Você Me Conhece Tão Bem escrita por scarecrow


Capítulo 1
Capítulo 1




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Você Me Conhece Tão Bem

Não havia um porquê de estarem ali, mas eles estavam.

Calados. Nervosos, indecisos, com os corações cheios de sensações estranhas.

Podia-se ouvir o arfar de um pelo telefone.

O primeiro a desligar não foi aquele quem ligou. Virou-se de lado na cama e dormiu rapidamente, pela primeira vez em dias.

 

Acordar nunca era uma tarefa fácil. Nunca era fácil tomar seus remédios antes do café, nunca era fácil escolher alguma roupa consideravelmente confortável para se passar o dia, nunca era fácil andar até a faculdade. No entanto, Fernando sobrevivia. As noites e as manhãs eram sempre uma luta para o estudante, mas, por algum motivo, ele sobrevivia.

Nós sempre sobrevivemos por algum motivo. 

Coou o café, preto, como sempre fazia aquele horário. Fernando estava acostumado a ficar sozinho na maior parte do tempo – não era culpa da sua mãe, gostava de lembrar; apesar de trabalhar mais do que necessário, ela sempre estava preocupada com a saúde do filho.

Pagava os médicos mais caros, acompanhava nos exames, comprava os remédios mensalmente.

De qualquer forma, estava tudo bem. Sempre está tudo bem quando se está com os amigos, ele repetia para si mesmo até chegar à faculdade.

"Bom dia, Fê"

"Oh, bom dia, Arthur" Ele cumprimentou contente "Fez o relatório da aula prática passada?”

"E quando é que eu não faço?" Arthur respondeu risonho, já tirando os papeis da sua organizadíssima pasta para que o amigo pudesse copiar.

Olhou bem para o conjunto de amigos parados na frente da sala improvisando os relatórios de poucos (porém sempre necessários) pontos. "Cadê o Henrique?"

"Saiu atrasado, provavelmente. Ele ficou acordado de madrugada fazendo não sei o quê e agora está lá, morrendo de sono" Arthur explicou.

Noah sorriu acanhado, e antes que seu amigo perguntasse qualquer coisa, convidou-o para sentar no chão, fazendo-lhe companhia enquanto burlava sua tarefa.

Henrique era irmão mais velho do Arthur e, apesar de fazerem cursos diferentes, naquele semestre houve a alegre coincidência de suas aulas começarem no mesmo horário e acontecerem no mesmo estranho Instituto de Ciências Exatas. Do grupo de amigos, Henrique era o que menos conversava com Fernando, mas isso não impediu que o mais novo acabasse se apaixonando perdidamente. O conhecer era algo inevitável uma vez que Fernando sempre estava na casa dos Pavanati para estudar.   

Conhecer.

Conhecer é uma palavra intrigante. Você conhece sua vizinha, sabe seu nome, o horário que ela chega ao apartamento e sai para o trabalho; você conhece seu marido, já conheceu e visitou sua casa algumas vezes, mas ainda assim você não a conhece. Você não sabe a origem do seu nome, se ela realmente sai para o trabalho, se o casamento vai bem ou se ela detesta a decoração de sua casa. Conhecer e não conhecer.

Algumas pessoas dizem que a ignorância é uma benção.

Se ela realmente for, Fernando não estava preocupada com isso. Porque no momento em que viu o irmão do seu amigo, decidiu que não gostaria só de conhecê-la, mas sim de descobri-la. Entendê-la. Conhecê-la.

Fernando tinha muitas facilidades, mas conhecer pessoas com certeza não era uma delas. Depois de amigos, era fácil notar que ele é uma pessoa contente, que falava muito e sempre fazia brincadeirinhas. O problema é que toda a personalidade do adolescente está escondida atrás do depois, e sua timidez falava mais alto quando o assunto era pessoas. Ou seja: Fernando nunca chegou a realmente conhecer Henrique.

E por não conhecer o mais velho como gostaria, não foi sem motivos que Fernando estranhou quando seu telefone tocou de madrugada.

“Você parece melhor hoje, Fê” Sua amiga Alice comentou. Eram amigos de bancada na disciplina Químia Geral Experimental, e a pouca conversa que tinham eram sempre entre os tubos de ensaio.

