Os póneis bonzinhos vão para o Inferno escrita por Maurus adam


Capítulo 12
Livro 2 Capítulo 1 - Tudo começa com marcas, a precuela




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/702818/chapter/12

A vila do Inferno, apesar do seu nome, era mais uma cidade de tamanho médio do que uma verdadeira vila. Sendo uma cidade de póneis terrestres a maior parte das terras que a rodeavam eram vastas quintas e pomares. Mas a civilização não pode sustentar-se só à base de cenouras e maçãs, precisa também de madeira, tecidos, pedra, metais e outros recursos. Consequentemente, em Inferno várias famílias dedicavam-se à produção de outros materiais. Uma delas possuía uma quinta de pedras e era responsável por fornecer Inferno com as rochas necessárias para construir as casas e os passeios. Xisto Lustroso e Metamórfica eram o orgulhoso casal pedreiro e Cascalho e Arenito os seus filhos.
Cascalho era o filho mais velho, trabalhador, robusto e muito semelhante a seus pais, mas Arenito, o filho mais novo, era mais cerebral e criativo. Apesar de ser fisicamente débil, mesmo em comparação com outras espécies de póneis, possuía uma curiosidade que encontrava alegria ao compreender novas artes e ciências. Numa vila de póneis terrestres dedicados ao trabalho duro desde incontáveis gerações, tal personalidade era encarada como estranha na melhor das hipóteses. Infelizmente, quando um grupo de campónios se mantém isolado do resto do mundo excepto para o comércio básico, a melhor das hipóteses raramente é aplicada.
O trabalho de um pónei terrestre é cultivar os campos e efectuar trabalhos pesados. A sua força e resistência sobrenatural provam-no. Para os póneis de Inferno (E para muitos outros póneis também.) era impensável sequer considerar que algum pónei pudesse possuir algum talento para além das limitações da sua espécie. Consequentemente, a falta de força era considerada moleza, e a introspecção, que não produzia nada que os póneis pudessem ver, era considerada preguiça. Se se acrescentar que eram incapazes de distinguir entre loucura e abertura de espírito, é possível ter uma ideia da imagem que o pobre Arenito possuía entre os seus conterrâneos.
Uma vez por mês havia uma feira onde eram vendidos as frutas e legumes a delegações de pégasos e unicórnios. Durante quatro dias as três espécies de póneis conviviam em Inferno, se bem que convivência não fosse a palavra mais indicada. Estrangeiros era vistos com desconfiança, e os próprios unicórnios e pégasos encaravam os póneis terrestres como plebeus rústicos. Apesar de tudo, Arenito gostava de se esgueirar pela feira sempre que podia e meter conversa com os estrangeiros. A maioria não estava minimamente interessada em aturar um potro metediço, mas havia sempre algum pónei que não se importava que um potro andasse a meter o focinho nos seus assuntos e a chatear-lo com perguntas idiotas. A feira era o seu santuário. Quando deambulava por ela, no meio de desconhecidos e xenófobos, Arenito não se sentia um estranho. Pelo menos não se sentia mais estranho do que os seus conterrâneos. A feira era um portal para outras culturas e outros lugares, a prova viva de que o mundo não acabava em Inferno.
Também era um óptimo sitio para encontrar curiosidades. Brinquedos, livros, utensílios, mascotes, com um pouco de sorte encontrava-se um pouco de tudo. Arenito poupava avidamente dinheiro para poder comprar algo que lhe pudesse interessar. Com o passar do tempo conseguiu reunir um pequeno tesouro. A palavra chave sendo tesouro, porque apesar da maior parte das coisas serem apenas lembranças ou ninharias de pouco valor, eram estimadas fanaticamente por Arenito e guardadas secretamente. Sabendo como era visto pelos outros póneis, ele temia como a sua família reagiria ao descobrir a sua pequena colecção de bugigangas. Ele escondia o seu tesouro espalhando-o por baixo do soalho do seu quarto, por baixo de algumas das tábuas soltas que compunham o chão.
Foi numa daquelas feiras que Arenito encontrou o livro que definiria toda a sua vida. Um unicórnio chamado Cristal de Mana vendeu-lhe um manual de alquimia por apenas um par de bits. Parecia uma pechincha, mas na realidade nenhum pónei se interessava por poções. Somente os unicórnios se sentiam à vontade a utilizar magia e eles podiam lançar os seus próprios feitiços. Pareceria bastante estúpido a um unicórnio ter que andar a destilar ingredientes, fermentar poções e depois andar a carregá-las de um lado para o outro, enquanto que com um pouco de estudo e prática poderia aprender a lançar feitiços que fariam a mesma coisa. O próprio autor daquele livro apenas tinha se dedicado à alquimia por simples curiosidade académica.
