Liberté escrita por Sil, Bianca Azeredo


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Aproveitem, coisinhas. ♥



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Passado um mês, o clima no trabalho de Clarice não poderia estar melhor. Tinha virado uma espécie de confidente de Arthur, a pessoa a quem o menino recorria para quase tudo, e este, por sua vez, tomara para si um imenso espaço no coração da garota. Embora parte de seu carinho fosse destinada exclusiva e verdadeiramente ao menino, Clarice sabia que o motivo para o início de tanto apego devia-se, em realidade, a falta que sentia do irmão.

Desde que começara no novo emprego, não havia tirado um só dia para visitar a família e isso lhe dava uma angústia tremenda. Antes de começar a estudar na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Clarice morava em São Gonçalo, do outro lado da agora gigantesca Baía de Guanabara. Não que, em distância, o município ficasse tão longe de sua pequena kitnet em São Cristóvão, bairro no Centro do Rio, mas a saudade lhe causava essa impressão. Sua mãe, Paula, a ligava todos os sábados para saber como a filha estava, se alimentava-se adequadamente, se bebia dois litros de água por dia e outros questionamentos tipicamente maternos. Clarice sempre ria, assegurava um "sim" para tudo e logo após perguntava sobre a vida da mãe, que sempre se punha a reclamar das más condições do hospital onde trabalhava como técnica de enfermagem, arrancando mais risadas da filha por sua previsibilidade. Com a aproximação das provas na faculdade e com o trabalho que cada vez mais lhe sugava, visto que os pais do menino nunca paravam em casa, sendo forçados frequentemente a terem de lhe pagar horas extras, o que não era de um todo ruim, Clarice viu o contato semanal que mantinha com a família aos poucos se cessar.

Naquela tarde excepcional de sábado, no ônibus em que seguia para mais um expediente, começou a remoer melancolicamente esses sentimentos. Se encontrava tão absorta, que quase perdera o ponto, se obrigando, logo depois, a esquecer por um momento seus problemas pessoais. 

***

Enquanto se aproximava da casa da família Moraes, notou uma peculiar movimentação no portão da frente, um entra e sai de pessoas uniformizadas carregando vasos e mais vasos de flores, que estavam sendo retirados de um pequeno caminhão estacionado no outro lado da rua. Clarice seguiu para a porteira de madeira que dava no pequeno quintal - quase todo tomado pela horta que Ana cultivava com tanto cuidado - e, consequentemente, na cozinha. Surpreendeu-se ao se deparar com a quantidade de pessoas que ali trabalhavam. Sua patroa havia lhe dito que faria um jantar de comemoração pois estava inaugurando uma nova clínica e que chamaria alguns sócios e amigos para a reunião, no entanto, não avisara a proporção do evento. Convocou a garota para mais uma hora extra, que apesar de lhe tomar uma noite de folga, veio de bom grado. Desejou boa tarde a todas as pessoas que trabalhavam na cozinha e não pôde deixar de estranhar a falta de Ana ali. Enquanto seguia caminho para o quarto de Arthur, repassava mentalmente cada recomendação que a patroa lhe passara e novamente não conseguiu recordar em que momento exatamente a mulher mencionara que se trataria possivelmente, ao que tudo indicava, de um jantar de gala. Começou a duvidar se suas roupas estariam compatíveis com a ocasião, trajava apenas um vestido amarelo de alças e sandálias, e a única muda de roupa extra que levara, fora um pijama, já que precisaria dormir na casa. Amaldiçoou-se por ser tão descuidada, pois, sabendo da personalidade de Helena, deveria ter previsto uma comemoração exagerada.

Bateu na porta do quarto que estava fechada e, mesmo não tendo resposta, abriu uma pequena fresta pra olhar e obter confirmação. Encontrou o espaço vazio, o que lhe causou um estranhamento, e seguiu olhando cômodo por cômodo até parar em frente ao quarto de seus patrões. Meio receosa, deu duas pequenas batidas na porta e abriu-a devagar, olhando com cuidado para dentro do ambiente. Se deparou com Arthur deitado em cima da cama assistindo televisão, aparentemente sozinho.

—Oi, Arthur. - cumprimentou se aproximando e sentando do lado da criança, que logo se levantou e jogou-se em seu colo, abraçando-a. -Opa. Tá tudo bem? Cadê a sua mãe e o seu pai? 

