A Opositora escrita por ZaraBuehler


Capítulo 4
Quatro




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Quando cheguei em casa, depois de retornar da floresta, senti que as coisas já não eram mais as mesmas. 

Eu não era uma sem virtude. A coisa que eu mais desejava se concretizou, porém, com enorme "porém". 

Mesmo que o governo nazista concluísse que eu não era um perigo, eles iriam me estudar. Eu era, de fato, algo novo e sem explicação. Tinham criado apenas 26 mutações, todas muito bem catalogadas e monitoradas, como simplesmente uma vigésima sétima surgiu?

Eu definitivamente não podia me revelar.

A última coisa que eu queria era ser levada para algum macabro laboratório Nazista nos confins do mundo e ser aberta, monitorada, estudada... Estremeci só de imaginar. 

Então, um medo novo me atingiu: como eu conseguiria esconder isto, amanhã? 

Minhas mãos começaram a suar. Diante daquilo, preferi mil vezes ser uma sem virtude.

Eu teria que dar um jeito de passar a impressão de uma sem virtude, no dia seguinte, ou estaria extremamente encrencada.

                                                             ✸

Pela manhã, acordei com a mão da minha mãe me sacudindo. 

— Que milagre, você acordando em casa. - Disse ela. 

Levantei de supetão, esperando que minha descoberta sobre meu poder tivesse sido um sonho. Mas não foi. 

— Bom dia, mãe.

Ela respondeu com um beijo e então saiu. 

Olhei para o relógio de cabeceira que marcava 07:02. Dentro de umas horas eu poderia estar acabada como uma garota que possuí uma habilidade poderosa e desconhecida ou salva com um atestado de sem virtude. Eu já não preferia mais a primeira opção.

Levantei e senti o peso nas costas de todo aquele dia, como se tivesse vivido ele antes para saber o quanto ele pesaria. 

Qualquer uma das opções acabaria sendo ruim para mim, de qualquer forma. Mesmo assim, gostei de ter o poder de decisão em minha mãos: revelar-me ou esconder-me.

Tomei um banho, coisa que não costumava fazer antes de ir pra escola, e vesti o uniforme sem graça da Juventude Hitlerista, preocupando-me em ficar um pouco mais apresentável do que o de costume. Eu poderia ser descoberta naquele dia e, então, levada embora. Não queria ir imunda. 

Não comi nada no café da manhã e apressei meus pais enquanto eles comiam. 

Nós seguimos a pé até a escola, e quase congelamos no inverno alemão.

A prédio sem graça do século XXI estava decorado com inúmeras bandeiras nazistas e as cores vermelha, branca e preta. SS moviam-se de um lado para o outro, trajando seus uniformes pretos e estalando firmemente suas botas no chão. Imaginei Brendan vestindo um desses uniformes. É, quem sabe. É a sua vontade. Ser um SS a serviço de um Usina Elétrica.

Corri o olhar pelas cadeiras que tinham sido dispostas de frente ao pequeno palanque, na tentativa de encontrar algum rosto conhecido e amigável. Conhecido eu achei, já amigável... Sarah estava sentada atrás da turminha dos idiotas populares. Dava uma gargalhada forçada com tudo que diziam e parecia estar mais interessada do que nunca no Scott. 

Desejei desesperadamente ter Brendan ou Fried ali comigo. 

Posicionei eu e minha família em uma das fileiras do meio, e pouco tempo depois a família do Brendan sentou logo na fileira de trás, cumprimentando todos da minha família.

A família Wonderberg possuía exagerados seis filhos. As famílias costumavam ser assim, com muitos filhos, porém, como eu era filha única, acabei me acostumando com a ideia de ter poucos filhos.

— Ela está tão grande e linda, Eliza! - Dizia a mãe de Brendan para a minha, enquanto me olhava de baixo para cima, como se quisesse registrar cada detalhe.

Aguentei os comentários clichês que os pais dos amigos costumam fazer e depois puxei o Brendan para perto de mim.

— Deve estar mil vezes mais nervosa. E se pegarem você? - Disse Brendan, preocupadamente. 

Incrível como Brendan sabia tranquilizar uma pessoa. 

Bufei.

— Nossa, você me tranquiliza muito, assim. - Falei.

Desviei o olhar de Brendan por um segundo e vi a família de Fried chegando, praticamente corri em direção a ela, mas não pela família dele em si, mas sim por ele.

Fried era o único capaz de me tranquilizar naquele momento.

Frau Müller vinha liderando na frente. Logo atrás dela, seu marido, Herr Müller, e em seguida os três filhos do casal. Fried desviou do caminho e veio em direção a nós.

— Helse, se algo der errado, você me promete que vai olhar em volta do local e achar uma saída? - Perguntou ele.

Afirmei com a cabeça.

— Sim. Farei exatamente isso. Irei tentar me passar perfeitamente por uma sem virtude. Pode deixar.

