Os póneis bonzinhos vão para o Inferno escrita por Maurus adam


Capítulo 1
Livro 1 Capitulo 1 - Tudo começa com marcas


Notas iniciais do capítulo

Nem acredito que demorei mais de um ano a escrever isto. Definitivamente não estou talhado para ser escritor. Para tornar tudo pior, fiquem sabendo que demorei cerca de uma semana a escrever cada um dos dois primeiros capítulos. Depois disso a minha cadência foi caindo até que se tornou uma luta para digitar algo mais do que um par de frases por dia. Juro que nunca mais me meto numa destas.
De qualquer das formas, consegui terminar este conto. Comecei a escrevê-lo durante a paragem a meio da quinta temporada. Planeei escrever somente o equivalente ao livro um e terminar com um capítulo final que equivaleria ao livro dois. Felizmente para todos vocês, o material desse capítulo era simplesmente muito e demasiado complexo, por isso acabei por criar um livro novo. Essa é a principal razão porque muitos dos capítulos do segundo livro parecem um bocado 'magros'. A noção aqui de livro é puramente organizacional. Ambos fazem parte da mesma história, sendo cada um deles incompreensível sem o outro.
Queria também aproveitar para dizer que algumas das páginas da internet onde vou disponibilizar este conto têm um sistema de classificação baseado em etiquetas. Esta história não é propriamente violenta ou deprimente. Apesar de tudo, tem ligeiras referências a cadáveres e a bulling, por isso acho prudente etiquetá-la de maneira apropriada para evitar que almas extremamente sensíveis lhe pousem acidentalmente os olhos em cima. Só não estejam à espera de nada muito escandaloso.
Quanto aos protagonistas, acho melhor descrevê-los aqui, já que fisicamente não são muito descritos durante a história.
Efémero Óptico é o protagonista principal. É um pónei terrestre com pêlo cinzento claro, crina castanha escura e olhos verdes. A sua marca é um meio circulo com linhas onduladas e símbolos estranhos que tem a bizarra particularidade de estar constantemente a sumir e a surgir. Ele possui uma oficina de relojoaria em Poneivile onde trabalha. A sua personalidade é muito genérica. Gostaria de poder dizer que o fiz de propósito para o leitor se poder projectar nele, como muitos jogos de vídeo costumam fazer. Infelizmente, a triste verdade é que não consigo criar muito bem personalidades masculinas. Ponho as culpas em cima da Lauren Faust e de ter desperdiçado literalmente centenas de horas a ver MLP. (E ainda há pessoas que me chamam de machista. Dá para acreditar?)
Cerejinha é uma pónei terrestre. Possui pêlo cor-de-rosa e olhos azuis, e tem a crina multicolorida, com vários tons de dourado e rosa. A sua marca é uma mancha negra com uma estrela branca no meio. Ela ganha a vida como pintora, mas a sua verdadeira vocação é ser uma ninja. É claro que ela é mais próxima dum ninja da vida real e não dos que se costuma ver nos filmes e jogos de vídeo. Ela é um reflexo de alguém que busca o auto-conhecimento. Precisava de algo que contrastasse com a imagem estereotipada que se tem dos ninjas e como uma das principais características dum bom filósofo é o bom humor, a primeira coisa que me veio à cabeça foi a Pinky Pie nunca mais me consegui livrar dela. Espero que não me acusem de plágio.
Violeta é uma unicórnio. Tem pêlo azul vivo, crina violeta (O nome dela tinha que vir de algum lado.) e olhos vermelho acastanhados. A sua marca é uma flor de maracujá. Ela vive como escritora de romances baratos. (Mas não lhe digam isso.) Não sei porquê, mas ela faz-me lembrar a Coco Pommel.



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—Então diz-me, como vai ser o teu novo livro? - perguntou a Cerejinha à Violeta.
—Ó, enfim... É um novo romance maravilhoso sobre o amor entre uma égua chamada Lídia e um garanhão misterioso da alta sociedade. Ainda não decidi o nome dele, mas vou torná-lo num meio termo entre um estado apático e um adolescente amorosamente carenciado. Estava a pensar chamar-lhe "Rosas Apaixonadas", ou então "Rosas Da Paixão".