O garoto saiu de seu colo e começou a pular na grande cama, contudo, logo foi contido pela menina, que o fez se sentar de novamente. 

—Tô bem. Minha mãe estava aqui comigo mas o celular dela tocou e ela saiu. Ela também me mandou ficar aqui, então não sei onde o pai tá.

—Hm, sua mãe saiu tem muito tempo? - ela perguntou no que o menino acenou negativamente, agarrou seu boneco e voltou a se deitar. Clarice sentiu-se aliviada ao saber que o menino não estava sozinho há muito tempo e presumiu que a patroa devia estar por perto. Virou-se de frente para a televisão e começou a conversar com o menino sobre o desenho que assistiam. Em menos de cinco minutos a porta do quarto foi aberta subitamente e Helena entrou mexendo no celular.

—Arthur, espero que você esteja no mesmo lugar que...- parou o que falava na hora que tirou os olhos da tela do celular e viu que o filho estava assistindo televisão sob os cuidados da babá. -Clarice! Que bom que você está aqui. Eu estava cuidando do Arthur mas aconteceu uma coisa horrível. Eu pedi que toda a arrumação da mesa fosse em branco e azul turquesa e trouxeram umas ornamentações horríveis azul claras, acredita?! Agora estou tendo que resolver esse problemão e o jantar é mais tarde. Você pode dar algo de comer para ele, se quiser, e mais tarde pode arrumá-lo, está bem? A roupa dele está dobrada em cima da cama, eu acho. - E saiu de novo antes de receber qualquer resposta. Clarice observou a porta durante alguns segundos tentando absorver a cena que havia acabado de assistir. Recompôs-se e alisou o conjunto de cama cinza enquanto observava o menino que parecia alheio à loucura da situação.

—Você quer comer alguma coisa? - Clarice obedeceu a ordem de sua patroa e perguntou ao garoto, que logo assentiu. Se levantou, desligou a televisão e levou o menino para fora do quarto, em direção a cozinha. Ainda meio absorta com a situação que havia presenciado,  tentava entender qual a grande diferença entre azul claro e azul turquesa. 

***

Algumas horas mais tarde, Clarice não podia estar mais irritada. Depois que os convidados começaram a chegar, sentia como se estivesse usando um saco de batatas ao invés de roupas. Sentia que era um enorme contraste com as outras pessoas, o que a levou a se posicionar um pouco afastada da festa, que acontecia no jardim. Neste momento, se encontrava sentada num pequeno banco de madeira, no gramado mais perto da piscina, observando Arthur brincar com alguns carrinhos. Agradeceu pelo menino não querer ficar no meio de tantas pessoas, pois assim poderia dizer que estava fazendo seu trabalho. Estava tão atenta no que a criança fazia, que não notou quando Pedro se aproximou com visível curiosidade e surpresa.

— O que vocês dois estão fazendo aqui? - sobressaltada com a indagação, Clarice logo tratou de responder.

— Arthur não ficou bem no meio de tanto barulho e quis vir pra cá.- torcia internamente para o garoto não desmenti-la, já que a ideia de fugir da festa fora dela.

— Garoto esperto. - sorriu, sentando ao lado da menina.- Vocês poderiam me salvar também, não é, filho?

— Não, a mãe não vai deixar.

— Isso é verdade mas... - porém não terminou a frase, pois Helena o berrara de algum lugar dizendo que um novo convidado havia chegado. - É, eu preciso ir.- levantou apressado, mas antes de ir, encarou Clarice com o cenho franzido. - Meu Deus, você parece com frio, fica com isso.- disse tirando e lhe estendendo o blazer preto e ficando apenas com uma casual camiseta branca. Só então Clarice notou que estava com os braços ao redor do corpo, numa evidente tentativa de se aquecer, arrependendo-se ainda mais pela infeliz escolha do vestido de alças. Antes que pudesse negar a gentileza do patrão, o mesmo já estava consideravelmente próximo da festa, impedindo-a de chamá-lo. Decidiu continuar com a vestimenta, pois de fato a noite estava um pouco fria, mas sobretudo porque, ao inclinar a cabeça um pouco para o lado sentiu no colarinho um perfume delicioso e, pior, terrivelmente convidativo.

