Crônicas das terras arrasadas: O sentimento algoz escrita por Abistrato


Capítulo 8
Capítulo 8 - Rachel "Libre"


Notas iniciais do capítulo

Me desculpem pela demora em postar
Esse é o primeiro capítulo da Rachel então espero que vocês dois ai que leem meu livro gostem!
Plágio é feio!
Escove os dentes!



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Rachel’s First Chapter 

— SARAH! — Meu Deus, eu tive um pesadelo de novo... 

Eu já não passo mais nenhuma noite em paz desde que Sarah foi embora… Eu digo Jenny… As duas eram tão parecidas… 

— Emily? Marcus? — Estranho… Eles ainda não chegaram. 

Eu me levanto vagarosamente do colchão improvisado enquanto observo a silenciosa sala. Essa casa é completamente cheia de todo tipo de tralhas apesar de não ser muito maior do que a de Jenny e Will. Pelo menos aqui o colchão do casal não fica no chão. Ok, que metade das tralhas são os meus panos, linhas, cadernos, tesouras e agulhas jogados em cima do sofá. Melhor eu arrumar isso antes que Emily se irrite. 

..._______... 

— Ufa!! Consegui!  

Depois de umas duas horas e muito suor, mas completamente orgulhosa de mim mesma, eu terminei de organizar tudo que havia na sala. Sim, tudo. Eu simplesmente não consegui ficar olhando toda aquela bagunça e arrumar só a minha parte. Seria muito egoísmo e ingratidão. 

Os vários rádios velhos agora estavam empilhados por tamanho no mesmo lugar que eram jogados, todos os computadores também, os discos e CDs de músicas organizados numa caixa por ordem alfabética dos artistas e bandas, os celulares divididos em caixas por marcas e, por fim, minhas coisas tinham sua própria caixa. 

— Eles vão ficar... muito felizes... — Wow, isso cansou...  

Enquanto descanso de toda a arrumação, o silêncio me consome aos poucos e meu cérebro solta um alarme de perigo: “Sozinha, indefesa, abandonada”. 

— Sabe, esse lugar até parece maior agora!... — De repente dou um pulo assustada. —  Droga! Eu tinha prometido que ia visitar Angel hoje de manhã. — Ela havia me feito prometer que ia deixá-la me ensinar a passar maquiagem. 

Eu nunca gostei muito de maquiagem... Nunca foi véspera de nada bom, muito pelo contrário... mas o que não fazemos para ser queridos por aqueles que nos protegem, né?  Bem... Eu tenho que me arrumar, não, eu tenho que tomar um banho antes e correndo! 

Eu entro correndo no banheiro e tranco a porta antes de tirar minha roupa quando lembro de pegar um jogo de roupas novas. Saio correndo novamente e pego sobre o sofá aquele vestido culpado por toda a bagunça que eu havia passado a noite anterior em claro fazendo (mas até que valeu a pena, ficou bonitinho... a Aline vai adorar) e volto como uma ninja ao banheiro.  

Eu começo meu banho de água fria olhando para o velho chuveiro completamente enferrujado. Aqui no acampamento era tudo tão diferente... Eu adoro poder escolher minhas próprias roupas, dormir à vontade, poder escolher o que eu vou comer e, principalmente, tomar um banho que não machuque e sozinha. Mesmo assim eu ainda sinto saudades de Sarah... Lavo-me com uma pedra de sabão enquanto minhas lágrimas se misturam com a água em meu pequeno corpo ensaboado. Eu não acredito que alguém pequena como eu um dia possa ser forte como Sarah... ou Jenny... ou Angel... Elas são grandes, altas e fortes. 

— Sarah... eu sinto tanto a sua falta... Eu só queria poder ser forte como você foi por mim... mas por que eu? Eu nunca vou ser tão boa quanto você... — Eu já soluçava. 

..._______... 