—Resumindo, vai ser outro livro lamechas.
—O que... o quê? - Violeta sentiu-se ofendida, a sua reacção demonstrava-o. - Dito-o assim até parece que é uma coisa má.
Entretanto Efémero tinha voltado de dentro do Canto do Cubo de Açúcar tentando equilibrar três pratos com bolo na garupa. Pousou-os na mesa, um à frente de cada um dos póneis. Ele e Cerejinha começaram a comer os seus. Por sua vez, a Violeta continuava chateada e começou a descarregar no Efémero.
—Imagina o que ela disse. Disse que os meus romances são lamechas. Sei que não são nenhum êxito nem me vão tornar famosa, ou algo assim, mas são romances com qualidade. Vendem-se bastante bem em Manehattan e Las Pegasus. Os meus livros lamechas, sinceramente...
—Bom... Tens que confessar que esse género de histórias nunca varia muito.
—Como não varia muito? Têm drama, romance, aventura, paixão...
—Bem... sim. Mas repara, ou é sobre um triângulo amoroso ou sobre alguém emotivo apaixonado por alguém frio ou sobre um amor que por qualquer razão simplesmente estupida é proibido. Os exemplos mais criativos do que isto são... - Efémero parou de repente. Tinha-se apercebido que estavam sozinhos. - Onde... onde está a Cerejinha?
—Mas ela está... Óh, pois.
Ambos olharam para a cadeira vazia onde antes a Cerejinha estava sentada. Encontrava-se vazia, somente a sua mochila preta pendurada no encosto e um pires com migalhas testemunhavam que a sua amiga tinha lá estado. Não era a primeira vez que que ela fazia algo deste género, mas normalmente despedia-se primeiro ou então, mais raramente, usava uma das suas patenteadas bombas de fumo.
Efémero estendeu a pata e pôs-se a apalpar o ar, como se ela pudesse ter-se tornado invisível (E pelo que ele conhecia dela até que era possível.). Violeta olhou em redor mas nem sinais de Cerejinha.
—Onde ela se meteu? - perguntou Violeta - Será que se foi embora?
Efémero não lhe respondeu. Limitou-se a espreitar para debaixo da mesa e mais uma vez pôs-se a apalpar com o casco para certificar-se que ela não estava ali. Depois retornou a sua atenção de novo para a cadeira. Ela não se poderia ter-se disfarçado de cadeira, pois não? Levantou-se e espreitou para dentro da mochila, demasiado pequena para a Cerejinha se ter lá escondido. Lá dentro estavam apenas uns quantos rolos de papel e tecido, o seu não muito famoso fato preto, pinceis, uma panóplia muito diversa de frascos de tinta e alguns pequenos sacos com sabe-se lá o quê.
—Ó, minha querida Celestia... - suspirou Violeta - Aquela égua ainda me mata de preocupação. Onde é que ela estará?
—'Esteu' 'equi'.
—Cerejinha? Onde estás? - perguntou Efémero enquanto ele e Violeta olhavam à volta.
—'Equi'. 'Esta' 'elgum' 'penei' a 'olare'?
Antes que pudesse receber qualquer resposta, a cabeça da Cerejinha surgiu da parede do Canto do Cubo de Açúcar segurando um pires com uma fatia de bolo na boca. Rapidamente olhou em volta, e vendo que mais nenhum pónei se encontrava na rua, enrolou a folha de papel com a parede pintada onde se encontrava escondida, enfiou-a na mochila, pousou o bolo na mesa e sentou-se a comer.
Efémero limitou-se a sentar e a olhá-la, Violeta, essa estava simplesmente atónica, com a boca aberta. A Cerejinha apercebeu-se das reacções dos amigos, engoliu o pedaço de bolo que estava a mastigar e perguntou:
—O que é que se passa?
—Qual era a tua ideia? Desapareceres assim sem mais nem menos... - perguntou o Efémero. A Violeta continuava praticamente sem palavras.
—Estava com fome e fui comprar outra fatia.
—Comprar outra fatia? E não podias fazer isso como um pónei normal?
—E o que é que isso tinha de divertido? Ademais, todas as oportunidades são boas para praticar.