Sabia que aquela noite definitivamente havia tirado todo seu ânimo, contudo, se repreendeu ao constatar que tirava também sua sanidade. Estava fora de cogitação sentir qualquer atração por um de seus patrões e isso incluía cheirar seu blazer como se fosse uma viciada em cocaína. Além de tudo, perder o emprego era uma hipótese na qual gostava sequer de pensar, pois se tratava da sua única renda e do que sustentava sua vivência no Rio.

Pedro era inegavelmente charmoso, tinha de admitir; e o mais adorável era que ele não parecia se dar conta disso. Era excessivamente gentil com todo mundo, o que poderia fazer com que algumas pessoas se vissem apaixonadas em pouquíssimo tempo, caso tal gentileza fosse interpretada como segundas intenções. Clarice considerava essa característica uma armadilha, no final das contas. O homem era belíssimo fisicamente, também. Alto, olhos verdes puxados levemente para o azul e cabelos castanhos e ondulados, praticamente uma cópia mais velha de Arthur. Possuía um ar descontraído, embora quase sempre estivesse vestido com roupas sociais, o que era um pouco irônico, pensou, ao considerar o total tom de informalidade que suas roupas adquiriram ao lhe emprestar o blazer, justamente numa noite em que formalidade era regra. Sem o blazer, parecia estar vestido para uma ocasião qualquer, trajava apenas a camiseta, jeans e all star. Clarice riu com gosto, seu patrão tinha bastante coragem de aparecer numa festa de Helena como se estivesse pronto para ir a um barzinho ou a um show. De repente, não se sentia mais tão deslocada quanto antes.

***

O estado em que se encontrava não deveria ser dos mais apresentáveis, mas a menina não dava a mínima. Estava na cozinha descalça, sentada no chão e com um prato de comida quase intocado ao seu lado. Conversava com Ana no telefone, o que rendia boas risadas, pois a madrinha finalmente deixara seu profissionalismo de lado para reclamar da falta de noção de Helena, chamando-a de nomes não muito agradáveis.

Se assustou ao ver a porta da cozinha se abrindo e logo tratou de desligar o celular, mas suspirou aliviada quando Arthur atravessou furtivo o batente e correu para se sentar ao seu lado.

—Fugi da mãe.- esclareceu, com um sorriso travesso.

—To vendo.- riu, fazendo cócegas no menino.

—Ta fazendo o que?

—Falando com a tia Ana.

—A vó Ana? Posso falar também?

—Vó Ana? Ela não é sua avó.

—O pai fala que ela é tipo a mãe dele, então é minha avó, eu sempre chamo ela assim.

—Tudo bem, então. - Clarice concordou um pouco a contragosto. Sabia que Ana trabalhava para os Moraes desde, bem, sempre, mas não sabia de toda essa proximidade com a família, ao ponto de Pedro considerá-la uma mãe. —Vamos tirar uma foto para ela ver. - Sugeriu.

—Vamos.

O menino se acomodou no colo da babá, fazendo-a rir, e a abraçou bem apertado, no que a mesma retribuiu. Tiraram a foto e Clarice a enviou para a madrinha com um indignado "Que história é essa de você ser a vó Ana?" como legenda. Aguardaram a resposta por algum tempo, até que a porta novamente se abriu, revelando um Pedro risonho com as mãos plantadas na cintura.

—Por que fugiu? - o homem indagou sem rodeios.

—Estava chato lá.- respondeu o menino.

—Você tem que me ensinar a sumir assim- Arthur abriu um sorriso.-, mas agora a gente precisa voltar. - e o sorriso logo se transformou num rosto emburrado.

—Eu não quero.

—Eu sei que não, mas se você não for comigo, a mamãe vai voltar aqui, te pegar e te amarrar na cadeira. O que você prefere?

—Prefiro ficar com a Clarice.- disse abraçando a garota.

—A Clarice está, ahm, jantando, não é mesmo, Clarice?

—Sim.

—Viu? É melhor nós irmos. - Pedro estendeu a mão para o filho, que, com muita relutância, aceitou. Ambos se dirigiram até a porta, no entanto, antes que saíssem, o patrão sussurrou um agradecimento acompanhado de uma piscadela, o que a menina respondeu apenas com um sorriso.