“Obrigado, eu acho.” Ele respondeu, baixinho. “Consegui dormir sem remédios hoje”

Alice bateu palmas sem deixar o som sair, e continuou a conversa: “Sua mãe já sabe disso?”

“Não, ainda não. Você sabe, ela anda trabalhando” respondeu um pouco triste, sorrindo de lado. Alice se sentiu um pouco mal por perguntar, mas não pode evitar. Fê parecia tão bem! Seus sorrisos pareciam mais abertos, seus olhos com mais vida. E por mais que ainda tivesse as típicas olheiras, a felicidade é algo que não se consegue esconder.

“Ela vai ficar feliz em saber” Sussurrou a amiga, indicando fim da conversa. 

Passaram a prestar atenção na correção – no mínimo, Alice, já que Fernando sabia que todas as questões do seu relatório estavam certas.

 

 

“Sabe o que sexta feira significa?” Arthur perguntou alto para seus amigos, enquanto caminhavam para a saída do prédio.

“Que é um puta de um dia bom em que nós não combinamos nada para fazer” Bárbara resmungou, procurando um cigarro na bolsa. Esperou sair dos portões para acender sua taxa matinal de nicotina, e voltou a falar: ”Já que estamos meio perdidos, porque não nos perdermos de vez?” 

“Bárbara, você sempre arruma coisas estranhas” Rêmulo contestou, um pouco cansado.

“Nós vamos fazer uma festa hoje.” continuou, sem dar muita atenção para o moço. “Os pais do Caio viajaram”

“Você ainda está saindo com ele?” Alice perguntou, curiosa.

Bárbara sorriu travessa: “Quem topa?”

Todos concordaram, um pouco animados. Aliás, tinha pouco tempo que o grupo de amigos não fazia algo realmente legal. 

“Eu não sei se posso” Fernando anunciou-se: “Fim de semana é o único tempo que tenho para ver minha mãe” E era verdade. Sexta-feira à noite, sábado pela tarde e domingo era o único dia que o garoto podia ficar com sua mãe.

“Ora, Fê, vamos! Só hoje” Bruno comentou, atravessando a rua sem olhar para os lados direito. 

Seus amigos começaram o antigo papo de que ele deveria ir para esfriar a cabeça. Sair um pouco para conhecer novas pessoas, ficar longe da faculdade/casa, esquecer um pouco os estudos, sair só por sair. Até que apareceu um motivo bom o suficiente para Fernando sair de casa:

“Você nunca sai com a gente, Fê” Henrique argumentou.

E era verdade. Fernando nunca saia com eles, apenas nos dias de semana quando matavam aula e iam para o bar. Fernando suspirou pesado. Estavam no parquinho em frente a universidade, vendo o tempo passar. O silêncio esperou pela resposta do estudante. 

“Eu vou. Só hoje.” 

O grupo de adolescentes presente na pequena pracinha gritou e bateu palmas – Henrique ficou calado, e sorriu travesso. Ele e Fernando trocaram olhares confidentes, e nada falaram. Eles não precisavam falar, e o telefonema de madrugada fora a prova disso.

Arthur apagou o último cigarro e levantou, anunciando sua ida. Alice também se levantou, e todos preferiram ficar por um momento para deixarem os dois irem sozinhos. Bárbara e Bruno foram os próximos a irem embora. Rêmulo confirmou com Fernando se ele realmente iria à festa e, depois disso, disse que teria de ir para casa fazer um trabalho de faculdade antes de ir para a casa do Caio. 

E então, o silêncio continuou. Firme e forte.

Estava fazendo calor, e ainda eram quatro da tarde. Depois das aulas, era normal o grupo de amigos sentar nos bancos do parquinho e fumarem ou beberem enquanto conversavam banalidades. Claro, não era algo diário, mas ainda assim era rotineiro. Depois de algum tempo sem fazer nada, todos iam para suas respectivas casas, e Fernando sempre ficava por último; não gostava de andar no calor, então preferia a grande sombra ao caminho ensolarado. Até mesmo porque, é melhor ficar sem fazer nada e ver o tempo passar debaixo de uma árvore do que em cima de sua cama.

Porém naquele dia, ele não estava sozinho. Henrique também estava ali, apesar de não falar nada.