Já era nosso décimo dia nas terras arrasadas e até agora Sarah não havia largado minha mão, nem havia diminuído nem um pouco o passo desde que começamos a andar pela manhã... Minha fome era tanta que fazia minha cabeça doer, minhas pernas tremerem, meu estômago roncar sem parar e eu já havia desmaiado duas vezes... Sarah também devia estar sentindo a mesma fome e sua aparência era a pior que eu já vi: seus ossos já aparentavam por todo seu corpo, até mesmo no rosto, e seu cabelo ruivo caía aos montes. Ela ainda estava usando a roupa do segurança que matou. Em sua mão esquerda, suja de sangue seco, estava o picador de gelo que utilizou como arma, mas, apesar de tudo, não tirava os olhos do horizonte. 

 Não era possível ver nada além da grama bege no chão, as montanhas ao longe e as nuvens pretas sobre nossas cabeças anunciando a chuva que mataria nossa sede. E nosso destino ainda estava muito distante de nós. A única coisa que eu queria fazer era chorar muito ao ver que a cada passo a Encosta dos Demônios continuava do mesmo tamanho enquanto meu estômago me torturava cada vez mais e meu corpo ficava mole, mas a face determinada no rosto de Sarah e seus puxões, agora bem mais fracos do que antes, me mantinham seguindo o caminho. Eu não tinha ideia do como ela ainda conseguia manter o passo mais acelerado do que o meu mesmo estando muito mais fraca e sabendo que ainda haviam quilômetros a percorrer. A única coisa que via eram seus olhos de raposa que me assustavam, mas ao mesmo tempo me mantinham segura.  

— Nós nunca vamos chegar lá... — eu digo, então ela aponta para frente. 

— Você disse que a fazenda do seu pai ficava perto da Encosta dos Demônios, não foi? — Eu balancei a cabeça positivamente. — Se eu sei onde fica eu posso fazer você chegar lá... — Ela afirma com determinação. 

— Mas já faz cinco dias que não comemos nada! 

Ela para, tira o colete à prova de balas de seu peito, os coturnos de seus pés, deixa o picador de gelo cair ao chão e se ajoelha abrindo os brilhantes olhos antes cerrados: 

— Não se preocupe você comerá bastante em breve... Você lembra aquele dia que você veio chorando e me abraçou do nada? Você nem sabia quem eu era e eu te odiava tanto por ter que dividir minha cela. — Ela riu meio sem graça, passou a mão em meu rosto, enquanto eu observava as linhas de seu crânio.  

— Lembro... 

 — Naquele dia eu senti algo dentro do meu peito esquentar... algo que eu não sentia há décadas... — Então com um grande e aconchegante abraço ela me pôs em seu, agora ossudo, peito para proteger das primeiras lágrimas da natureza. — Naquele dia fiz uma promessa... Que você... — Ela começou a falar com dificuldade e sua voz entregava seu choro — Nunca passaria pelas coisas que eu passei. — Ela apertou ainda mais o abraço que me fez sentir seus dedos tortos em minhas costas e eu pude sentir as cicatrizes nas dela. 

— Mas, por minha culpa, o Lamar te machucou tanto... 

— Nunca mais fale esse nome de novo! — Ela me soltou e olhou irritada nos meus olhos, mas escondeu rosto assim eu a vi chorando. — Nunca mais me entendeu! 

— Entendi...  — Eu estava perdida... Nunca havia visto Sarah chorar antes nem mesmo quando La... nem mesmo quando ele a mandava açoitar ou quebrar seus dedos no meu lugar porque eu perderia valor se tivesse marcas. Quando não me davam o que comer ela me oferecia toda sua comida e nos dias normais a metade do que era seu. Ela se sacrificava muito por mim e me ensinou tudo o que eu sei, mas isso me fazia sofrer ainda mais toda vez que ela se machucava. Eu me lembro dos berros, dos xingamentos, dos urros e de todas as vezes que ela comprava uma briga com ele, os seguranças ou mesmo com as outras meninas por minha causa, mas nunca vi uma única lágrima dela sequer. — Você está... Chorando? 

— Estou, mas isso não... — Ela enxugava suas lágrimas rapidamente. 