Fez uma nota mental para lembrar-se de adicionar imprevisibilidade a sua lista, também mental, de características de Pedro. A garota se viu intrigada, o homem era, afinal, uma gama muito complexa de atributos, uma pessoa fora dos padrões esperados. Era simpático demais, bondoso demais, amoroso demais e, sorriu, de uma simplicidade imensa. Lamentou que suas qualidades não pudessem ser compartilhadas com a esposa, mas repreendeu-se logo em seguida por ser tão preconceituosa. No fim, desistiu de tirar conclusões sobre Helena e Pedro, pois, mesmo que fosse observadora, elas poderiam estar equivocadas, embora de qualquer forma e disso tinha certeza, ambos tivessem virtudes e defeitos.

***

Acordou sobressaltada com o conhecido refrão de "A Luz de Tieta" soando absurdamente alto no celular. Apertou compulsivamente a tela do objeto até que a música parasse e o lançou em algum canto do pequeno quarto. Jogou-se novamente no travesseiro e bufou, amaldiçoando quem quer que tivesse mexido em seu despertador e o colocado pra tocar em pleno domingo. Domingo. Levantou-se abrupta, tropeçando nos chinelos que jaziam ao lado da cama e passou a tatear a parede em busca do interruptor de luz. Se recriminou por ter desnecessariamente fechado as persianas da janela na noite anterior.

Alguns segundos e duas topadas no criado-mudo depois, Clarice conseguiu acender as luzes e encontrar o telefone, que por ter caído no chão forrado com carpete, não sofrera nenhum dano. 

—Eu te odeio, Caetano. - murmurou com um suspiro.

Olhou as horas: sete e quinze. Merda, pensou. Jogou o aparelho em cima da cama e começou a juntar seus pertences dentro da mochila.

Enquanto saía do banho e escovava os dentes, calculava quanto tempo levaria ir da Urca à Praça XV naquela manhã. Tentava ser otimista, mas assim que estivesse no trânsito, poderia muito bem haver um engarrafamento ou qualquer outro imprevisto que retardasse sua chegada. Admitiu que de toda forma, não conseguiria pegar a barca das oito e que, por conta disso, estaria uma hora a menos do dia perto da família. Bufou, contrariada.

Se permitiu arrumar-se com mais calma, desta vez e decidiu enrolar o cabelo crespo num turbante azul claro que só depois percebeu ser uma bela homenagem a Helena. Olhou-se mais uma vez no pequeno espelho do banheiro e tentou em vão desamassar o vestido amarelo, desistindo logo em seguida. Calçou as sandálias, apoiou a mochila em um dos ombros e somente quando já estava de saída que notou o pano negro dobrado de qualquer jeito em cima do criado-mudo. O blazer de Pedro.

Pensou se seria uma boa ideia deixar a roupa onde estava, mas achou que dificilmente o patrão seria um frequentador assíduo do quarto de empregados. Resolveu, por fim, deixá-lo na cozinha, onde muito provavelmente Ana encontraria e o devolveria ao dono

***

Antes que fosse embora, lembrou que seria bom avisar a mãe de sua ida, para que a mesma não inventasse de sair pra algum lugar. Remexeu a mochila em busca do celular e se irritou ao constatar que o havia esquecido no quarto.

—Merda, merda, merda. Mil vezes merda. - sibilou, enfurecida, apoiando os punhos contra o balcão.

—Bom dia pra você também.

Virou-se assustada, quase derrubando uma fruteira no processo e se surpreendendo ao dar de cara com um Pedro de sorriso aberto, vestindo apenas uma calça de moletom. O coração de Clarice deu um pulo e suas mãos começaram a suar. Por Deus, o homem tinha um corpo de tirar o fôlego! Magnífico, equilibradamente esculpido, sem exageros. Perguntou-se como uma pessoa daquela idade e ocupada como ele mantinha um físico como aquele. Quando reparou que o patrão erguera uma sobrancelha, a menina percebeu que deveria respondê-lo, para não parecer mais pateta do que já estava sendo.

—Ah, bom dia. Me desculpe por isso. - deu um sorriso sem graça.

—Não tem problema. Já comeu? - indagou.

—Não, já estava de saída, na verdade. 

—Cedo assim? Toma um café, pelo menos. - Pedro disse, se virando para fuçar os armários.