Henrique e Fernandos eram amigos, obviamente. Andavam juntos, sempre. Estavam sempre fazendo as mesmas bobagens, fumando a mesma marca de cigarro, ouvindo bandas parecidas. O problema é que isso era apenas uma consequência. Eles não eram amigos por terem características parecidas entre si, mas sim por terem amigos em comum.

Talvez, por esse motivo, o silêncio se tornou um terceiro amigo, que iria acabar apresentando um para outro.

“Você não vai para casa?” Henrique perguntou, curioso. O mais velho já havia notado que o outro era sempre o última a ficar.

“Por quê, você vai?” perguntou como resposta.

“Não agora. Você não dorme de tarde?” Henrique voltou a perguntar, tentando manter o assunto. Estavam sentados no banco comprido, cada uma em uma ponta. Ainda assim, não precisavam conversar em alto tom para se ouvirem. Falavam baixo, como se tivessem medo de alguém ouvir. Talvez, esse alguém fosse eles mesmos. Henrique realmente preferia ficar calado e fingir que nunca havia ligado para a casa do amigo do irmão naquela madrugada, porém a curiosidade falava alto demais para conseguir ignorar.

“Raramente. Acho que ando perdendo o dom de dormir” Fernando disse risonho, achando graça da piada.

Pavanati não achou tanta graça assim, e sequer riu.

No instante em que a conversa encerrou, Fernando pensou que, se nunca tivesse se apaixonado por Henrique antes, dessa vez certamente ele não escaparia. Porque, céus, seus olhos estavam lindos. O entardecer manchava suas íris claras de laranja, e a serenidade do seu rosto deixava-os com um brilho sincero.

"Sabe, Fê, eu...” Henrique havia começado a falar, tentando manter o assunto, porém foi interrompido por uma forte tosse vindo do outro. Durante o outono, ele sempre estava mais doente. O tempo era seco e frio, e seus problemas respiratórios pioravam gradativamente nessa época do ano.

Henrique não sabia o que fazer.

Levantou-se, para bem perto do menor, e encostou-se aos seus braços, ainda tímido, como se aquilo fosse adiantar algo.

E adiantou.

Pode não ter parado a tosse, mas fez o coração de Fernando dar um pulo fraco. Ele tentou respirar fundo, e seus pensamentos se embaralharam. Sua paixonite estava enfim quase lhe abraçando, e ele faria de tudo para continuar assim, mas foi obrigado a achar sua bombinha dentro da mochila.

Apertou e esperou a respiração acalmar. Fechou os olhos, um pouco nervosa.

"Está tudo bem?" Pavanati perguntou. Fernando balançou a cabeça afirmativamente, voltando a usar a bombinha mais uma vez.

Fernando descobriu-se soropositivo não havia dois anos.

Uma única vez que decidira se entregar às bebedeiras da noite já fora o suficiente para mudar vida para sempre. A partir daí, inúmeras complicações foram aparecendo. A bronquite. A gripe que durava dias, e dias, e dias. O número de remédios que precisava tomar rotineiramente. A falta de sono.

"É o tempo" Fernando justificou. "Costuma piorar com o tempo seco"

Henrique contorceu o rosto em uma careta, pensativo. "Sua tosse não é assim sempre, talvez você precise ir a algum médico"

O silêncio voltou a reinar. A respiração de Fernando estava pesada, sendo o único barulho existente entre os dois. Eles estavam próximos, a mente do mais novo estava rodando. Henrique havia reparado? Henrique reparava nele? Desde quando?

Desde quando Henrique Pavanati era capaz de notar que a tosse diária de Fernando havia piorado?

"Talvez" Fernando respondeu um pouco nervoso. Levantou-se e pegou suas coisas. "Acho que vou indo." saiu na frente sem se despedir devidamente e mesmo se quisesse, não conseguiria. Estes poucos minutos em que ficou sozinho com o outro o deixou ansioso.

Ansioso o suficiente para que, quando chegasse em casa, fosse logo procurar uma roupa bonita para a festa, mesmo que ainda faltasse um bom tempo para sair de casa de novo.

            Jogou as roupas em cima da cama e se trocou, trocou de novo e se vestiu de novo. Não estava se sentindo bem em nenhuma daquelas roupas. Sentou-se de qualquer jeito no tapete azul, os olhos cheio de lágrimas.

