vestido para conseguir entrar no veículo estreito, mas foi a primeira dos dois a compreender que tinham sido encontrados.

Hassan podia servir a Charles Johnson, mas mantinha a estranha honra de bandido dos seus antepassados, o que o impedia de matar um homem pelas costas.

Sem emitir um som, o beduíno desceu do cavalo e investiu contra o pirata desprevenido.

A inglesa apanhou a espada de Ferrão pousada na margem do rio e a atirou na direção do Capitão.

Ele a recebeu no ar e ainda a tempo de a usar para aparar um golpe do assassino árabe.

Os dois eram bons espadachins, impedindo que Anna interferisse no duelo com mais do que palavras de advertência:

 — Cuidado, Tiago!

A distração do pirata resultou num corte no seu abdómen, mas ele revidou fazendo sangrar o ombro do oponente.

Com o contato físico cada vez mais presente, e os movimentos cada vez mais acelerados, Hassan deixou cair uma pistola que a inglesa imediatamente apanhou.

Ela apontou a arma, mas não conseguiu disparar. Não conseguia arriscar a vida de Ferrão.

O último embate entre os homens resultou num abraço involuntário em que se deixaram de ver as pontas das espadas.

A espia adivinhou o jato quente que se espalhou no ar e um cheiro acre que lhe entupiu as narinas.

Segurando a respiração, ela viu Tiago saindo de debaixo do corpo virado do assassino contratado por Charles.

De olhos abertos surpreendidos e cuspindo o último do seu sangue, Hassan estava fora de combate.

Ela correu para segurar o seu pirata, tocando com os dedos sobre a mancha de sangue na camisa do homem amado.

Ele sorriu em descaso com a ferida e a tranquilizou:

— Foi superficial.

Ela suspirou, pronta para sair dali antes que algo de mau lhes acontecesse.

Tiago conhecia bem o curso do rio, o que lhes permitiu navegar a canoa no meio da noite cerrada.

Para onde quer que ele a quisesse levar, Anna iria sem hesitação, mas, nas últimas horas da madrugada, ela se preocupava com a extrema improbabilidade de Ferrão se manter em silêncio por tanto tempo, como estava fazendo, se algo não estivesse terrivelmente errado.

Ao nascer do sol, ela percebeu a real gravidade do problema.

Hassan estava morto, mas Tiago não parecia pertencer ao mundo dos vivos. A espada usada pelo beduíno para cortar o seu oponente estava envenenada.

Um tsunami de sangue fugiu da face de Anna ao verificar a seriedade do ferimento.

Com uma febre que lhe roubou os movimentos, o pirata deixou cair o remo que ficou a boiar sem destino no rio, se deixando cair no chão da canoa.

Através de um esgar de dor, Ferrão ainda raciocinava, com o último resquício de esperança depositado na loira amada:

— Você vai ter que me levar para casa, Marquesa.


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Notas finais do capítulo

Eu faço muita maldade com Ferrão ;). Como diria Lady Lu, derrière é … bunda! Eu sei que o caso de uma noiva em fuga é um clichê, mas se a oportunidade se apresenta…eu aproveito :). Creio que nem preciso deixar notas sobre a importância de Leopoldina para a história do Brasil. Ela não teve uma Anna do seu lado, mas foi das primeiras pessoas que sonharam com um Brasil melhor. Beijo para todos!



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