Os póneis bonzinhos vão para o Inferno escrita por Maurus adam


Capítulo 14
Livro 2 Capítulo 3 - Os alicórnios não se criam, crescem




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A vila do Inferno encontrava-se completamente deserta. Privado dos originários dos seus terrores, Arenito poderia andar pela sua cidade natal livremente. Depois de passar um par de dias a descansar dos trabalhos dos últimos tempos, decidiu explorar a cidade. O primeiro sítio para onde se dirigiu foi à sua antiga morada. Durante os anos em que esteve ausente a quinta de pedras de seus pais tinha-se modificado ligeiramente. O antigo celeiro tinha desaparecido e a casa onde tinha passado a sua infância, que sempre fora de madeira deixada ao natural, encontrava-se de cima a baixo pintada de branco. Espalhados pelo terreno da quinta estavam os cadáveres de alguns póneis. Arenito não conseguiu reconhecer nenhum deles. A casa em si estava deserta, quer de póneis vivos, quer de mortos. O seu antigo quarto agora era uma espécie de arrecadação, com baús e armários cheios de tralha. Arenito demorou um bocado a arrastar a mobília toda para aceder aos esconderijos onde deixara o seu tesouro, mas valeu a pena. Estavam todas lá, todas as suas pequenas lembranças. Tinha passado tanto tempo que tinham perdido todo o seu significado, mas mesmo assim eram o seu tesouro, símbolos de liberdade de quando se encontrava preso num mundo pequeno e mesquinho criado à imagem de outros póneis. Daquele momento em diante deixaria de ser obrigado a mantê-los escondidos.
Arenito também passou algum tempo a explorar o resto da cidade. Não que houvesse muito de interessante para pilhar. Livros eram raros em Inferno e algo de mais curioso que isso era quase inexistente. Mais vulgares eram as ferramentas, tecidos e acima de tudo, loiça. Arenito já não precisava de trabalhar nas suas experiências com tigelas e garrafas improvisadas, feitas de lama argilosa apanhada nas margens do rio.
As diversas quintas também se revelaram num recurso interessante. Privados de póneis terrestres para os plantar, os vegetais reproduziam-se naturalmente a um ritmo desprezível. Mas mesmo assim, multiplicavam-se mais depressa do que Arenito podia consumi-los, o que tornou-se bastante útil para evitar desperdícios de tempo à procura de comida pela floresta. Eventualmente também começou a usar alguns dos terrenos para plantar muitas das ervas e plantas que usava nas suas poções.
Inicialmente Arenito pensara mudar-se para a sua antiga cidade, mas ao principio desistiu dessa ideia. Passou tantos anos abrigado na floresta que durante muito tempo passou a sentir-se pouco seguro fora dela. Ainda por cima o cheiro dos cadáveres incomodava-o bastante. Começou a usar, isso sim, algumas das casas para guardar tudo o encontrava pela cidade. Também decidiu montar um laboratório na antiga padaria de Inferno, já que aquele edifício tinha um forno e um fogão, para não falar da cozinha e da loja, duas divisões bastante grandes e ideais para praticar experiências. Como bónus, já estavam mobiladas com armários e prateleiras.
Com o tempo, Arenito foi perdendo o desconforto que sentia por aquela cidade. Com a decomposição completa dos corpos, a única coisa que sobrou dos antigos habitantes foram alguns ossos escondidos por entre os tufos de relva que se espalhou pelas ruas de Inferno. Ademais, com o avançar da floresta pela cidade dentro, aquele sitio foi ganhando um novo charme. Arenito foi-se habituando a passar cada vez mais tempo naquela cidade e no fim de contas acabou por se mudar para uma pequena casa que havia mesmo ao pé na antiga padaria.
Nas suas experiências com a alquimia, Arenito não resistiu a continuar a modificar-se a si próprio. Desejando controlar outras formas de magia, modificou o seu poder inato até ganhar as características do dos unicórnios. Para controlar as suas novas habilidades cabalísticas fez crescer um nervo especificamente sensível às emanações mágicas, directamente ligado ao cérebro e resguardado dentro de um cifre, tal como num unicórnio normal. Completamente privado de qualquer fonte sobre feitiçaria dos unicórnios, Arenito não conseguiu progredir muito. Aprendeu telecinesia, a iluminar e a produzir e apagar fogos com alguma facilidade, mas algo mais complexo do que isso tornou-se extremamente difícil e demorado para ele conseguir dominar.
