Herdeira da Lua escrita por Julipter, Julipter


Capítulo 34
Especial - Thiago e Flávia




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Fevereiro de 2015

 

Thiago

Eu diria que tive sorte. 

A vida é cheia de acasos. Acasos nos levam ao azar ou à sorte. E eu tive tanta sorte.

Por acaso, nasci num corpo que não era o meu. Eu sempre soube disso. Então, aos quatro anos, meus pais souberam. Me apoiaram. Me ajudaram a ter o meu corpo, que me pertencia de verdade, um corpo onde eu me sentisse em casa.

Só que a casa... Ainda estava em construção. E foi uma construção conturbada durante a minha vida escolar.

Quer dizer, por que todos haviam nascido com suas casas prontinhas? E por que raios eu era desmerecido só pelo fato de a minha ainda precisar de alguns acabamentos?

E daí que eu ainda tinha seios levemente maiores que os dos outros garotos? E daí que a minha genital não era assim tão bem formada? Nenhum deles via nada disso, nenhum deles sabia de nada disso. Tudo que eles tinham era o meu rosto. Um rosto. Um cabelo black power. Uma pele escura. Era tudo que tinham.

Mas em rostos há bocas.

E o meu rosto, segundo terceiros, tinha uma boca de menina.

O que seria uma boca de menina? Eu não sei dizer. A minha boca, aparentemente.

Não, eu não tenho problema nenhum com esse fato. Nem com o fato de ter nascido no corpo de uma menina. Afinal, tenho o meu agora. Mas as pessoas tendem a se importar com coisas sobre as quais não estou nem aí.

Acabei sendo alvo de piadinhas do tipo “vem chupar o meu pau”, o que eu achava bem engraçado, porque essa era uma péssima forma de aqueles caras provarem a própria masculinidade – já que eles viviam para prová-la –, mas isso me incomodava porque haviam tantas coisas em mim para se apontar.

Vocês não acham o meu cabelo incrível?

Olha a minha camiseta do Star Wars.

Sabe, as minhas botas são de couro de verdade.

Ei, eu tenho olhos verdes. Ninguém notou?

Porque, entre tantas coisas, as pessoas precisavam apontar algo do qual eu não gostava?

Eu não queria ter uma boca de menina. Eu não era uma menina.

Mas eu sabia que não era uma menina, então eu realmente não me importava. Não me importava de não ter uma dupla nos trabalhos, de ficar sozinho no recreio ou de ser alvo de piadinhas.

Eu não estava nem aí.

Mas como já disse, as pessoas tendem a se importar com coisas sobre as quais eu não estou nem aí.

E ás vezes, bem de vez em quando, isso acontece de forma positiva.

Flávia

Eu sou gorda.

Tenho uma camiseta com esses dizeres.

Costumo usá-la sempre que vou fazer algo pela primeira vez.

Usei no meu primeiro dia de aula no Dom Pedro II. No meu primeiro dia em São Paulo. No aero porto de Curitiba (você sabia que o aero porto de Curitiba não fica em Curitiba? Eu nasci lá e fiquei sabendo a pouco tempo!). Também usei no primeiro show da Lua. Na primeira vez que transei.

Por quê?

Porque é importante que eu diga. É importante que as pessoas saibam que eu sei que sou gorda. Que elas entendam que eu tenho um espelho em casa. Então, eu uso a camiseta para que ninguém precise apontar para mim e dizer o que eu já sei.

Sim, de nada por poupar os seus esforços.

Mesmo com essa minha belíssima estratégia, algumas pessoas insistem em me dizer obviedades. Como naquela vez.

—É bom ir pra fila antes que ela acabe com a comida. – Dissera um garoto de uma das mesas do refeitório, enquanto eu pegava o meu prato.

Olhei para ele. Olhei pra funcionária da escola na minha frente. Sorri.

—Eu nem como carne. É melhor deixar pra quem está passando fome. – Falei, com muita calma.

Entreguei o prato ao garoto e deixei o local sem nenhuma pressa.

Eu me importo. Eu respondo. Não aceito calada. Nem que isso me traga o rótulo da “gorda escandalosa”, porque é só mais uma coisa pra eu derrubar.

E não é só comigo que me importo.

Eu vi aquele garoto, quieto, mexendo no celular, sendo provocado por vários imbecis.

Perguntavam se ele estava falando com o namorado. Se ele tinha aprendido o truque com a Kylie Jenner. Se queria dar uma chupadinha.

Me intrometi.

—Vocês devem estar desesperados por uma chupadinha. Por que não procuram num puteiro? Por lá o pessoal tem mais experiência.

Eles me olharam de cima a baixo e deram risada.

—Muito bonita a sua namorada. – Disseram ao se afastar.

Ao menos se afastaram.

—Você conhece muitos puteiros? – O garoto perguntou a mim.

—Não, mas poderia. – Para a minha surpresa, ele riu. Murmurou um singelo “obrigado”, e eu me sentei ao seu lado.

Uma semana depois, eu já havia feito amigos. Mas em todos os intervalos, me sentava ao seu lado.

Não se aproximaram dele de novo.

Thiago

Sim, aquela garota era a minha heroína.

Sim, eu não havia percebido que eu precisava me proteger até ela fazer isso por mim.

Sim, aquele foi o momento em que eu me apaixonei por ela.

Muito antes de nos tornarmos melhores amigos.


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Notas finais do capítulo

Ainda teremos os seguintes contos, pessoas:

—Lucy e Henri
—Julia e Téo
—Adrien

Não necessariamente nessa ordem. Até mais ♥.



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