Páginas sobre a chuva escrita por Miss Houston


Capítulo 8
Cicatrizes antigas, marcas recentes




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/706656/chapter/8

— Aqui está — Maya jogou o manuscrito na mesa de Gerry, fazendo-o se sobressaltar. Não sabia o dia que a mulher tinha voltado para Nova York, já que ignorava veementemente os seus telefonemas, apenas para ressurgir como um fantasma na sua frente. — Revisei duas vezes, acho que já pode mandar para a editora.

Gerry ainda estava assustado por Maya ter conseguido cumprir o seu objetivo. Duvidou por muitas vezes que ela pudesse escrever um romance, principalmente depois de ter seu coração destruído tantas vezes. Ele a encarou, querendo desvendar o surgimento daquela inspiração imediata e encontrou sombras embaixo dos olhos escuros como se ela não dormisse a dias.

— Está tudo bem? — questionou.

Maya olhou para o seu relógio e mordeu o lábio, como se estivesse em uma batalha interna. Era óbvio que tinha alguma coisa errada, ainda que o manuscrito a sua frente mostrasse outra coisa. Por mais que tivesse acabado de escrever uma história de amor, Maya não tinha mais aquele resíduo de esperança que a acompanhou até Miami. O que quer que tivesse acontecido, fez com que ela aparentasse ser apenas uma casca.

Contudo, como uma hábil escritora, ela sorriu.

— Tudo ótimo — virou-se, indo em direção a porta. — Espero a sua ligação com e resposta da editora.

 

DOIS MESES ANTES

Anthony não pressionou Maya sobre o seu segredo durante o restante da noite. Ele preferiu aproveitar a pequena chama de entusiasmo que tinha se instalado em seu peito e usá-la para distribuir os doces para as crianças fantasiadas. Maya o ajudou, mesmo que periodicamente reclamasse sobre ter esquecido suas bolsas na cafeteria. Ela nunca dizia o motivo de tê-lo feito, apenas que tinha esquecido por ter sido distraída.

— Conseguimos salvar nossas casas do papel higiênico — Tony anunciou após entregar o último doce para uma garotinha vestida de fada. Fechou a porta e viu Maya recolhendo as vasilhas em silêncio. A tensão que saía dos poros da escritora era uma coisa quase palpável e isso fez com que o sorriso de Anthony se dissolvesse. — Está tudo bem, Maya?

Seguiu-a até a cozinha, vendo-a lavar a louça que ele empilhou ao longo dos dias. Na verdade, sua casa toda estava uma confusão. Por mais que tivesse tentado arrumar, não era o melhor na tarefa e quando percebeu toda a bagunça estava de volta.

Maya permaneceu de costas.

— Está sim. — ela respondeu, por mais que o seu tom de voz expressasse o contrário.

Tony ficou um pouco apreensivo. Será que ela estava distante por conta do que tinha mostrado no teatro? Ela tinha sentido nojo ou repulsa dele? Era um homem incompleto por mais que os inúmeros psicólogos que visitou dissessem o contrário. Como um lembrete cruel, sentiu uma pontada em seu joelho recordando-o das horas que tinha passado de pé recepcionando as crianças. Puxou uma cadeira e se sentou, aliviando-se instantaneamente.

Ficou em silêncio por alguns segundos, pensando em como seria o melhor jeito de abordá-la quanto as suas dúvidas. Estava chateado e geralmente quando estava assim preferia se afastar das pessoas antes que a raiva o dominasse. Esperou que ela terminasse de empilhar as louças e desviasse a atenção de volta para ele antes de tocar no assunto.

— Você ainda não comentou nada sobre o que te contei. — ele disse mexendo no joelho distraído, mas Maya percebeu o movimento inconsciente. — Isso te incomoda?

Maya franziu o cenho com a pergunta repentina.

— Claro que não. Por que você acha uma coisa dessas? — questionou se aproximando e puxou uma cadeira para se sentar de frente para ele. Botou a mão por cima da dele. — Anthony, a falta de um membro não faz você ser menos indivíduo do que outra pessoa. Superar essa dor te destaca, na verdade.

Ele estreitou os olhos.

— Então por que você está distante?

Maya bufou mexendo a mão como se aquilo não importasse. Estava fingindo todos os movimentos descontraídos, incluindo seu sorriso leve. Depois do tempo enfrentando a impressa, tinha aprendido como mascarar seus verdadeiros sentimentos em momentos propícios. Ainda estava parcialmente envergonhada pelo seu beijo impulsivo no teatro, mas uma parte dela estava ansiosa para que se repetisse.

— Acho que estou constrangida por aquilo que fiz no teatro. — disse usando o beijo como uma desculpa. Anthony arqueou as sobrancelhas e Maya desviou o olhar soltando um riso fraco. — Juro que não sou atirada daquele jeito.

— Não achei que fosse. — ele disse. Maya abaixou um pouco o rosto. — Se era o que queria fazer, não devia ter se sentir envergonhada. Até porque somos adultos independentes e sabemos da nossa vida.