— Eu nunca te vi chorar antes...  

— Nunca daria esse prazer ao Diabo, mas parece que com você é diferente... — Ela acariciou meu rosto com as duas mãos e ajeitou meu cabelo molhado. Quando eu tentei fazer o mesmo um tufo de cabelo ruivo se prendeu em minha mão, me deixando muito aflita sobre o que viria — Preciso que você me prometa uma coisa: Você vai ser uma menina forte e você vai ter uma família de novo aconteça o que acontecer, me entendeu? Aconteça o que acontecer! — Meu corpo ficou travado com meu cérebro se negando a acreditar no que aconteceria. 

— Mas... Eu não posso... Eu não consigo... — As lágrimas se acumulavam em minhas pálpebras. — Eu não sou forte como você, Sarah! — Protesto. 

— Me prometa! — Ela segura minha cabeça e olha no fundo dos meus olhos e eu timidamente confirmo. — E não pense que isso te livra da jaqueta de couro com meu nome que você está me devendo. — Sarah ri baixinho, suavemente beija minha testa e voltamos a caminhar. 

— Posso te perguntar uma coisa? — Eu pergunto enquanto nós duas olhávamos para o céu tomando água da chuva. 

— Claro... 

— Por que você estava com uma cara tão medonha? 

— Para assustar a morte enquanto eu puder... 

...________... 

Eu recuperava meu fôlego tentando engolir meu choro enquanto passava a mão no D marcado ao ferro no interior da minha coxa até que o nó na minha garganta se soltou com o fechar do registro. Com uma toalha eu enxugava meus olhos para não ver as marcas do ocorrido.  

— Vamos lá, vamos lá, dá tempo, Rachel... 

Depois de deixar um bilhete sobre a pilha de rádios dizendo onde eu ia para não deixar Emily e Marcus preocupados decidi que era a hora sair. Dei uma última olhada no meu visual e abri a porta para sair apenas para fechá-la rapidamente em pânico. Um homem e uma mulher fardados e armados me esperavam enquanto conversavam alegremente do outro lado da estreita rua. Será? Que eles descobriram que eu sou uma fugitiva? Não... Acalme-se, Rachel, nós estamos no sul, não tem escravos aqui... Mas e se o Lamar mandou me procurarem? Eu era uma das mais valiosas dele! Ele faria isso! Ele pagaria para que me encontrassem até no inferno se fosse preciso! Eu não quero voltar para lá! Angel! Ela gosta de mim, ela vai me proteger! Eu preciso chegar até ela! 

— Yo soy Libre! – repito para mim mesma. 

Boto a cabeça para fora da porta esperando um momento de distração dos soldados para sair quando vejo Aline andando em um dos seus belos vestidos. Ela me percebe e já saca um largo sorriso dizendo: 

— Oi!!!!! Nossa!! Seu vestido ficou lindo!! 

Rapidamente eu agarro seu braço e a forço a seguir em frente tentando não chamar muita atenção. 

— Eita! O que que aconteceu? — Aline pergunta perdida olhando para mim à espera de uma resposta quando eu vejo mais três andando na nossa frente e me escondo rapidamente atrás dela. Por que tem tantas pessoas fardadas aqui? Depois de observar o entorno a estilista percebe o que está acontecendo. — Você tá chorando? — Ela pergunta em voz alta me envergonhando. 

— Sim. — Eu respondo baixinho tentando esconder meu rosto. 

— AI MEU DEUS! Vamos sair daqui agora! — Ela me puxa até uma viela. — O que aconteceu com você? — Aline se preocupa. 

— Eles estão atrás de mim. — Aponto para os dois. 

— Quem? Os militares? Magina eles protegem agente. — Ela se acalma.  

— Eu não confio muito em pessoas fardadas, mas eu não quero falar sobre isso... — Mudo de assunto. — O que você veio fazer no lado mais feio do acampamento? — De fato os locais mais perto do portão leste e oeste eram onde a maioria dos caçadores e exploradores moravam normalmente em casas pequenas, sem rede elétrica, feitas de madeira, lonas e telhas de amianto. Basicamente eles eram a base da cadeia alimentar até onde pude entender. 