Clarice não podia acreditar no que via, teve de suprimir ao máximo a vontade de se aproximar para enxergar mais de perto. Pois bem ali, estampada nas costas de seu chefe, a pessoa que ela menos imaginaria no universo, estava uma imensa e berrante tatuagem com formato de três espirais entrelaçadas, semelhante a uma hélice. Aquilo era o cúmulo da improbabilidade, contudo, também tinha de admitir, era um atrativo e tanto.

 

Meio sem jeito, disse que já voltava e rapidamente foi até o quarto. Encontrou o celular em cima da cama, intocado. Enfiou-o na mochila e perdeu um segundo ou dois ponderando sobre como deveria agir na cozinha com o seu patrão. Voltou para a cozinha e ficou encostada na porta brincando com a alça de sua mochila enquanto pensava se realmente deveria ficar apenas esperando o patrão servi-la, de braços cruzados. Se aproximou da ilha que estava organizada com algumas coisas de café da manhã como canecas, talheres e potes de biscoito, colocou sua mochila no chão, próximo ao lugar onde havia deixado o blazer de Pedro e ficou observando-o pegar a chaleira com água quente do fogão e derramar o conteúdo na garrafa térmica. Bateu suas unhas algumas vezes no mármore escuro da bancada e olhou ao redor algumas vezes, levemente embaraçada.

 ­­—Você quer ajuda? – Clarice sentia-se um pouco sem jeito depois da noite anterior. Apesar de já estar habituada ao novo emprego, não era todo dia que ela ficava sozinha com qualquer um de seus patrões, e depois da sua estúpida reação de ter que usar todo o seu autocontrole para não cheirar descaradamente o blazer que Pedro havia lhe entregado por pura gentileza após vê-la com frio, a vergonha a tomava quase por completo.

  —Você pode pegar manteiga, queijo e essas coisas na geladeira? - Pedro a olhou por trás de seu ombro brevemente, fechou a garrafa térmica e foi até a pia deixar o suporte do coador de café e uma colher suja. Levou a garrafa e o pote de açúcar à bancada, se sentou em um dos bancos e pôs-se a despejar o café numa das canecas que ali estava. Enquanto isso, Clarice havia pego tudo o que ele havia requisitado da geladeira, colocado próximo das outras coisas e se sentado num banco, se servindo também de um pouco de café logo em seguida.

 —Nossa, eu nunca fiquei tão cansado depois de uma festa.- Pedro falou depois de bocejar dramaticamente. Pegou alguns biscoitos de aveia de um dos potes e olhou para a garota antes de prosseguir. - O que você achou?

 Clarice tomou um gole de café antes de responder, mas quase engasgou ao provar a bebida excessivamente forte que o homem havia feito.

 —Achei muito divertida. – encarou os olhos verdes dele e tentou soar a mais sincera possível, apesar de estar mentindo. A festa tinha sido péssima para ela. Monótona demais, refinada demais, fria demais. Nem as músicas lhe faziam lembrar de uma festa de verdade. – E animada. Terminou que horas?

 —Jura? - os olhos dele se tornaram céticos. —Ah, por favor, foi a festa mais terrível que já fui. E o pior, terminou uma hora da manhã. Eu estou morto com uma festa que acabou uma hora da manhã. A velhice definitivamente chegou para mim.

 Clarice riu do desabafo exagerado dele e colocou mais algumas colheres generosas de açúcar no seu café numa tentativa desesperada de melhorar o gosto, no entanto, só conseguiu deixar a bebida com gosto de xarope, então desistiu. Ela não achava Pedro velho, mas também sabia que ele não era tão novo. Deveria ser apenas alguns anos mais velho que a sua mãe e de modo nenhum o jeito quarentão velho e cansado combinava com ele. Física ou espiritualmente.

 —Eu tenho certeza que já fui a alguma festa pior.

 —Gentileza da sua parte. – ele se serviu de mais café e percebeu que o dela permanecia praticamente intacto. —Você está na faculdade, não está? Vou te dar um conselho: aproveite ao máximo as festas. E tome muitos porres, você vai sentir falta deles um dia. Sabe o que me deixa chateado?

 —Não, o quê?

 —Eu dei uma festa e nem estou de ressaca. Isso é um desperdício frustrante de café! - levantou as mãos teatralmente, mas depois se arrumou no banco e encarou a menina seriamente. —Clarice, você gostou do meu café?