—Sabes? Já não quero pensar nisso. Simplesmente desisto. - disse o Efémero.
—Mas porque insistes em continuar com isso? - finalmente a Violeta perguntou - Todo esse treino, todo esse esforço. Porque te sujeitas a tudo isso. De que te serve? Quer dizer, não é que haja muita utilidade para um ninja aqui em Poneivile, ou em qualquer outro lado, já agora.
—O destino é uma ferramenta mas é da viagem que se faz a vida. - disse Cerejinha com um sorriso discreto. Os seus olhos brilhavam, era óbvio que adorou que lhe fizessem aquela pergunta. Porém, isso só confundiu ainda mais a pobre da Violeta.
—Mas... mas o que quer isso dizer?
—É um provérbio. Quer dizer que o importante não é o que um pónei ganha com o que faz, mas a experiência do que faz. Cada dia que passa a minha habilidade aumenta, mas isso não é nada comparado com o efeito que tem na minha consciência, no meu auto-conhecimento, no meu exo-conhecimento...
Desta vez o sorriso da Cerejinha não foi tão discreto, estava excitadíssima. Era óbvio que a Violeta não percebia nada do que a amiga estava a falar e só conseguiu responder um tímido "Ó... está bem, então.", mas no seu intimo apercebeu-se de que havia um aspecto da Cerejinha que ela era incapaz de compreender.
Bem, se vocês não se importam, - continuou a Cerejinha. - tenho que ir para casa. Lembrei-me que tenho um quadro para entregar hoje.
—Espera ai. Vou contigo se não te importas. - disse Efémero. Depois virou-se para a Violeta. - Também vens?
—Vão vocês. Eu ainda vou acabar de comer. - Na realidade Violeta ainda nem sequer tinha começado. A sua fatia de bolo estava intacta, se se ignorar o facto do Sol já ter derretido a cobertura de chantili.
Cerejinha e Efémero foram caminhando enquanto conversavam sobre os normais tópicos aleatórios. Entretanto, aproximavam-se da periferia de Poneivile. Cercada por uma sebe estava a casa da Cerejinha. Uma casa simples, de madeira, com um só andar. A quase totalidade das paredes era ocupada por janelas. Tinha sido construída de raiz para ser um atelier de pintura.
—Cerejinha, Cerejinha...
Ambos olharam para trás. Uma pégaso loura, de crina e cauda dourada voava na direcção deles. Aterrou ao lado da Cerejinha e cumprimentou-a:
—Olá Cerejinha. O quadro que te pedi, já está pronto?
—Inânia, olá. O quadro? Sim , terminei-o ontem. Já deve estar seco.
Cerejinha abriu a porta, entrou seguida pela Inânia e por Efémero. Para além de um par de armários, o interior estava cheio de cavaletes com quadros, a maior parte ainda por acabar, iluminados pela abundante luz solar que entrava pelas janelas. Sem paredes ou portas, a única divisão encontrava-se separada por uma cortina pendurada no tecto. Esta separava o quarto e a cozinha, estranhamente pequenos para uma casa daquele tamanho. Parecia sem duvida uma casa de artista, de algum pónei cuja vida era completamente dedicada à pintura. Pelo menos para qualquer pónei que desconhecesse o verdadeiro passatempo da sua moradora.
Inânia aproximou-se dum quadro. Este mostrava a casa de Inânia, mas invês de se localizar em Poneivile, estava pintada no céu, em cima de uma nuvem. A luz do pôr-do-Sol dava à casa um aspecto mais radiante, enquanto punha o resto da paisagem num aspecto um tanto ou quanto soturno. O resultado era uma casa muito mais convidativa que o seu modelo real.
—Cerejinha, está magnifico. - exclamou Inânia.
—Deixa-me ver... - disse a Cerejinha enquanto observava o quadro atentamente. - Sim... Está completamente seco. Esteja à vontade para o levar quando quiser.
—A tua perícia melhora com a idade. És definitivamente a melhor artista em Poneivile.
—Obrigada.
—Tenho andado para perguntar. A tua marca, o que significa? Quer dizer, para uma pintora não deveria ser algo mais colorido?