— Eu vim buscar couro com alguns caçadores, sai mais barato do que comprar com os comerciantes da praça principal e é bem mais fresco. — Instantaneamente eu me lembro de Sarah. 

— Falando em couro quando... 

— Ai!! — Ela me interrompe analisando meu vestido. — Esse é aquele vestido que eu mandei você fazer? 

— É sim... 

— Eu amei ele!!! Tá lindo!! Acho que já vamos poder fazer algo mais... Elaborado.   

— Sério? Obrigada... Podemos mexer com couro? 

— Por que couro? — Aline indaga com as mãos na cintura. 

— É que eu quero muito aprender a fazer jaquetas de couro.... Sabe ganhar um dinheirinho por fora pra não fazer o Marcus e a Emily gastarem muito comigo. — Menti. 

— Não sei... Couro é um material bem difícil de ser trabalhado e jaquetas têm muitos detalhes...  

— Não, não precisa ser cheio de detalhes eu vou vender pros caçadores, só precisa ser resistente. 

— Eu tô com medo de arranjar problema com a companhia dos artesões. 

— Eles não podem se irritar com aquilo que não veem! 

— Ok, mas você vai me prometer que ninguém vai ficar sabendo, ok? 

— Ok... 

— OLHA! Tô confiando em você, hein! — Ela aponta para mim com uma das mãos enquanto alonga a primeira palavra. 

— Então... você pode me levar até o Hospital? Eu tinha combinado de me encontrar com a Angel e eu já tô atrasada. 

— Claro, mas eu tenho que passar para comprar minhas peças de couro antes, depois eu te levo lá. 

— Obrigada. 

..._________... 

Depois de conhecer um dos vizinhos de Emily, aprender qual tipo de couro é o melhor para roupas pesadas e quase surtar com o horário e a demora já achando que Angel iria ficar ofendida e me odiar, Aline finalmente me levou até o hospital. Completamente afobada e em pânico eu me despedi da minha mestra e entrei me deparando com um quadrado de lonas cobrindo uma maca onde as silhuetas de Samuel e Angel se movem freneticamente.  

— O que está acontecendo aqui? — Eu perguntei para mim mesma. 

— Um cara chegou mal aqui e estão fazendo uma cirurgia nele — respondeu uma paciente ao meu lado. 

— Você sabe o que aconteceu?  

— Não, eu acabei de acordar. 

— Nossa! O que aconteceu com você? — Olhei para a moça que na verdade não passava de uma menina dois ou três anos mais velha do que eu. 

— Um dos calouros fez o favor de pôr uma bala na minha perna. 

— Meu Deus! Mas você vai ficar bem? Você quer uma água? Um remédio? Um travesseiro? Um abraço? — Faço ela dar uma risada e abrir um sorriso simpático. 

— Não, não, eu vô ficar bem... Ainda bem que o calibre era pequeno... É culpa dessa merda de ter que dividir o horário com os novatos. 

— Ué, mas o que aconteceu? 

— Bem. — Ela tentou se levantar, mas precisou da minha ajuda por causa da dor. — Eu sou uma aprendiz de caçadora, estou no meu terceiro ano e desde que aqueles dois do portão Oeste sumiram, os mestres do primeiro ano tiveram substitui-los e o meu mestre está ensinando os dois grupos ao mesmo tempo. Como todo grupo do primeiro ano eles fazem merda. Um deles se esqueceu de travar sua arma e acabou me machucando. Aí quando eu vi o sangue desmaiei. 

— Você tem medo de sangue? — Meio estranho pra uma caçadora. — E na verdade o casal do portão oeste não sumiu, o rapaz foi morto e a moça foi vingar sua morte. 

— Quando é o meu, sim... Você os conhecia? 

— Na verdade, sim, Willian West e Jennifer Wagen. 

