Os póneis bonzinhos vão para o Inferno escrita por Maurus adam


Capítulo 13
Livro 2 Capítulo 2 - O levantamento do Inferno




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O cérebro equestre é um instrumento incrivelmente poderoso e simplesmente maravilhoso. Se se convence que algo é real, leva um pónei a realizar os mais incríveis feitos. O que parecia impossível torna-se possível pelo simples facto de se esquecer que era impossível. Amizades incoerentes foram forjadas, feitiços épicos foram lançados e as mais altas empresas foram atingidas somente porque a mente decidiu aceitar o inconcebível. Mas tal poder pode também ser uma maldição. Se há algo que o cérebro é, é ser adaptável. Para o bem e para o mal a mente de um pónei altera-se para melhor aceitar a realidade que lhe é imposta. Se por um lado lhe é facilitado o conhecimento do mundo que o rodeia, por outro lado é lhe imposto todas as ilusões geradas pela sua limitada percepção.
Vejamos o exemplo de Arenito. Ele daria um bom alquimista. Tinha produzido a prova com as suas próprias patas. Mas apesar de tudo, tinha sido incapaz de se dedicar à sua mais recente paixão. Os outros póneis tinham-no impedido por puro acto de atitude, pois quando algum pónei é tratado como um monstro mais tarde ou mais cedo acaba por se comportar como um monstro, mesmo que saiba que não é um.
Ele ainda ouvia todas as queixas, todas as zombarias, todo o mal-dizer a assobiar-lhe às orelhas. Ele ainda sentia as consequências de ter vivido num mundo criado por póneis que não possuíam as mesmas forças e fraquezas que ele. Mas apesar de tudo, todos aqueles póneis já não estavam lá, já não eram capazes de afectá-lo directamente. Com o passar do tempo Arenito foi curando as feridas. Mas ainda teriam de passar décadas até ele poder respirar livre de qualquer tensão.
A floresta pode parecer bastante hostil para um jovem potro, mas na realidade dá um óptimo lar e uma excelente fonte de recursos para um pónei inteligente e adaptável. Arenito era inteligente e sem os outros póneis a martirizá-lo conseguia adaptar-se rapidamente. Os primeiros dias foram terríveis, com o frio, a escuridão e a fome a atormentá-lo, mas com o tempo começou a sentir-se mais confortável e começou a viver ao invés de sobreviver.
Voltou-se então para o seu livro de poções e para os seus apontamentos. No inicio tinha-se arrependido de os ter trazido, mas quando começou a organizar o seu dia-a-dia ficou com bastante tempo livre para se dedicar à alquimia. Simples instrumentos de madeira e vasilhas de barro feitas à pressa não são o material ideal para se usar num laboratório, mas nada o impedia de compensar a falta de condições com empenho e trabalho.
À medida que o tempo passava e a influencia hostil dos seus conterrâneos diminuía, Arenito começou a aperceber-se que se sentia solitário. Ele era demasiado inteligente para pensar que eram saudades dos outros póneis. Sabia muito bem que sempre se tinha sentido sozinho apesar de estar sempre rodeado por outros póneis. Até ali sempre tinha procurado a solidão, pois a presença de outros póneis só tinha servido para o magoar. Porém, a partir daquele momento em diante, Arenito já não tinha nada que o distraísse da sua solidão, a verdadeira solidão. Sempre tinha ansiado por companhia autêntica, uma família verdadeira. Não apenas uma família de nome ou de sangue, mas alguns póneis que se identificasses com ele e o louvasse pelo simples facto de existir.
Quanto mais Arenito meditava sobre isso e quanto mais relembrava tudo porque ele tinha passado, mais se enfurecia por lhe terem negado o amor e carinho a que qualquer potro tinha direito. Com o rancor a aumentar de dia para dia, parecia a Arenito cada vez mais uma injustiça que toda a cidade continuasse impune de todo o mal que lhe tinham feito. Ele sabia muito bem que nunca poderia reverter o mal que lhe foi causado, por isso nunca teria justiça. Também sabia que não podia ser vingado, pois nunca seria capaz de lhes causar tanto mal quanto o que tinha sofrido. Mas nada disso lhe parecia razão suficiente para deixar os seus atormentadores escaparem impunes sem sequer tentar. Ainda estava a anos de distância de ter poder suficiente, mas jurou a si mesmo que mais tarde ou mais cedo transformaria Inferno num lugar digno de Tártaros.