Queria que sua mãe estivesse em casa, e lhe ajudasse com o que vestir, mas isso certamente era impossível. Ficou sentado, vendo os segundos passarem, e decidiu ir para o banheiro. Abriu o chuveiro desanimado, e pensou que seria melhor não ir à festa.

Até mesmo porque, o que iria ter naquele lugar é o obvio – adolescentes se pegando, bebidas em excesso, drogas e piscina. Nada que ele se divirtia muito fazendo.

O melhor era mesmo esperar sua mãe e tomar uma boa xícara de chá.

Fernando demorou no banho, tentando convencer a s mesmo que ficar em casa era a melhor opção. Até que seu telefone tocou.

Olhou no visor: Henrique.

Suspirou uma ou duas vezes antes de atender, um pouco medrosa. Não sabia o que falar, então apenas aceitou a ligação, ficando em silêncio. Henrique, do outro lado da linha, também não falou nada. Como sempre. Não era a primeira, nem a segunda vez que ele ligava e ambos ficavam sem falar absolutamente nada, mas ainda assim Fernando sempre se surpreendia quando seu telefone tocava.

E assim foi por cinco minutos.

A respiração dificil de Fernando parecia um chiado pelo telefone, e ele teve medo de que o amigo escutasse as batidas altas de seu coração.

"Você vai hoje, não é mesmo?" ouviu Henrique perguntar.

Fernando nunca havia ouvido a voz do Pavanati pelo telefone. Era suave, um pouco mais grave que o normal, mas ainda assim doce. Sorriu. "Eu ainda tenho uma hora para desistir"

“Bom, eu vou passar para pegar o Rêmulo, quer que passe aí?” perguntou, ignorando a sentença anterior. Rêmulo Gonçalvez era praticamente seu vizinho, e como os pais do Henrique lhe emprestaram o carro, ele achou que poderia fazer esse pequeno favor.

“Claro.” respondeu, antes de marcarem o horário.

Henrique desligou o celular sorrindo bobamente. Colocou-o no meio de suas coisas e foi comer alguma coisa enquanto não dava a hora.

O Pavanati mais velho sempre soube que preferia garotos a garotas. Os braços fortes, a barba espessa e os ombros largos sempre lhe atraíram demais e, mesmo que Fernando não tivesse nenhum daqueles artefatos, sempre gostou muito do garoto.

Estava soberbamente feliz por saber que ele iria sair. Colocou então seu melhor perfume e vestiu sua melhor roupa.

Saiu no horário marcado com Arthur para pegar Rêmulo. Cumprimentaram a mãe do amigo, e disseram que logo estariam em casa. Viraram a rua, e avistaram a residência do Fernando.

E na frente dela, uma ambulância.

Henrique estacionou de qualquer maneira e saiu do carro apressado. Viram a ambulância sair escandalosa, e ficaram olhando, parados, os três. O mais velho sentiu os olhos arderem, a vontade de chorar se tornando inevitável. Abriu a boca e fechou várias vezes. Ele poderia não ser a mais próxima do Fernando, mas com toda certeza, era o que mais nutria sentimentos por ele.

“Henrique? Oh, Arthur, Rêmulo!” Ouviram Linda chamar. “Que bom que estão aqui! Eu cheguei mais cedo hoje, e Fernando não estava bem” Ela comentou, um pouco desesperada. “Estava tossindo de mais e acabou vomitando um tanto de sangue e...”

“Ele vai ficar bem, tia Linda” Rêmulo disse, abraçando-a, parecendo o mais sóbrio da situação. “Vai ver foi só... Bom, vamos ao hospital, certo?”

E assim, a noite acabou.

Não houve festa; Até mesmo Caio, que mal conhecia Fernando, foi ao hospital particular visitar o garoto. Ficaram na sala de espera, tentando descontrair Linda, a mãe de Fernando. Já passava das dez da noite quando deixaram, um por um, entrarem para visita.

Primeiro foi Linda, claro, que saiu cheia de lágrimas e guardanapos. Fernando estava bem, e isso era ótimo, mas ele teria que ficar uns dias no hospital e vários dias de descanso, tomando um remédio forte por semanas – estava com tuberculose.