— Não! — Ela fez cara de chocada e alegre escondendo um sorriso surpreso entre as mãos repleta de unas quebradas — você conhece a Jenny? 

— Sim, ela me adotou por um tempo, por... — Ela estava tão emocionada que me interrompeu. 

— E você morou com ela? Você vai me contar tudo sobre ela! — me intimou curvando o corpo em minha direção. 

— Calma aí, acho que nem ela sabe por que é tão famosa — Tentei acalmá-la. 

— Você sabe que os caçadores e os exploradores são as duas oficinas mais requisitada por que tem incentivo e nenhum aprendiz tem que pagar os materiais. Como passa muita gente nessas oficinas decidiram fazer uma tabela dos melhores alunos e seus recordes. E a Jenny só tem 5 dos 10 recordes dos caçadores, além da fama de cabeça quente. 

— Nossa! Eu nem sabia disso, mas quais são esses recordes? 

— Bem, alvo mais distante parado, alvo mais distante em movimento, menor tempo em montar e desmontar seu rifle, maior tempo em posição de tiro e maior número tiros por minuto. 

— Genti... — Fiquei surpresa. — Ela parece ser tão comum, fora o nervosismo dela, claro, mas eu não acho que ela ligue muito para isso. 

— No meu primeiro ano, uns amigos meus, eu inclusa, tentamos falar com ela para ver se ela nos dava alguma dica ou um autógrafo e tentar estimulá-la a se candidatar a uma vaga de mestra pra ver se ela nos ensinava seus truques e tal, mas ela não gostou muito da visita. 

— Imagino... O humor dela não é o mais fácil de lidar... Mas ela não é assim tão ruim você só precisa ser mais discreta com ela se você chegar assim tentando ser simpática logo de cara ela vira um bicho. No fundo no fundo eu acho que ela só é muito tímida. 

— Já fez uma amiga, Rachel? — Angel se aproximou tirando uma máscara suja de sangue de seu rosto. 

— Já, mas eu nem sei seu nome. 

— Eu, sou a Francine, mas pode me chamar de Frank — ela respondeu enquanto Angel checava sua perna com uma seriedade incomum. 

— Eu, me chamo Rachel Libre, prazer! — Frank deu um pequeno riso. — Ai! Desculpa, eu fui muito formal? — Coro-me rapidamente envergonhada. 

— Relaxa, eu só gostei do seu sobrenome. Você sempre se preocupa tanto assim com a opinião das pessoas? 

— Sim... — disse sem graça. 

— Ok, eu vou trocar suas bandagens, te dar uma muleta e você já vai receber alta — indicou Angel com uma voz triste. 

— Mas ainda dói muito — Frank reclama. — Não tem como me dar uma aspirina. 

— Desculpa, querida, mas só podemos dar aspirina pros casos mais sérios. — Olhei profundamente em seu rosto que não carregava o sorriso de sempre. 

— Angel, você tá triste? — Fico preocupada com o silêncio que segue o nosso entre olhar. 

— Ah, Rachel. — Ela afaga minha cabeça. — Estou um pouco sim... — Eu a abraço forte... 

— Você quer falar sobre isso? — pergunto. 

— O senhor que eu e o Samuel acabamos de operar foi nosso mestre e temos certeza que ele não tem muito tempo, ainda mais na idade dele — ela confessou. 

— O que ele tem? 

— Sessenta e dois anos nas costas e um câncer no fígado. Eu falei pra ele maneirar no copo, mas...  — Ela me apertou, meu cérebro urgiu para encontrar algo que a reconfortasse, mas só encontrou o silêncio. — Bem... se tem alguém que sabia disso era ele... — Ela respirou fundo desapontada. — Brigado, Rachel, mas eu tenho que trabalhar. — ela me soltou com um sorriso triste no rosto. 

...________... 

— Você vai me ensinar a passar maquiagem hoje? — perguntei quando Angel terminou de trocar as bandagens de Frank. 