—Bem, o borrão negro representa as tormentas e as perturbações que todos os artistas sentem e a estrela significa o meu desejo de me expressar.
—Bem, então mais uma vez obrigada.
Inânia pagou-lhe com um saco de bits, pegou no quadro o melhor que pôde com os dentes e saiu pela porta fora. Efémero ficou a olha-la até ela se ter afastado e virou-se para a Cerejinha.
—Não te chateia mentir sobre a tua marca?
—Não menti... muito. Só não lhe disse a verdade.
—Pelo menos a tua marca faz sentido. A minha só lampeja e lampeja... - disse Efémero. Ambos olharam para o seu flanco. A sua marca, uma tigela castanha com linhas tortas e símbolos estranhos a saírem dela, limitava-se a aparecer e desaparecer a intervalos irregulares. Parecia que estava indecisa se o Efémero já devia ou não tê-la ganho. Continuaram a observá-la durante um bocado, como se tivessem esperança de algum deles ter uma epifania que lhes explicasse esse estranho fenómeno. Depois Efémero continuou...
—A propósito, nunca me contaste como ganhaste a tua marca.
—Bem, é uma longa história.
—Tenho a tarde toda livre.
—Já que insistes. - Aquela frase não enganou ninguém. Era óbvio que a Cerejinha estava a adorar falar disso. - Passou-se à muito tempo. Violeta e eu eramos umas potrinhas. Bom, havia um quarteto de rufiões que gostavam de incomodar os outros potros, deviam ser dois ou três anos mais velhos do que nós. - Cerejinha parou um bocado a pensar. - Estranho, não me lembro do nome de nenhum deles... Mas quem quer saber. - continuou - A Violeta tinha uma boneca chamada Trancinhas, o que era estranho, porque não tinha tranças, aliás, não tinha cabelo quase nenhum. Um dia eles decidiram que seria divertido rouba-la. A Violeta adorava aquela boneca. É escusado dizer que ficou destroçada. Chorou como, enfim, como uma potrinha assustada. Eles estavam a aferroa-la e a atirar a boneca ao ar e eu não sabia o que fazer. Agora não parece mais do que um sonho longinquo, mas naquela altura foi horrível.
A Cerejinha parou por um momento. Parecia abatida. Por fim continuou:
—Eles levaram a boneca. Durante o resto do dia simplesmente não conseguia tirar aquilo da cabeça. Sabia que eles iam passar a noite a acampar numa quinta de pedras abandonada. Hoje em dia aquilo já foi invadido pela Floresta Da Liberdade, mas naquele tempo era uma encosta constituída por rochas e pedregulhos. Eu lembrei-me que tinha lido algures que os ninjas usavam pinturas para se camuflarem e achei que era uma boa ideia. Pintei um padrão das rochas que havia na pedreira numa folha de papel grande o suficiente para me cobrir. Não saiu lá muito bem mas no escuro e ao longe conseguia ocultar-me. Esperei pelo principio da noite para escapulir pela janela do meu quarto. Não havia nenhum pónei na rua mas eu estava aterrorizada. Se me apanhassem ia tudo por água abaixo, para não falar no que os meus pais iam dizer. Para evitar que algum pónei me visse comecei a caminhar por entre as sebes e a aproveitar as sombras que as casas faziam no luar, e comecei a sentir-me mais segura e confiante.
Ela sorriu. Os seus olhos brilhavam de emoção. Efémero observava-a atentamente. Se bem que a Cerejinha continuasse imóvel e a sua voz fosse calma, era inegável que se encontrava excitadíssima.