Henrique, que foi a quinta a ir visitar, ficou com o coração pequenininho diante do que se passava. E pensar que Fernando já estava passando mal já quando insistiu que ele saísse. Por sorte, a mãe dele havia chegado mais cedo. Entrou no quarto, quieto. Sabia que tuberculose era uma doença um tanto quanto perigosa ao levar em consideração a imunidade do amigo. Pensou na quantidade de remédios e antibióticos que ele  teria de tomar.

“Desculpa, Henrique” disse, logo ao ver o outro entrar no seu quarto “Não vou poder sair com você hoje”

“Nós podemos sair sempre” respondeu, rápido, sentando-se do lado da cama. “Como você está?”

“Um pouco assustado” Contou. Pela primeira vez, a conversa dos dois não estava tendo pausas, nem esperas. Talvez, por que ambos sabiam que era pouco o tempo que tinham um com o outro. “Logo estarei em casa.”

Henrique ficou em silêncio, acariciando o cabelo curto e extremamente liso do amigo. Suspirou. A enfermeira entrou no quarto para avisar que o tempo havia acabado, e o visitante respirou fundo, antes de perguntar: “Posso te abraçar?”

Fernando apenas assentiu com a cabeça. Seu coração batia em uma velocidade incomum, e sua respiração falhava – não pelas doenças, mas por ansiedade. Sentiu então o cheiro do hidratante de melão, o cabelo macio dançando entre seus dedos. Abraçaram-se, pela primeira vez.

“Fê, eu...“

“Henrique, já é minha vez!” Alice disse, nervosa, entrando no quarto do hospital. O mais velho se afastou em um pulo, e saiu rápido. Nervoso. Feliz.

Naquela noite, no hospital, um aparelho celular tocou de madrugada.

O som estridente do toque quase não foi notado, já que seu dono estava acordado, como se estivesse esperando. E estava. Atendeu a ligação, ofegante. A mão suava por nervosismo, e ele sabia o porquê. O silêncio não demorou para se estabilizar. O som da respiração pesada e doente de Fernando saía abafada e lenta. O suor, com o tempo, acumulava no visor do celular.

Até que...

Até que Fernando falou.

Ele esteve com aquela pergunta na cabeça por dias, desde quando os telefonemas começaram. Quando Henrique saiu do quarto, mais cedo, ele não conseguiu pensar em nada concreto. Mal respondia a mãe preocupada e as enfermeiras. Não se lembrava do que conversou com Alice. Ele só sabia repetir uma pergunta em sua cabeça: “Como você descobriu?”

Normalmente, quando Henrique ligava, ele não falava nada por achar que incomodaria o menor. Fernando, no entanto, não falava nada por não saber o que falar. Não é como se eles pudessem colocar o assunto em dia, ou contar piadas de madrugada, então o silêncio realmente parecia confortável naquela situação.

“Eu ouvi, uma vez, você falar com a Alice sobre isso” Confessou, um pouco baixo – a porta do quarto estava aberta, e Henrique não queria acordar o irmão. “Eu sei que eu não deveria prestar atenção na conversa dos outros, mas...”

“Mas?” O curioso perguntou. Não estava nervoso, e nem tinha formado uma crítica sobre isso ainda. A vontade de saber estava consumindo-o.

“Você parecia tão mal quando disse sobre a insônia, que acabei pensando que não havia problema ouvir a conversa, se fosse por uma boa causa”

E então, silêncio novamente. A respiração do Fernando ficou mais quinze minutos batendo em seu celular, e nenhuma outra palavra foi dita, por nenhuma dos dois.

Quando Fernando voltou para casa, já era outra sexta-feira. Sua mãe estava contente e extremamente carinhosa, o que fez o jovem ficar eufórico e indeciso. Fernando quase nunca tinha a mãe só para si, e mesmo estando no hospital e sofrendo com tosses horríveis, as horas de visita eram ótimas. Ainda assim, não importa o quão feliz estivesse, não conseguia saber direito o que fazer com o tempo dado. Tinha tanto o que falar para a mãe, porém sequer sabia como fazê-lo.

Às vezes, nós pensamos tanto em querer algo, que nunca imaginamos o que fazer quando o conseguimos.