Seria inútil dizer o quanto Arenito adorou aquele livro. Uma nova ciência para ele descobrir era o ideal para passar o tempo. Durante muitas tardes perdeu-se por entre páginas de sintetizações mágicas, destilações descritivas e equações místicas.
Assim que pôde, Arenito experimentou fermentar uma das poções apresentadas no livro. Era uma simples poção de crescimento capilar, a mais fácil e básica que surgia naquele manual. Demorou algum tempo a reunir todos os ingredientes necessários. Para sintetizar a poção foi ainda mais complicado, pois era necessário equipamento de laboratório e ao Arenito não restou outra solução para além de improvisar tudo com vulgares utensílios domésticos.
Mas apesar de todas as dificuldades, conseguiu acabar a poção. Para testá-la, Arenito derramou um pouco sobre a sua própria pata. Ao principio a única coisa que sentiu foi um formigueiro. Nada de extraordinário parecia ter acontecido. Aborrecido, decidiu esquecer o assunto e foi-se deitar. Porém, ainda mal tinha adormecido, despertou-o uma comichão terrível precisamente na pata onde tinha aplicado a poção. Levantando-se à pressa, Arenito expôs a sua pata ao luar que entrava por uma das janelas do seu quarto e verificou atónico que a maior parte do pêlo desta tinha crescido bastante, aproximadamente cerca de dois centímetros.
Apesar de ter saído um pouco mais fraca do que o esperado, a sua tentativa a fermentar um preparado mágico tinha sido bem sucedida. Ao aperceber-se de que conseguia criar magia com os seus próprios cascos, começou a dedicar a maior parte do seu tempo livre à alquimia. Fazia tudo o que podia às escondidas, em parte porque gostava de privacidade, mas sobretudo porque temia a reacção dos outros póneis.
A diferença entre uma poção e uma simples sopa era a utilização de ingredientes com poder mágico. Ao misturar esses ingredientes com outros sem qualquer tipo de poder, a sua ressonância mágica alterava-se de uma forma previsível. Assim que achou ter compreendido o suficiente, Arenito tentou criar uma poção que fosse sua de raiz. O livro não tinha nenhumas instruções de como o fazer, mas tinha explicações detalhadas sobre todos os passos das poções apresentadas, inclusive das ressonâncias dos ingredientes mágicos e de como se modificavam ao longo de todo o processo. Isso dava-lhe algo com que pudesse trabalhar. Arenito meteu os cascos à obra. Criando equações, misturando variáveis, brincando com os ingredientes, construiu uma cadeia de reacções que tecia magia pura num feitiço contido num liquido. Tal e qual como uma sinfonia, que é criada ordenando sons estridentes numa bem cuidada sequência que originará uma bela musica, capaz de despertar em qualquer pónei alegrias e tristezas.
Arenito demorou alguns dias a criar a formula duma poção que supostamente faria os olhos de qualquer pónei que a bebesse irradiar luz. Porém, não foi a única coisa que conseguiu. Obteve a sua marca por ter criado aquela fórmula, um almofariz para onde vertia uma pauta ondulada, que em vez de notas musicais possuía símbolos místicos. Assaltado por sentimentos contraditórios, Arenito encontrava-se extasiado por ter adquirido a sua marca e por o seu talento ser algo tão excitante como a alquimia. Também ficou bastante assustado. Ele já era bastante hostilizado da maneira que ele era. Agora, possuindo uma marca relacionada com magia, algo que os póneis terrestres não compreendiam e temiam compreender, seria marcado verdadeiramente como um alienígena.
Os seus medos foram bastante fundamentados. Ao principio ainda pensou se seria melhor dizer que a sua marca era outra coisa, como uma tigela de sopa ou uma medusa, mas os seus pais nunca acreditariam que ele tinha talento para a culinária e nem sabiam o que era uma medusa. (Nem o que era o mar, já agora. Naquela região era só planícies, montanhas e florestas por várias centenas de quilómetros em todas as direcções.) Arenito acabou por dizer que a marca lhe tinha aparecido de repente e que não sabia do que se tratava.
Não acabou por lhe servir de muito. Ao principio a sua marca passou a ser apenas mais uma das suas esquisitices, um símbolo da sua loucura e excentricidade. Por um tempo pareceu que o seu talento especial não lhe traria problemas. Porém, a alquimia nunca foi um passatempo muito discreto. Exigia bastante tempo para recolher uma boa provisão de ingredientes e para destilá-los correctamente era necessário montar um laboratório minimamente decente. Arenito possuía alguma privacidade no seu quarto, mas contava mais com a sorte do que qualquer outra coisa para não ser descoberto. E como todos os póneis devem saber, a sorte nunca dura para sempre.