Tentei confiar nas palavras que eu disse, mas só confiava em não acreditar nelas. 

— Você é minha garota. Vai conseguir.

Fried me abraçou firmemente, como tinha feito na noite anterior, e senti que ia chorar. Agarrei sua cintura e espremi os olhos até a vontade passar.

— Se algo der errado, quero que saiba que eu te amo. - Falei, ainda agarrada nele.

— Eu também te amo, minha Hel.

Não me importei com os risinhos de Brendan bem ao nosso lado, que observava a cena com uma olhar de "sempre soube".

— Nossa, fazia tempo que não me chamava assim. - Falei, conseguindo soltar um sorriso.

— Nunca parei de pensar em você como a minha Hel. Mas o apelido, com o tempo, pareceu soar bobo para você. - Admitiu.

— Bobo é você. 

Apertei seu nariz com força.

— Vou sentir muito sua falta, no Curso Preparatório. Quem sabe não ficamos na mesma instituição, Hel?

Antes que eu pudesse responder, a mãe de Fried apareceu com Sarah, atrapalhando o nosso momento. 

— Olha só quem eu achei, a nora perfeita! - Disse Frau Müller, apontando para Sarah.

Sarah soltou risinhos irritantes.

— Acho que a sogra perfeita que me encontrou, na verdade!

Aquela melação toda me deu vontade de vomitar. Fried, pela cara, parecia sentir o mesmo.

— Por que estava agarrada com meu namorado? — A voz de Sarah soou irritada, porém trouxe consigo um risinho, o que amenizou a intensidade da pergunta.

— Jovens Hitleristas, seus pais e professores... - O SS administrador da escola começou a falar em cima do palanque. 

Salva pelo gongo.

Sentei entre minha mãe e Fried, que fez questão de não sentar na cadeira que sua mãe tinha guardado ao lado de Sarah. 

— Hora do discurso idiota. - Reclamou Fried.

— Acho que já sei decorado. Só vai mudar os nomes dos graduandos. - Cochichei em seu ouvido. 

E, depois que todos se acomodaram, o SS administrador recomeçou a falar. 

— Eu sou o Herr Schulmann, administrador dessa sede da Juventude Hitlerista aqui em nossa capital Ruswiastein, como muitos de vocês já sabem... Bem, primeiramente gosto de lembrar sempre do princípio dessa instituição, o nosso primeiro e eterno Führer, Adolf Hitler. - Ergueu o braço direito e fez o gesto já tão conhecido. - Heil Hitler. - Todos os outros fizeram o mesmo, inclusive eu, contra gosto. - É com muita honra que esse ano anuncio que o segundo centenário da volta do Reich está próximo! Devemos lembrar com honra do ano de 2055, quando nós, a força justa, os Nacionais Socialistas, os nazistas, tomamos de volta o que era nosso e começamos a ordem e o progresso em nosso mundo. Avançamos na tecnologia, mas sempre a unimos com a tradição, e vejam só o resultado... Famílias tradicionais mescladas com a facilidade que a tecnologia as deu. Respondam-me, meus caros, qual outra força no mundo possibilitou aos humanos a verdadeira evolução? Vejam as maravilhas que nós damos a vossas famílias, a vossos filhos... As mutações, a dádiva nazista. Desde 2074, monitoramos e procuramos evoluir com segurança as vossas grandiosas virtudes, para que o futuro desses jovens aqui presentes esteja sempre assegurado. A volta nazista! Aos Jovens! Aos poderes! Sieg Heil! Ao nosso atual Führer Torsten Brahe e sua família! 

O SS apenas parou para retomar o fôlego e ouvir as palmas que explodiram depois que foi anunciado o nome do Führer Torsten Brahe. As pessoas o adoravam tanto que muitas vezes saudavam com "Heil Brahe" ao invés do tradicional "Heil Hitler". O próprio Torsten fez um pronunciamento dizendo que abominava a troca da tradicional saudação, e que todos deveriam continuar saudando como Heil Hitler, apesar de admitir ficar lisonjeado. Eu, particularmente, odiava ambas.

— É com muito prazer que quero chamar nossos graduandos para subirem aqui e realizarem a tradicional entrega de canudos. Conosco, a jovem Hitlerista Alina Daionese...

Os nomes seguiram em forma alfabética e só parei para prestar atenção naqueles que me importavam de alguma forma.

— Brendan Wonderberg...

Um rosto sorridente com sarnas surgiu no alto do palanque, pegando seu canudo e pousando para a foto.

— Friedrich Müller...

Subiu ao palanque e olhou diretamente para mim, sorriu apaixonadamente e eu retribui, mas sem o mesmo entusiasmo.

— Helse Haperlaire...

Levantei de supetão, um tanto distraída, e segui pelo caminho de palmas que ia se formando durante a minha passagem.

Subi ao palanque, sorri fracamente e desci em direção à fila de recém graduandos que havia se formado.

— Parabéns! - Falou Brendan, enquanto me enchia de beijos. 