Ele também desejava poder voar. Provocou em si próprio uma mutação para lhe crescer um par de asas. Visto que só se encontrava interessado em levantar voo e era muito mais pesado do que qualquer pégaso, fez as suas asas tomarem a forma de longas peles sustentadas por apêndices semelhantes a tentáculos. Estavam longe de serem ideais para planarem e não ofereciam o equilíbrio nem a precisão de um pégaso minimamente treinado, mas Arenito não se importava. Ele não se interessava em viajar para longe ou em voar rápido, só em voar ocasionalmente por Inferno para evitar gastar tempo a trotar de um lado para o outro. Mesmo assim tornava-se muito cansativo suster o seu enorme corpo só pelo bater de asas. Só quando conseguiu obter o poder mágico dos pégasos e criar vórtices de ar com as suas asas é que conseguiu voar de uma maneira minimamente eficiente. Como bónus, também ganhou a capacidade de manipular o clima. Depressa descobriu que conseguia pousar nas nuvens e forçá-las a chover ou a trovejar só por tocá-las, mas Arenito não se interessava muito por alterar as condições climatéricas e eventualmente essa capacidade acabou por cair-lhe no esquecimento.
À medida que o tempo ia passando, as modificações que Arenito operara em si próprio tornavam-se cada vez notórias. Com o passar dos anos o seu corpo foi ficando cada vez maior e mais musculado. Numa resposta ao amadurecimento do seu poder, o seu atraente pelo cinzento começou a ficar cada vez mais escuro. A sua crina e a sua cauda castanhas tomaram uma cor muito viva, chegando mesmo a vibrar com uma luminosidade vermelha clara quando tentava lançar um feitiço mais potente. Também se tornou imortal, e isso não lhe podia ter passado à parte. Se bem que Arenito nunca tivesse estado preocupado em manter um calendário, chegou a uma altura em que se apercebeu de que já deveria ter acumulado demasiadas décadas para um simples pónei. Já deveria ter-se tornado um velho à muito tempo, no entanto sentia-se cada vez mais saudável e vivaço. Como resultado de tantas mutações e transformações, o corpo de Arenito tornara-se capaz de regenerar qualquer lesão, inclusive as provocadas pelo envelhecimento.
Inferno não se manteve completamente livre da curiosidade alheia. Pouco depois da sua purga, alguns póneis, alertados pela falta de noticias vindas da cidade ou por rumores espalhados pelos poucos sobreviventes, foram chegando com o intuito de descobrir o que tinha acontecido. Arenito inicialmente tinha ignorado aquelas incursões. Se ele se tinha escondido dos habitantes locais na floresta por tantos anos, não seriam póneis estrangeiros que o perturbariam. De qualquer das formas só podiam dar-se ao luxo de observar a cidade ao longe. Qualquer tentativa de lá entrar despertava a agressividade da magia de Arenito. Não era preciso passar muito tempo lá dentro para qualquer pónei se perceber rapidamente do perigo que corria a andar por lá. Nenhum pónei era tolo ao ponto de não fugir imediatamente de Inferno e raramente pensavam em voltar a por lá os cascos. Mesmo assim, vários póneis menos ligeiros perderam a vida antes de terem oportunidade de lá escaparem. Com o tempo cada vez menos póneis tentavam penetrar naquela cidade, mas mesmo assim de vez em quando apareciam viajantes que costumavam pernoitar na periferia da floresta.
Com o passar dos anos, as memórias traumáticas da sua infância foram-se esmorecendo e a sua autoconfiança aumentando. Um dia, numa tentativa de apaziguar a sua solidão, Arenito tinha decidido interagir com um grupo de mercadores pégasos que tinham acampado perto da floresta. Tinha-se apercebido da presença deles quando procurava algumas plantas para lhes extrair a essência. Tinha avistado um pequeno grupo de pégasos, bastante sobrecarregados com mochilas cheias de têxteis, voando na direcção nordeste. Eles tinham parado junto à floresta para montar um acampamento e passar lá a noite, como muitos póneis já o tinham feito e voltariam a fazer. E como muitas vezes no passado, naquela altura Arenito tinha decidido ignorá-los. Voltou para sua casa sem se preocupar com os pégasos, mas ao levantar-se na manhã seguinte pensou que talvez não fosse má ideia interagir com eles.