Com uma floresta inteira ao seu dispor, Arenito possuía virtualmente ingredientes ilimitados para as suas experiências. À medida que o tempo ia passando a sua proficiência em alquimia aumentava gradualmente. Criou dezenas de novas poções e alterou e melhorou muitas delas. Chegou ao ponto de usar a alquimia para alterar o seu corpo e o seu poder mágico inato. Fez-se mais forte e resistente, o seu corpo crescia a uma velocidade muito maior do que um pónei normal da sua idade, e para se proteger dos venenos de diversos animais e plantas, fortificou magicamente o seu sistema imunitário. Se bem que naquela altura ainda não se tivesse apercebido, o seu organismo começava a ser capaz de regenerar alguns dos estragos causados pelo envelhecimento.
Chegou a uma altura em que possuía condições para atacar os habitantes de Inferno. Tinha descoberto como fazer efeitos mágicos com poções que criavam auras que alteravam a própria estrutura da matéria. Juntamente com receitas que serviam para encantar objectos permanentemente, Arenito possuía tudo o que precisava para tirar o mundo debaixo das patas da cidade que o odiara tanto. Ele viraria a própria realidade contra os outros póneis, tornando as fraquezas deles em falhas imperdoáveis e as forças deles em luxos inúteis. Eles iriam saber o que era viverem num mundo idealizado para os odiar.
Fabricou uma série de totemas mágicos usando barro e poções cristalizadas. Ao principio pensou em criar só um, mas para obter uma aura suficientemente forte o totema teria de ser enorme. Arenito achou que seria mais prático e eficiente fazer vários e combinar todos os seus poderes num só. Para garantir que conseguia abranger toda a cidade calculou que precisaria de cinco totemas e para os fabricar a todos demorou mais de ano e meio. Eventualmente ficaram prontos e para os usar teria que os espalhar por Inferno.
Evidentemente, acabou por ser-lhe mais fácil pensar nisso do que fazê-lo. Arenito já não era um potro, nem tão pouco continuava a ser um pónei normal, mas apesar da sua força acrescida os totemas eram enormes e pesavam bastante. Ademais, teria que os levar de noite para evitar ser visto e escondê-los em sítios onde não pudessem ser facilmente descobertos. Acabou por conseguir levar somente um por cada noite. Ao primeiro colocou-o no meio da cidade no fundo de um poço. Descer por ele abaixo com o totema às costas exigiu bastante malabarismo mas por fim ele lá o conseguiu. Dois dos outros foram também para poços que irrigavam as quintas na parte oeste da cidade. Aos restantes foi mais difícil arranjar um destino. Um acabou por ser depositado no rio que corria na parte nordeste de Inferno, numa zona mais funda, que chegava aos seis metros de profundidade. Arenito levou o ultimo totema para a cave de uma casa abandonada. Não era exactamente de difícil acesso, mas Arenito esperava que nenhum pónei se lembrar-se de procurar lá.
Na noite seguinte Arenito voltou ao lugar do primeiro totema que tinha colocado. Verteu sobre ele uma poção impregnada com a sua força vital. O totema activou-se e começou a brilhar fortemente. Arenito ficou surpreendido com tanta luz. Ele sabia que começaria a emitir luz, mas não esperava que o fizesse com tanta intensidade. Rapidamente trepou para fora do poço e voltou para a floresta, esperando pacientemente o resultado.
Ao ser activado, o totema criou uma aura mágica que começou a expandir-se lentamente. Eventualmente a aura acabou por atingir os outros totemas, activando-os. Estes começaram a alimentar a aura com o seu poder, fortificando-a. No início poderia parecer que o feitiço tinha falhado, nada visível tinha acontecido. Porém, a realidade era bem diferente. A cidade tinha-se transformado subtilmente numa eficaz máquina de sadismo.
Ao amanhecer, quando os póneis começaram a levantar-se, uma série interminável de acidentes bizarros assolou toda a cidade. Os póneis de Inferno começaram a estranhar as novas fontes de luz que inexplicavelmente tinham surgido, mas tinham muito mais com que se preocupar. Ao principio os póneis foram somente vitimados por pequenos acidentes. Quedas estranhas, pedras pontiagudas em que nenhum pónei reparava, tijolos que se soltavam misteriosamente quando algum pónei ia a passar, nada de muito sério. Mas eventualmente os acontecimentos tomaram características obviamente sobrenaturais, e entre pedregulhos que eram capazes de rolar por encostas acima para atropelar póneis e árvores que ganhavam vida e golpeavam qualquer um que se aproximasse, havia um pouco de tudo. Que maravilha que era a magia de Arenito. Um autentico exemplo de génio e de talento. Apesar daquele feitiço ser um autómato sem qualquer traço de consciência, demonstrava uma criatividade e sadismo dignos do seu criador.