E enquanto voltava para casa, de mãos dadas com a mãe, Fernando agradeceu pelo tempo que teve, mesmo sem poder contar tudo o que queria para ela.  

Entrou em casa primeiro. Acendeu as luzes e tirou a chave da porta, quando ouviu um alto “Surpresa!” vindo de dentro de casa.

Olhou espantado. Sua mãe riu, se divertindo com a reação do filho. Estavam todos os seus amigos ali, rindo e indo abraçá-lo. “Mas nem é meu aniversário” brincou.

“Isso é uma festa de bem vinda de volta à sua própria casa”, Rêmulo comentou, divertido. Pegou um copo de Coca-Cola entregou para o amigo. Abraçou-o forte, e voltou a falar: “É um jeito de te animar, aquele hospital me dava arrepios no pouco tempo em que fiquei lá, imagina como você esteve”

Agradeceu seus amigos, abraçou-os, comendo um pouco e participando da festinha calma. Não havia nada em exagero, e seus amigos se acomodaram com salgados e refrigerantes no lugar de bebidas alcoólicas. Havia alguns balões laranjas e verdes, amarelos e azuis, e uma grande faixa escrita “Bem vindo”. As piadas correram soltas, as risadas sempre acompanhando. Sua mãe, naquele dia, não voltou para o trabalho, e ficou junto com Fernando e seus amigos na sala de estar, comendo salgadinhos.

Logo depois de um tempo, se sentiu cansado e decidiu subir para o quarto. Agradeceu novamente e pediu desculpa por ir deitar tão cedo.

“Sem problemas, Fê. Você precisa mesmo descansar” Bruno respondeu, tendo apoio dos poucos, porém preciosos amigos que Fernando tinha. Ele sorriu extremamente feliz por tudo que estava recebendo, e pensou em um jeito de realmente agradecer por tudo aquilo depois.

Entrou no quarto, e trocou de roupa. Colocou seu grande pijama de estrelas azuis, e se olhou no espelho. Estava se sentindo horrível. Nesses últimos dias, não pode sequer passar um pente nos cabelos curtos, e estava magro demais. Tinha olheiras fundas devido à insônia, e boca estava quase branca e muito amarga, devido os remédios.

“Está bem lindo assim” Ouviu uma voz irônica atrás de si. Era Henrique, se divertindo com a visão do amigo no pijama de criança. Riu baixinho.

Henrique sentou ao seu lado.

E então, ficaram calados.

O mais velho se aproximou, um pouco nervoso por saber o que queria fazer, e o que iria fazer. Sentou-se mais próximo, e colocou a mão macia em cima das mãos finas e fracas de Fernando.

“Por quê?” perguntou.

Aliás, por quê?

Por que Henrque Pavanati se incomodava em ligar todas as madrugadas durante seu horário de insônia?  Por que ele se incomodava com o fato de que a insônia o fazia mal? Por que, céus, por que ele fazia isso sem sequer saber sobre seus sentimentos?

“Porque deve ser solitário passar a noite sozinho.”

E depois disso tudo, Fernando nunca havia notado que ficou sozinho durante todo esse tempo. Nunca percebeu que se sentia terrivelmente abandonado sem a mãe em casa, e as noites sempre pareciam mais frias por não ter companhia.

Percebeu então não significa não ter amigos, como ele temia, e sim não ter um abraço forte quando se julga necessário. E se querem saber, nem sempre isso é obrigação dos amigos.

Porque Fernando esperava sim por abraços, não eram do Rêmulo, do Arthur, da Alice ou da Bárbara.

Ele queria todos os abraços que Henrique poderia dar;

E ele estava ali.

Ele estava ali desde sempre, e de uns tempos para cá, no momento em que mais precisava.

Henrique, diante o silêncio do outro, continuou o que tanto queria fazer, e se aproximou gradativamente dele. As mãos juntas não ousaram qualquer movimento. Colou a boca nos finos lábios de Fernando, esperando alguma reação negativa.

A reação esperada não veio. Fernando ainda estava atônita devido a resposta de Henrique, e estava tão feliz por isso que mal notou o contato inicial. A conversa ainda rodava em sua cabeça, e uma lágrima morna escapou de seus olhos claros. E então, quase que automaticamente, colocou a mão livre nos cabelos grandes do mais velho, e segurou um suspirou de realização.