  Sem saber o que falar, a menina deu uma grande mordida no biscoito que comia buscando tempo e percebeu que a feição de Pedro se tornava pouco a pouco mais zombeteira.

 —É bem forte, né?

—É, muito. - ela sorriu sem graça depois de ter dado a resposta que deu, mas preferiu falar aquilo do que mentir. Porém, o homem deu uma gargalhada como se já esperasse aquela resposta.

 —Realmente, bem forte. Se quiser pegar outra coisa pra beber na geladeira eu não vou ficar triste, pode confiar. Você faz faculdade de que?

 —Eu faço pedagogia na UFRJ.

 —Sério? Eu também estudei na UFRJ. Cursei história da arte por um tempo.

 —História da arte? – a voz de Clarice transparecia surpresa. Ela nunca poderia imaginar que um homem como ele, que estava sempre usando roupas sérias e quase todo o tempo parecia estar concentrado ou ocupado, poderia ser cursado artes. —Eu jurava que o senhor tinha estudado engenharia por conta da sua construtora e tal...

 —Mas estudei. Eu tive que largar história da arte para fazer engenharia, mas essa é uma longa história. E, por favor, não me chame de senhor, é Pedro. Isso só faz com o que eu me sinta mais velho ainda.

 —Então tá, Pedro. – Clarice não podia negar que estava curiosa. Chegou a abrir e fechar a boca duas ou três vezes, mas acabou se segurando e não perguntando o que aconteceu para que ele desistisse da faculdade de artes, afinal, se ele quisesse contar teria dito logo de cara. Aproveitou que depois de alguns segundos de silêncio o telefone tocou e Pedro foi atender, para ir até a pia, jogar o café fora e lavar a louça que havia sujado. Depois se sentiu aliviada de poder tomar um copo de água gelada. Consultou o relógio que ficava perto da geladeira e percebeu que mais de meia hora havia se passado então colocou sua mochila nas costas e se preparou para ir embora. Antes pegou o paletó que Pedro havia lhe emprestado e segurou por alguns segundos, lembrando-se de seu cavalheirismo adorável e do bom cheiro da roupa. Balançou a cabeça espantando tais pensamentos.

Pouco depois Pedro entrou na cozinha já falando.

 —Ah, era o pessoal do aluguel de mesas e cadeira ligando. Tão cedo, num domingo e eles já estão vindo buscar as coisas, acredita? – ele olhou de um lado ao outro procurando a menina e quando a viu, se aproximou. —Ah, você já está indo, é?

 —É, eu preciso ir. Então... eu queria te entregar isso. – estendeu o blazer na direção dele, se sentindo boba. Nunca fora uma pessoa muito tímida e sabia que não havia razão para aquilo. —Obrigada por me emprestar.

 —Ah, eu que agradeço, por você ter me deixado passando frio ontem à noite. – contudo, na hora em que falou aquilo, mesmo que estivesse claro que era apenas uma brincadeira, ele percebeu o constrangimento que veio da garota, então pegou o paletó da mão dela e deu duas batidinhas em seu braço, tentando mostrar que não estava realmente bravo. —Calma, calma, eu não estou falando sério, e não precisa agradecer. Não foi nada.

 Ao ver o sorriso tão simpático dele, não pôde deixar de sorrir também e suspirou aliviada. Ela ainda não conhecia essa parte tão brincalhona de Pedro e havia sido motivo de suas piadas duas vezes em pouquíssimo tempo. Então decidiu brincar também. Colocou a mão sobre o coração, dramática e fez a melhor cara de convencida que era possível.

 —Estamos quites do café, então. - e se virou em direção à porta da cozinha que lhe levava a saída. – Até amanhã, senhor Pedro.

 —O meu café é ótimo! – mesmo assim ele riu, pois sabia que não era verdade. —Até amanhã. O senhor ta no céu, Clarice.

 Depois disso, a garota foi andando pelo condomínio até chegar ao ponto de ônibus com a cabeça nas nuvens. Apenas quando se sentou no ônibus que se deu conta de que poderia de alguma forma ter ofendido o seu patrão e que poderia até ser um motivo para perder o emprego, mas por sorte ele não ligou. E só então notou que estava rindo sozinha, no ônibus vazio de domingo.


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Notas finais do capítulo

Que homão da porra esse Pedro...
Esperamos que tenha gostado!



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