— Sarah Birgmann.. Scott Hilbert...

Os nomes nojentos foram anunciados quase no mesmo instante, provocando uma poluição no ambiente da fila dos recém graduandos.

— Os jovens graduandos vão ser direcionados para o tradicional Teste de Habilidades. - Disse Herr Schulmann. - Importante lembrar que o objetivo do teste é detectar a real habilidade de poder de cada um, e poder, então, treiná-los e fazer deles pessoas extremamente úteis para a sociedade. O poder e o nível de cada um pode ser essencial para algum setor da sociedade. E até mesmo os sem virtude passam pelo Processo Preparatório. O Governo está sempre com seus cidadãos...!

Nos explorar da melhor maneira. Pensei.

Diante das palavras "Teste de Habilidades", meu ouvido chiou. 

Era a hora. 

Fomos separados em dois grupos, divididos pelo gênero. Garotos de um lado e garotas de outro. A ordem era clara: o nome seria chamado e cada um ia até a sala correspondente e realizava o teste. Simples, mas não para mim.

O nome de Brendan foi anunciando antes do meu, porém, ele saiu, assim como os outros, por outra porta. Portanto, não pude procurar uma pista sequer em seu olhar. Isso me espantou ainda mais.

— Helse Haperlaire. - Uma voz fria anunciou. Pertencia a uma mulher extremamente pálida e de cabelo louro platinado.

Levantei, hesitante, e fui em direção à sala destinada aos testes em garotas.

Deparei-me com um corredor pequeno e uma porta ao fundo.

— Pode abrir. - Disse a voz fria.

Fiz o que foi pedido e encontrei um cubículo branco, sem janelas, apenas com uma segunda porta e com um pilar de mármore centralizado no meio da estrutura.

Ao lado da porta, uma pequena mesa branca descansava quieta e quase imperceptível. A Loura colocou uma prancheta sobre ela e em seguida se dirigiu a mim.

— Bem, creio que você saiba finalidade do teste e até mesmo como e funciona.

Concordei com a cabeça.

— Já tem ideia da sua habilidade? 

— Sem virtude. - Falei um pouco rápido demais.

— Certo. - Pegou a caneta e a prancheta e em seguida tomou nota. - Então eu mesma vou realizar o teste. Vamos começar. Apoie a parte de traz do seu corpo no pilar, por favor. 

Fui em direção ao pilar e obedeci. O frio do mármore enrijeceu minha coluna. 

Era nada ou nada.

A Loura anunciou que possuía a habilidade de manipular energia. Senti-me mais feliz. Era a mesma habilidade a qual eu tinha testado, sabia, ao menos, que podia absorver ela. Caso a habilidade da Loura fosse fogo, por exemplo, ficaria mais hesitante.

Ela disparou correntes elétricas violetas, realizando movimentos parecidos com os que Brendan tinha feito na noite anterior. 

Nenhum poder da minha parte foi revelado.

Então, ela partiu para o ataque direto: eletrocutar-me de verdade.

Disparou uma corrente mais fina e menos poderosa em direção ao meu braço direito, que estava nu depois de ter retirado o casaco para o teste. 

Apalpei com a mão e segurei com força.

— Aiiiii! - Berrei um tanto quanto desesperada demais e fazendo uma cara de dor ainda mais excessivamente desesperada.

— Vou buscar gelo e pomada. - Falou a mulher, saindo rapidamente pela porta.

Eu estava só.

Olhei para o braço direito e ele estava sem nenhuma mancha. Não tinha dor, nada. Havia apenas sentido um pulso elétrico ser puxado para dentro de mim.

Lembre-se, Helse: olhe ao redor e pense.

Corri os olhos pelo cubículo e algo pareceu brilhar: o pilar de mármore.

Joguei-me agressivamente contra o pilar, na tentativa de provocar um hematoma no meu braço que fora supostamente eletrocutado. Funcionou.

Um verde escuro misturado com vermelho tomou conta do local atingido e respirei aliviada. Eu não tinha noção de como era uma queimadura, na hora, mas aquilo me pareceu bem melhor que aparecer com o braço sem nada.

Só depois pensei: câmeras. Prendi a respiração e olhei desesperadamente ao redor. Não tinha nenhuma me observando.

Que sorte.

Com a presença de câmeras, meu plano teria ido por água baixo. 

— Trouxe o gelo e o remédio. - Anunciou a voz entrando no cômodo.

— Muito obrigada.

Fui em direção à mulher, segurando o braço, porém, expondo um pouco do hematoma de forma proposital. 

— Não foi minha intenção. - Tentou se redimir. - É só o meu trabalho.

— Eu sei. - Respondi.

A mulher me encarou por alguns instantes.

— Helse Haperlaire, uma sem virtude. - Disse ela, enquanto tomava nota na prancheta. - Logo receberá o atestado.

Saí do cômodo pela segunda porta.

Tinha conseguido. 


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