—Atravessava as ruas com cautela para evitar ser vista, saltando de sombra em sombra, arbusto em arbusto, beco em beco... Saí de Poneivile e percorri cerca de meio quilómetro de campo. Quando cheguei à quinta de pedras o meu coração estava aos pulos. Eu podia notar-los ao longe, pois tinham acendido uma fogueira e falavam bastante alto sobre qualquer coisa... ou coisa nenhuma. Desenrolei a minha pintura e tapei-me com ela, depois comecei a rastejar ao longo da encosta, evitando zonas que não se parecessem com a camuflagem. Demorou algum tempo mas consegui chegar a uma rocha enorme próxima deles e escondi-me atrás dela. Estava assustadíssima. Não sabia o que fazer se me encontrassem. Apesar de ainda estar a uma boa distância deles, continuei a cobrir-me com a camuflagem. Devo ter ficado ali pelo menos uma hora. Felizmente o chão era demasiado desconfortável para conseguir dormir, e as pedras pontiagudas ajudaram. Primeiro as vozes deles pararam, pouco depois a luz da fogueira começou a diminuir e então eu espreitei por detrás da rocha. Tinham adormecido. Sai debaixo da pintura e comecei a andar. O corpo doía-me por ter estado tanto tempo deitada sobre pedras. Avançava calmamente, calculando e raciocinando cada passo, cada movimento. Não podia fazer o mínimo barulho. Finalmente cheguei ao pé deles e comecei a apalpar as coisas deles com os cascos. Finalmente encontrei a Trancinhas metida num saco com rabanetes. - A Cerejinha pareceu hesitar durante um momento. - Nunca percebi porque é que eles tinham tantos rabanetes. Continuando... puxei a boneca o mais cuidadosamente que pude e sai dali, casco-ante-casco. Voltei para trás da tal rocha, cobri-me com o camuflado e voltei para casa. Eles continuavam a dormir, eu não precisava do camuflado para nada mas não queria arriscar.
A expressão na cara da Cerejinha mudou. Continuava a olhar o Efémero fixamente mas parecia que estava mais concentrada nos seus próprios pensamentos do que nele. Após um breve momento de silêncio, desviou os olhos do amigo e voltou a falar. Mas desta vez com um sussurro, como se estivesse a falar para o próprio universo.
—Não conseguia dormir. Estava deitada na minha cama e não conseguia dormir. Continuava a rever o que se tinha passado, como me sentia. Tinha aprendido a utilizar de cór e salteado músculos que até então não sabia que possuia. Capacidades que até ali nunca imaginava que um pónei pudessem ter tornaram-se completamente naturais para mim. Tinha o corpo todo arranhado e dorido, e nunca me tinha sentido tão bem. Estava completamente cansada e sentia-me capaz de galopar durante horas. A sensação de sono era enorme, mas estava completamente desperta e focada. Encontrava-me emocionada e assustada ao mesmo tempo, porém não me lembro de alguma vez ter estado tão calma em toda a minha vida. Este misto de sensações antagónicas pareciam um estado de caocidade completa, mas eu estava em perfeita harmonia comigo própria. Parecia que estava completamente louca, mas estava sana, sana o suficiênte para ter a certeza absoluta que era isto que queria fazer com a minha vida.
Efémero estava simplesmente a tentar digerir tudo aquilo que tinha ouvido. Porém, antes que pudesse dizer ou até pensar alguma coisa, Cerejinha voltou ao seu estado familiar e continuou num tom mais alegre:
—Enfim, no dia seguinte, quando acordei já tinha a marca. A própria Violeta ficou mais interessada nela do que em ter recuperado a boneca.
Efémero manteve-se pensativo durante um bocado. Acabou por se despedir e regressou à sua casa. Pelo caminho reviu o que tinha ouvido. Conhecia a Cerejinha suficientemente bem para esperar dela o inesperado, por isso não estava muito surpreendido. Na realidade aquela história parecia explicar muito do que sabia dela. Uma potra ir fazer uma demanda perigosa a meio da noite, sozinha, no meio de nenhures, sem preparação, e voltar victoriosa com se não fosse nada? Sim senhor, era a Cerejinha, sem duvida nenhuma. Mas e ele? Olhou para o seu próprio flanco. Estava vazio, então a sua marca apareceu, como para dizer olá, e uns instantes depois voltou a desaparecer.

***********************

No dia seguinte Efémero levantou-se mais cedo do que o costume. A conversa do dia anterior com a Cerejinha tinha-o deixado pensativo acerca da sua marca. Aquilo definitivamente não era natural e ele estava motivado para descobrir como a ganhara. O problema é que desde que se lembrava sempre a tivera. Consequentemente, a única fonte de informação que ele poderia ter era o orfanato de Poneivile, onde tinha crescido. Dirigia-se para lá quando uma égua se aproximou dele.