Esperando alcançar os pégasos antes deles partirem, voou o mais depressa possível ao local onde eles tinham acampado. Apanhou-os mesmo na altura certa, pois eles estavam a acabar de empacotar as tendas e preparavam-se para prosseguir com a viagem deles. Confiante, Arenito esvoaçou com boa disposição para o pé deles, mas aquele sentimento acabou por não ser correspondido. Mal repararam nele, os pégasos assustaram-se e reagiram com expressões de medo e agressão estampadas nos seus rostos. Alguns póneis começaram a gritar palavras que Arenito desconhecia. Naquele momento nem lhe passou pela cabeça que que o problema poderia ser dele. Pensou que os pégasos pudessem estar a falar num idioma que lhe era desconhecido. No final de contas tinham passado inúmeras décadas desde de que ele tinha tido contacto com outros póneis e a sua língua poderia ter sofrido alterações suficientes para ficar irreconhecível. Também seria possível que os mercadores pudessem ser originários de um pais distante e não falassem o mesmo dialeto.
Apesar da possível barreira linguística, Arenito ainda tentou comunicar com eles. A sua boca abriu-se para cumprimentá-los, mas de dentro dela não saíram palavras. Arenito simplesmente não sabia o que havia de dizer. Os pégasos, cada vez mais assustados, começaram a gritar cada vez mais e pareciam estar a tornar-se hostis e agressivos. Arenito não conseguia perceber porque eles demonstravam tanta hostilidade. Era verdade que com o tempo ele tinha-se tornado bastante grande e que algumas das suas características físicas eram muito pouco ortodoxas, mas apesar de tudo ainda era um pónei como eles. Com algum esforço, voltou a tentar dizer alguma coisa, mas o som que lhe saiu da garganta não lhe pareceu familiar em nenhum aspecto. Assemelhava-se mais a um rugido esganiçado do que a outra coisa. Também não serviu de nada para melhorar a reacção nos outros póneis, que levantaram voo e cercaram-no. Alguns deles começaram a carregar contra ele. Outros abocanharam alguns paus e usaram-nos para tentar mantê-lo à distância. Alguns dos menos destemidos atacaram Arenito por detrás, dando-lhe coices quando o apanhavam de costas.
Ele não estava a sentir-se muito paciente, mas somente quando um pégaso o atacou empurrando uma nuvem contra ele é que Arenito começou a ficar furioso. Vitima de tanta agressividade, pensou que já tinha sofrido demasiada inimizade e soltou uma onda telecinética suficientemente poderosa para derrubar quase metade da manada de pégasos. Ao verem os seus companheiros caírem de encontro às árvores ou em direcção ao solo da floresta, os restantes póneis refrearam as suas atitudes e assustados com aquela exibição de poder mágico bateram em retirada, arrastando como podiam os companheiros inconsciêntes.
Sem olharem para trás, os pégasos fugiram o mais rapidamente possível da floresta e nem sequer se deram ao trabalho de levantar o acampamento. Arenito pousou no cume de uma árvore e ficou a vê-los a afastarem-se. Somente quando a manada não era mais do que um pequeno punhado de pontos no horizonte é que Arenito resolveu a ir-se embora. Ele sentia-se confuso. Não conseguia tirar sentido do que se tinha passado.
Passando pelo local do acampamento, Arenito aproveitou para ver todo o material que os pégasos tinham abandonado na ânsia de fugirem dele. Havia quatro tendas, com todas as estacas e todo o material necessário para as montar. Também havia várias mochilas cheias de tecidos, desde rolos de seda até delicadas rendas. Tudo de qualidade excecional. Tão assustados estavam os pégasos com o encontro com Arenito que nem pensaram duas vezes em abandonar uma pequena fortuna em mercadoria. Pelo menos ele não iria precisar de se preocupar em fabricar tecido durante as próximas décadas.
Regressando à sua habitação, Arenito voltou a reler alguns dos seus livros. As palavras continuavam a ter o mesmo significado de sempre, mas Arenito não conseguia imaginar nenhuma das suas fonéticas, nem tão pouco as conseguia pronunciar. Aparentemente, ele tinha-se esquecido de como se falava. Era mais um gigantesco passo da sua terrível solidão.


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