Rapidamente todos os póneis se aperceberam de que estavam a sofrer uma espécie de ataque. Simplesmente eram demasiados acontecimentos bizarros em série para se concluir outra coisa. Alguns ponéis pensaram acertadamente que era algo que teria a haver com as estranhas luzes que tinham surgido e tentaram tapá-las, o que não fez nada mais do que privá-los de as verem. Outros, um pouco mais espertos que os primeiros, tentaram alcançar os totemas de Arenito para tentar descobrir o que eram, mas descer por um longo poço quando o próprio terreno onde pousam os cascos conspira para os atacar não é propriamente uma boa ideia. O primeiro a tentar descer depressa se apercebeu do seu erro quando a corda que o segurava se rompeu misteriosamente e a gravidade o fez chegar ao seu destino muito mais depressa do que desejava. Foi a primeira vitima mortal, mas estava longe de ser a ultima.
À medida que aquele dia ia passando e a confusão ia aumentando, o pânico começou a espalhar-se. Tinha começado como um sussurro de gritos, mas ao prosseguir pela tarde escalou numa terrível sinfonia choros e gemidos que ecoou por todo o Inferno e chegou a todos os territórios circundantes.
Arenito não conseguia aguentar o rugido ensurdecedor que bradava da cidade. Ele sempre tinha sido sensível ao barulho e aquela cacofonia constante perturbava-o. Retirou-se para a periferia exterior da floresta. Lá as centenas de árvores que o separavam da aldeia abafavam o ruído e Arenito pôde encontrar algum sossego.
À medida que o dia chegava ao fim e a noite começava a erguer-se os gritos de pânico e agonia começaram a baixar de tom. Quando a Lua finalmente atingiu o seu zénite todo o barulho tinha já cessado. Arenito pôde finalmente adormecer e descansar da tensão acumulada naquele dia todo.
Ao nascer do próximo dia, quando os primeiros raios de Sol passavam por entre a copa das árvores, Inferno encontrava-se silenciosa. Silenciosa como um túmulo, para ser mais exacto, pois tinha se tornado num autentico cemitério. Inicialmente Arenito desconfiou daquela estranha quietude, pensando que os outros póneis teriam conseguido destruir a sua magia e preparavam-se para tentar apanhar-lo. Trepando a uma árvore na periferia da floresta, espiou as ruas da cidade o melhor que pôde. Conseguia ver alguns póneis tombados e imóveis, mas não conseguia detectar nenhuma espécie de movimento. Passadas algumas horas sem ver nada de estranho decidiu explorar Inferno. Sorrateiramente, esgueirou-se pelas ruas da cidade e apercebeu-se do que tinha acontecido. Estavam todos mortos. Muitos tinham fugido da cidade mas a maior parte tinha perecido durante a noite. Alguns morreram directamente pelos efeitos da magia de Arenito mas quase todos tinham colapsado pelo esforço constante de tentarem sobreviver no caos místico que se tinha instalado.
Arenito estava perplexo. Todos os póneis sempre o acusaram de ser fraco e estúpido. Ele sempre soube que os fracos eram os outros póneis, mas nem um dia tinham aguentado. Eles tinham-no martirizado e hostilizado durante anos e um único dia da sua vida tinha sido suficiente para os destruir.
Sentindo-se terrivelmente injustiçado, nada restava a Arenito a não ser virar a sua raiva para alguma coisa. Mas para que coisa? A maior parte dos malfeitores da sua vida tinham perecido no que lhe pareceu uma morte rápida e pacifica demais e encontravam-se além do alcance de qualquer vingança. Se bem que sempre soube que aqueles póneis jamais poderiam sofrer sequer uma fracção do mal que lhe tinham infringido, o modo demasiado fácil de como tinham saído deste mundo deixara Arenito extremamente enfurecido e com uma terrível lição de opressão aprendida demasiado tarde: a de que nunca se deve deixar as suas vitimas sair fora do alcance da sua pata. Por outro lado, essas mesmas vitimas também tinham aprendido da maneira mais difícil essa mesma lição.
Arenito passou o resto daquele dia a passear por entre aquele silencio aterrador. Os cadáveres dos seus conterrâneos eram uma lembrança viva (Figurativamente falando, é claro.) das tormentas pelo qual ele tinha passado e permaneceriam por vingar , mas consequentemente já não constituíam uma ameaça para ele. A aura mágica que tinha criado deixava-o imune da sua própria ira. Tinha sido sintonizada com a sua força vital, mas qualquer outro pónei que ousasse lá entrar tornar-se ia um alvo a ser atacado pela própria cidade. Encontrava-se sozinho, perdido num mundo da sua criação. Aquela cidade era um sítio demasiado pequeno e vazio para qualquer pónei decente considerá-lo um lar, mas mesmo assim era o seu lar. Durante o resto da eternidade, protege-lo-ia de qualquer ser que tentasse incomodá-lo ou magoá-lo.


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