—Bons dias.
—Óh... Violeta, bom dia. Não te tinha visto.
Efémero nem tinha parado. Continuava a trotar e Violeta acompanhava-o.
—Então, como vai o teu romance?
—Enfim... - disse a Violeta revirando os olhos. - Simplesmente não consigo escrever nada hoje. Uma espécie de bloqueio de escritora. Acho que a culpa é daquela conversa de ontem.
—Bem... Desculpa lá, então. - Efémero não conseguiu aperceber-se se a Violeta estava a brincar ou a falar a sério. Na realidade, estava demasiado preocupado com a sua busca para pensar em qualquer outra coisa.
—Para onde vais?
—Vou ao orfanato. Tenho que ir lá saber umas coisas.
Violeta respondeu com um "E o quê, posso saber?" mas Efémero nem reparou. Continuava absorvido nos seus pensamentos. A Violeta tentou chamar-lhe a atenção várias vezes.
—Efémero.
Nada.
—Efémero.
Continuava tipo zombie.
—Efémero.
Finalmente Efémero voltou a reparar em Violeta.
—Ehn? O que foi?
—Apagaste-te durante um bocado. O que é que se passa contigo? Estás a deixar-me preocupada.
—Ó, desculpa. Estava a pensar no que a Cerejinha me contou ontem sobre como ganhou a marca dela.
—Essa história... Eramos apenas potras. Ela poderia ter-se magoado, ou pior. - Violeta falava daquele jeito mas na verdade ainda tinha a Trancinhas, guardada como um tesouro. Mesmo depois da boneca já não lhe dizer nada ainda lhe lembrava a Cerejinha, e ela não conseguia desfazer-se de algo que a sua amiga tinha arriscado tanto para recuperar.
—Já agora, como é que ganhaste a tua marca?
—Quando era uma potra gostava muito de ler. Ao entrar na adolescência comecei-me a interessar por romances e um dia a marca apareceu. - disse ela. - Sabes? A flor de maracujá também se chama flor da paixão. Soube imediatamente o que significava mal lhe pus a vista em cima.
—Bem... Depois da conversa que tive ontem com a Cerejinha apercebi-me que não sei nada da minha marca. Se a marca é um símbolo que aparece quando descobrimos algo sobre nós próprios então que sei eu sobre mim? Nada. - concluiu Efémero. - Por isso é que tenho que vir aqui.
Ambos pararam à porta do orfanato. Estava muito diferente do que o Efémero se lembrava. Possuía o mesmo edifício e o mesmo terreno, mas o aspecto era completamente diferente. Quando tinha sido adoptado, à onze anos atrás, era completamente branco, mas agora estava pintado de azul marinho. O telhado também tinha aspecto de ter sido feito de novo e conseguia-se ver que no jardim tinha sido instalado baloiços e um escorrega. Na realidade não era um mau sitio para uma criança viver, só não era um substituto para uma família verdadeira. Efémero ainda se lembrava muito bem do dia em que tinha sido adoptado. Tinha-se sentido bastante confuso na altura, mas assim que se acostumou aos seus novos pais sentiu-se um pónei completamente novo e veio a crescer num ambiente muito feliz.
O orfanato parecia um pouco pequeno, mas para uma cidade como Poneivile era mais que suficiênte. Efémero tinha ouvido dizer que em muitas cidades os orfanatos estão a abarrotar, e às vezes têm quatro ou cinco crianças a morar no mesmo quarto. Ele simplesmente não sabia o que o assustava mais, se o facto de manterem pobre potros nessas condições ou de haver assim tantos órfãos.
Entraram ambos no orfanato. Efémero dirigiu-se a uma égua castanha que parecia estar a arrumar um armário.
—Desculpe-me.
—Sim? O que deseja?
—Já vivi aqui alguns anos atrás e gostaria de ver todas as informações sobre mim que possam ter, se faz favor. A minha certidão. - disse Efémero, enquanto lhe entregava a sua certidão de adopção.