Fernando então estava conhecendo o Henrique – a textura de seus lábios, a leveza de seus fios, o cheiro de sua roupa – e, além disso, estava contente por ele também estar conhecendo-o.

E ambos souberam que nunca, nunca, a felicidade esteve antes tão palpável.

Separaram-se. A lágrima ainda não havia secado, e os lábios estavam úmidos. Henique abriu os lábios para voltar a falar algo, mas um grito lhe interrompeu:

“Rick! Estamos indo embora!”

“Henrique, eu...” começou a falar. Seus olhos brilharam, quase verdes, e suas bochechas tingiram de vermelho. Aquela era a hora. Ele iria falar. Eu te amo, eu te amo, “Eu...“

“Vamos logo, Henrique!” Ouviram de novo a voz do Arthur. Então ele saiu, nervoso, sem saber direito o que fazer. Antes de ir, deixou de leve um beijo na bochecha do doente, correndo um pouco.

Na semana que passou, Fernando voltou a ir às aulas.

E todos os dias, durante os intervalos de aula, ele tentava o máximo que conseguia evitar Henrique. Depois das aulas, dizia estar cansado e voltava para casa bem rápido. Ele simplesmente não conseguia mais ficar tão perto do amigo. Seu coração parecia sair pela boca, e o medo estava correndo seus pensamentos. 

Ao mesmo tempo em que queria estar sempre perto do Henrique, ele queria estar o mais longe o possível. Não sabia o que o outro sentia, e não queria se magoar. Entretanto, ele não conseguia tirar o Pavanati dos seus pensamentos.

Não conseguia parar de se perguntar porque ele havia beijado-o, ou porque Henrique não lhe procurou mais depois do ocorrido, ou...

Ele precisava de tempo, e então, se afastou para pensar.

Porque Henrique realmente não foi atrás do outro. Ele logo percebeu que Fernando não queria ficar mais tão perto, e quase não saía de casa. Sentia-se horrível pelo que fez, sem sequer perguntar para ele se...

Ainda assim, Henrique o ligava todos os dias. O telefone fixo sempre tocava de madrugada, e Fernando sempre o atendia. Sempre. Todos os dias. E todos os dias, eles ficavam em silêncio, trocando pensamentos, forçando a saudades.

Ninguém sabia ao certo o que falar, e o silêncio, de repente, parecia confortável.

Eles se amavam, todos os dias, calados, pelo telefone.

Henrique pensou em sua conta telefônica e fez uma careta. Suspirou. Ele precisava conversar logo com o mais novo antes que enlouquecesse.

Então, em uma terça feira seguinte, Pavanati esperou o estudante de Farmácia sair da sala de aula, e não o deixou ir. Parou em sua frente. Fernando sorriu, e deu um passo para o lado. Henrique também o deu. Então, ele deu outro passo, para o outro lado; o outro acompanhou.

“Henrique, eu preciso ir para casa” interveio, nervoso.

“Não, nós precisamos conversar” disse firme, as mãos na cintura. Fernando o olhou sem entender, e colocou-se a observar o amigo – os cabelos grandes e pretos presos em um mini coque mal feito, a blusa de alguma banda dos anos 80 amarrotada e as olheiras das noites mal dormidas – ele estava lindo, como o de costume.

“Eu realmente não posso. Que tal outro dia?” Fernando respondeu, empurrando Henrique devagar e andando em direção a sua casa.

O outro saiu andando em sua direção. “Você está me evitando”

“Por que eu faria isso?” Fernando riu, tentando encontrar uma saída para o assunto. Ele só queria ir para casa deitar. Começou a passar mal. A respiração estava falhando, e seu nervosismo atrapalhava qualquer reação de seu corpo.

“Olha, Fê, me desculpe por ter feito... Aquilo, na sua casa. Eu achei que... Eu nunca contei a ninguém, mas eu gosto de...“ Foi interrompido pela crise de tosse forte e inoportuna que Fernando teve.