O primeiro a descobrir o seu segredo foi Cascalho. Acidentalmente interrompeu Arenito enquanto este preparava uma poção no seu quarto. Na altura não ligou muito ao que viu, para ele não passava de mais um disparate em que o seu irmão mais novo decidira desperdiçar tempo. Porém, não muito tempo depois, os seus pais começaram a desconfiar das suas saídas à floresta local, algo que Arenito não podia evitar se queria arranjar muitos dos componentes para as suas poções. Eventualmente descobriram o porquê. Sabendo que um dos seus filhos praticava feitiçarias dignas de qualquer unicórnio deixou-os bastante escandalizados e para garantir que Arenito jamais voltasse a pensar em tal assunto decidiram mantê-lo ocupado aumentando as suas tarefas na quinta.
Trabalhar numa quinta de pedras nunca foi um trabalho fácil para um jovem potro, mas para o frágil Arenito era um autentico pesadelo. O esforço constante deixava-o esgotado, tanto física como psicologicamente. Para tornar tudo pior, o seu irmão andou a espalhar por toda a vila o que Arenito tinha andado a fazer. Com o verdadeiro significado da sua marca revelado a todos os póneis da cidade, começou a ser constantemente gozado em plena rua, algo que anteriormente só acontecia de vez em quando. Em consequência disso, nem o pouco tempo livre que lhe restava o poderia aproveitar para relaxar. Começou a passar cada vez mais tempo fechado no seu quarto, onde ainda encontrava alguma privacidade.
Arenito recusava-se a acreditar que o seu talento, uma das poucas coisas que lhe animava o espírito, lhe era negado tão violentamente. Todos os póneis à sua volta repetiam-lhe constantemente que a magia era uma coisa de unicórnios e que a tarefa dos póneis terrestres era plantar a terra. Mas ele interrogava-se porque o seu destino o conduziu maneira tão certeira à alquimia. Ele acreditava que poderia ser um feiticeiro. Como não poderia?
Apesar do dia-a-dia deixar-lo excessivamente cansado, Arenito decidiu-se a fabricar a poção que lhe dera a sua marca. Antes tinha hesitado em fazer-lo, com medo de que a sua fórmula estivesse errada, mas naquela altura andava tão esgotado que já não temia envenenamentos ou efeitos secundários. Entre a constante vigilância de seus pais e a falta de tempo livre, demorou mais de uma semana a fazer uma tarefa que normalmente conseguia fazer em dois dias.
Mal a conseguiu terminar, fechou as janelas do seu quarto, apagou todas as velas, e com alguns receios ingeriu a poção que acabara de fazer. Ao principio nada parecia acontecer, mas passado um bocado os olhos de Arenito começaram a cintilar e a emitir luz. A poção era fraca, os seus olhos não emitiam muita luz e sentia um ardor na vista, mas a sua poção, feita com a sua fórmula, funcionava. Arenito ficou simplesmente felicíssimo. Porque razão não ficaria? Afinal, quantos místicos conseguem acertar à primeira tentativa no seu primeiro feitiço de sempre?
No fim de contas todos os outros póneis estavam completamente errados. Arenito era um feiticeiro, quaisquer duvidas que ainda poderiam existir tinham-se dissipado. No entanto ele sabia muito bem que nunca poderia ser feliz naquela cidade. Nem sequer poderia ser infeliz naquela cidade. Qualquer coisa que ele aspirasse a ser ou a fazer seria impedido por todos os póneis, inclusive a sua própria família. Para todo o sempre seria forçado a ser um pónei que nunca conseguiria ser. Arenito não via mais nenhuma solução à sua frente. Por mais estúpido que lhe parecesse, ele teria que fugir. Quanto mais cedo, melhor, pois temia que em breve nem lhe restaria forças para isso.
No canto Sul do seu quarto, debaixo do chão por baixo dum armário, estavam algumas das poções que Arenito fizera. Entre elas havia uma poção de invisibilidade. Ao principio daquela noite Arenito fez um saco improvisado com um cobertor, encheu-o de comida, pegou no seu manual de poções e em alguns dos seus próprios apontamentos, ingeriu a poção e invisível saiu para a rua e fugiu de Inferno. Àquela hora não havia nenhum pónei acordado mas Arenito sentia um medo terrível de ser avistado e só tinha conseguido fugir a coberto da sua invisibilidade. Com um conhecimento sobre o mundo bastante limitado, somente a floresta poderia oferecer-lhe algum refugio.
Apesar de ter visitado regularmente aquela floresta, Arenito nunca estivera lá durante a noite. Definitivamente nunca tinha dormido lá. Cansado, deitou-se por baixo de grande arbusto e adormeceu. Estava com frio, deitado em cima de terra molhada e com medo do escuro, de qualquer animal selvagem que pudesse andar por lá e das incertezas do amanhã, mas tudo isso eram coisas com que ele podia lidar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Os póneis bonzinhos vão para o Inferno" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.