Anthony poderia fazer um discurso de cinquenta páginas para Maya, aliviado que o problema não vinha dele. Ele queria beijá-la de novo, mas poderia retardar esse desejo até o momento que Maya se sentisse segura. Ele ainda queria saber o que a tinha alarmado na cafeteria, mas não pensava em pressioná-la. Ele, mais do que ninguém, sabia que cada pessoa tinha o seu momento para desabafar suas dores.

— Vou levá-la em casa. — ele anunciou se levantando.

Maya encarou-o alarmada.

— Tem alguma coisa errada?

— Não — garantiu. — Só está ficando tarde.

Ela assentiu, concordando e se deixou ser guiada até a porta de sua casa. Pararam na soleira, se encarando com vontades retraídas, preferindo apenas uma despedida impessoal com um aperto de mão. Porém, mesmo esse toque suave fez com que tivesse que frear as impulsividades que passaram por suas cabeças.

 

DOIS MESES DEPOIS

 

O telefone de Maya tocava e por mais que estivesse ao seu lado na cama, ela ignorava o som estridente. Sabia quem era e o porquê de ligar, contudo não sabia o que responder. Reteve a vontade de jogar o celular contra a parede como um meio de descontar a raiva que a dominava. Ficou um tempo lutando contra si mesma até ceder e olhar para a tela.

Encarando o nome de Anthony brilhando em neon.

 

DOIS MESES ANTES

 

O som do telefone convencional acordou Maya e ela se arrastou até o outro lado do quarto para que pudesse atender. Esperava que fosse Gerry, cobrando um e-mail com o manuscrito ou Lisa para saber se a amiga ainda estava viva e se não tinha se aventurado novamente na casa do vizinho. Por isso foi uma surpresa e tanto quando escutou a voz da mãe soando do outro lado da linha.

— Querida, como você está?

Sentiu um pouco de culpa por não ter ligado para a sua mãe desde que chegou, ainda com raiva do que tinha ocorrido na última visita. Sentou-se na beirada da cama, coçando o cabelo e passando os dedos pelos fios emaranhados, procurando uma forma de se manter acordada.

— Está tudo bem, mãe. E você?

Escutou sua mãe suspirando e se alarmou. Claro que aquela ligação não seria de praxe.

— Preocupada. Seu primo Mike me ligou e disse que vocês se encontraram na cidade. — ela disse e Maya sentiu seu coração se acelerando apenas com as memórias daquele momento. — Você o viu também, não é?

Maya fechou os olhos e balançou a cabeça, concordando. Por mais que não pudesse ver a reação da filha, Margareth interpretou o silêncio como uma afirmativa.

— Se você quiser voltar para casa, pode ficar por aqui. — ofereceu recebendo uma risada irônica em resposta.

— Mãe, me desculpe, mas quando fui embora prometi que nunca mais voltaria e eu sei que não cumpro todas as minhas promessas, só que essa faço questão de cumprir. — murmurou. — Você sabe que não consigo...

— Ficar no mesmo espaço que seu pai ficou, eu sei. — ela completou com a voz cansada. — Maya, escute. Seu pai só começou a beber porque não sabia como lidar com o que tinha acontecido com você.

— E por que ele te batia, hein? — berrou.

Escutou a mãe respirando fundo.

— Porque ele me culpava e de certa forma, ele estava certo.

— Não, mãe. Só tem um culpado nessa história e nós sabemos muito bem quem é. — sem conseguir se conter, levantou-se caminhando pelo quarto de um lado para o outro. — Você pode dar a desculpa que for para a bebedeira do meu pai, mas isso não muda o fato de eu ter sido a vítima. — escutou os múrmuros da mãe, mas sabia que não poderia se apegar a raiva por muito tempo antes de desabar. — Ao invés de ter enfiado a cara na bebida meu pai deveria ter feito a coisa mais consciente e denunciado. E você também.

— Maya, você não entende...

— Pare de lamentar a morte do meu pai, mãe! Se não fosse ele, teria sido você. — cansada da conversa, desligou.

Finalmente abaixou a cabeça e deixou que as lágrimas deslizassem por seu rosto. Era como se aquela garotinha de quatorze anos amedrontada estivesse de volta, mas carregada e mágoa. Ela odiava seu pai por ter sido um estúpido, odiava a sua mãe por não a ter protegido e, principalmente, o odiava por ter se aproveitado de sua confiança.

 

DOIS MESES DEPOIS

 

— Pressão sanguínea em 70. Pulso fraco — a enfermeira alertava enquanto ajudava os outros enfermeiros a empurrar a cama.

Anthony foi impedido de entrar por um segurança.

— Eu preciso saber como ela está! — exigiu. — Maya! — gritou em desespero vendo o corpo dela sendo levado e sumindo na virada do corredor. Pousou as mãos no rosto e lamentou. Não conseguiria aguentar se a perdesse novamente.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Páginas sobre a chuva" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.