A égua pousou a certidão numa mesa e leu-a. - Hum... Acho que já não temos registos tão antigos. - disse. Depois retirou-se por uma porta. Efémero e Violeta ficaram sozinhos por um bocado. O orfanato parecia demasiado vazio e silencioso. Por outro lado, nessa altura a maior parte dos órfãos devia estar na escola. A égua voltou e disse:
—Lamento muito, mas já não possuímos os seus registos. Por questões de espaço só os mantemos por alguns anos.
—Mas não há nada que possa fazer? Não haverá nenhum pónei com quem eu possa falar?
—Lamento, mas já faz mais de uma década. Não há nenhum pónei que esteja aqui à tanto tempo.
É inutil dizer como Efémero ficou. Saiu do orfanato abatidíssimo, seguido por Violeta. Esta tentou animá-lo:
—Vá lá Efémero, não fiques assim. Já tens essa marca à tanto tempo, porque te preocupas com isso agora? Mais tarde ou mais cedo vais descobrir o que é.
Efémero não lhe ligou. Ele lembrava-se de um empregado chamado Coração Amarelo do tempo em que lá tinha vivido. Na realidade tinha deixado de trabalhar lá antes dele ser adoptado. Mais importante achava que já o tinha visto algumas vezes algures no sudoeste de Poneivile desde então. Despediu-se da Violeta e pôs-se a caminho. Esta ficou a olha-lo, sem compreender porque o amigo estava a gastar tanto tempo e esforço naquilo.
Encontrar a morada do Coração Amarelo não foi muito difícil. Só teve de perguntar a meia dúzia de póneis antes de encontrar alguém que o conhecia. Dirigiu-se para lá e bateu à porta. Pouco depois Coração Amarelo apareceu. Sem surpreender, estava muito mais velho do que Efémero se lembrava. Ao vê-lo disse:
—Sim, meu rapaz?
—Bons dias. É o senhor Coração Amarelo, não é? Queria...
Coração Amarelo não lhe deu tempo de dizer mais nada. Tinha reparado no seu flanco e exclamou. - Mas... Efémero Óptico! Entre, entre...
Efémero entrou. A casa tinha aspecto de precisar de ser limpa. Estava cheia de pó. Apesar disso estava arrumada. Espalhados por cima de cómodas e mesas estavam dezenas de vasos e taças. As paredes estavam cheias de fotografias, a maior parte delas parecia ter algumas décadas. Resumindo, era uma típica casa de um velho pónei.
—Deseja alguma coisa? Um chá? - continuou Coração Amarelo.
—Não, não. Estou bem assim. - disse Efémero. - O senhor reconheceu-me.
—Ó sim. Passaram muitos potros enquanto estive empregado no orfanato, mas isso... - disse ele enquanto apontava para a marca de Efémero. - ...não é uma coisa que se esquece facilmente.
—Era por isso que estou aqui. Queria saber como a ganhei, e porque ela pisca dessa maneira.
—Então lamento que tenhas perdido o teu tempo, por que já a possuías quando entraste no orfanato.
—Er, como? Mas com que idade eu entrei lá?
—Provavelmente tinhas acabado de nascer. Lembro-me bem dessa noite. Todos os póneis acordaram com algumas pancadas fortíssimas. Parecia que queriam derrubar uma parede à coiçada. Tudo quanto era potrinho bebé começou a chorar. Levamos um montão de tempo para os sossegar, mas depois disso ainda ouvíamos um choro. Fomos à porta e lá estavas tu, embrulhado em meia dúzia de trapos, a chorar desalmadamente. Se tinhas uma semana de vida já era muito. Mas o mais surpreendente é que já tinhas a tua marca, e ela estava constantemente a aparecer e desaparecer, exactamente como agora. Aliás, foi por isso mesmo que te decidimos chamar Efémero Óptico.
Efémero ficou pensativo. O facto de possuir uma marca defeituosa desde nascença fazia sentido, e talvez fosse por isso que tivesse sido abandonado. Mas por outro lado que é que seria capaz de abandonar um bebé por causa disso? Já agora, quem seria capaz de abandonar um bebé assim, qualquer que fosse a razão? Apesar de tudo, nada do que Coração Amarelo lhe tinha dito o satisfazia. Este olhava-o com uma expressão engraçada, como se tentasse adivinhar o que lhe ia na mente.


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