Logo parou de falar e ficou de frente para o amigo. Sua tosse foi se agravando, e Fernando não conseguia soltar o ar, curvando as costas, respirando desesperadamente entre as tosses. “Fê, céus, onde está sua bombinha?” perguntou vendo-o sentar-se no chão, curvado, tossindo, o oxigênio se tornando raro.

Henrique gritou por ajuda.

Linda saiu do quarto do hospital, indo para sala de visitas. Os amigos de Fernando estavam esperando, pela segunda vez, algum tipo de resultado. A mãe, diante de todos os amigos de seu filho, não soube direito o que falar. Posicionou-se na frente de todos.

“Fernando está bem” Disse primeiro, tranquilizando os corações tensos. “Ele precisa de tratamentos médicos mais avançados para ficar bem logo.”

“Mas de qualquer forma, ele vai ficar bem com os tratamentos daqui, não é mesmo?” Bárbara logo perguntou, falando por todos.

“Vai sim. Acontece que eu andei pensando, e acho melhor...” Pausa. Os médicos e enfermeiros passaram, interrompendo de leve a conversa. “Nós estamos indo embora para São Paulo. Não sabemos se voltamos.”

O silêncio, depois de muito tempo, pareceu sufocante para Henrique. Demorou a processar todas as informações, sentindo-se muito pior do que um dia já esteve. Os amigos protestaram, disseram que iriam ajudar, não importasse como. Linda agradeceu, e pediu desculpas. Disse que não iria esperar o filho sair do hospital para a mudança – ou viagem de longo período. A saúde do garoto não poderia esperar por muito mais tempo.

Ninguém conseguiu culpá-la depois. Ela só queria fazer algo pelo filho tão doente, por ter um medo absurdo de perdê-lo qualquer dia desses.

Depois disso, entrou um por um para se despedir de Fernando. Lágrimas, palavras doces de adeus e brincadeiras foram feitas, acreditando que isso era o melhor para ser dito.

Henrique foi a última a entrar.

Eles não falaram nada de primeiro, e encararam-se, sabe se lá por quanto tempo. Segundos. Minutos, talvez. A respiração pesada do doente dava voz ao silêncio. Henrique segurou a mão de Fernando novamente, mas não o beijou.

"Desculpe-me por não ter contado antes. Eu não queria...” começou a falar, sem saber direito o quê. O silêncio tomou a voz.

“Fê” Henrique o chamou, triste. “Eu queria que você ficasse. Eu gosto de você, muito”

Fernando sorriu, contente, e mal soube colocar tudo o que sentia dentro do peito, para depois colocar para fora em palavras. Queria dizer que também gostava muito dele, mas não sabia como segurar a vontade de confessar sem falar palavras demais. Queria agradecer, porém não havia nada para se dar em troca. Queria chamá-lo para viajar também, mesmo sabendo que era impossível. Então, Fernando disse algo que valeria pelas três falas:

“Eu não me sinto mais tão solitário durante as madrugadas.”

 

 

Três e meia da manhã.

Ele estava acordado. Henrique Pavanati não tem nenhum problema com sono, mas estava bem alerta em plena madrugada. Ele sabia o que era isso – saudades. Fernando viajou no dia anterior, e essa era a primeira noite sem o telefonema.

Rodou na cama e observou o céu estrelado: havia se esquecido de fechar as cortinas. Levantou para fechá-las. Ao sentar, viu o telefone fixo em cima de sua cabeceira, esperando para ser usado como em todas as madrugadas. Henrique estava esperando para usá-lo.

Não haveria problema ligar, haveria? Ninguém iria atender, já que a casa estava vazia. E por mais que fosse cair na caixa postal, apenas o alívio de ter ligado o deixaria dormir. Discou, tentando não pensar no quão dependente estava disso.

Chamou uma, duas, três vezes.

Quatro, cinco, sei-

Atenderam a ligação. Henrique pensou em falar algo, gritar algo, céus, precisava perguntar se era ele, se ele havia voltado, se... E então, silêncio.

Podia-se ouvir o arfar de um pelo telefone. Uma respiração pesada, chiando pelo telefone fixo. O calor do silêncio preencheu seu peito, e abraçou sua saudade, esquentando a voz que nunca sairia.

Ficaram calados, sabendo que o silêncio, aquele silêncio, significava mais do que qualquer jura de amor.

O telefonema durou vinte minutos.

FIM.


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