— Desculpa, linda, mas hoje não vai dar, eu não sabia que o dia seria tão agitado e tinha planejado de almoçar com o Carl, mas se você quiser vir comigo eu posso te ensinar uma ou duas coisas sobre homens — ela respondeu enquanto trazia uma muleta. 

— Desse jeito eu vou querer ir também — exclamou Frank. 

— Não, você vai pra casa descansar, até por que você já sabe muita coisa sobre homens, não é, Frank? 

— O quê? Eu? Magina, eu sou uma santa! 

— Não, é o que a glicose que eu te dou na veia todo final de semana me diz — repreendeu a médica. 

— O quê? Uma garota não pode se divertir? — Frank falou me deixando chocada. 

— Se souber maneirar, pode! — Quando percebeu a própria grosseria, Angel se conteve. — Eu nem sei o que eu to falando, na idade da Rachel eu já fazia muito pior — desabafa Angel me chocando ainda mais. 

— Nossa, as pessoas têm prazer com isso por aqui? — penso alto demais. 

— Alguém precisa explicar como a vida funciona pra essa garota — diz Frank, levantando e se apoiando na muleta. 

— Do que você ta falando, Frank? Você não sabe de nada, inocente! — Frank ri e Angel esboça um fraco sorriso no canto da boca enquanto eu tento entender como toda aquela sujeira pode ser tão prazerosa para elas. — Agora vai, mas vê se volta amanhã pra trocar as bandagens e fazer uns exercícios pra essa perna. — A médica disse dispensando a paciente ainda com semblante cansado e infeliz. 

Depois que Angel guardou seu jaleco e Samuel me deu um daqueles abraços com seus seios nós duas saímos para almoçar com o namorado da médica.  

..._________... 

Durante todo o caminho até o refeitório Angel tentou me ensinar a manter uma postura elegante ao andar, mas eu conseguia manter só até me deparar perto de algum grupo de militares. Eles marchavam com passos firmes e assustadores para cima e para baixo normalmente em grupos de sete, mas eventualmente em duplas ou trios paravam para observar os locais mais movimentados em busca de alguma deixa para agirem.  

Angel já estava irritada comigo repetindo exaustivamente: tronco reto, ombros abertos, passos largos e alinhados, braços movimentando suavemente e cabeça nivelada no horizonte, mas a única coisa que eu conseguia ver eram coturnos batendo no chão. Coturnos e fardas tão horríveis quanto seu propósito: assustar e machucar pessoas. Eu só queria tirar essas roupas deles por que é como... se elas mudassem seus usuários, como aquelas drogas... Aquelas drogas... Eu não quero nem pensar nisso. 

O fluxo de pessoas indo almoçar era simplesmente enorme o que justificava o porquê do tamanho imenso da cabana e das mesas cheias de cadeiras que eu não tinha entendido quando vim pela primeira vez com Jenny. Era como se todos do Acampamento parassem suas atividades para a refeição que era de graça para todos. Angel e eu já estávamos felizes e saltitantes ao sentir os cheiros saborosos provenientes do “banquete” que nos esperava. Pelo menos foi assim até eu ver um militar guardando a entrada do refeitório: 

— Angel, podemos dar a volta eu não quero entrar por... 

— Mas, nós já vamos encontrar o Carl, olha ele ali! — Ela acena para o homem fardado e corre para seus braços como se revitalizada de seu mau humor apenas por sua presença. 

— Aqui... 

E lá eu estava sozinha de novo, como eu tanto temia desprotegida no meio de tantas pessoas, fragilmente com o braço esticado, a mão aberta ao vento apenas sentindo a lembrança do calor de nossas mãos dadas enquanto olhava aquele casal feliz composto por quem eu endeusava e por quem eu odeio. Mas o que mais me travava era o seguinte dilema: eu passava a odiar aquela que era o meu modelo de adulta forte, responsável e feliz ou esquecer anos de tortura que Sarah sofreu não mãos de pessoas tão parecidas com aquele sujeito. 

A médica me chama para conhecê-lo enquanto abraça militar que sorria simpático para mim. A única coisa que meu cérebro pensava era: “O que vai ser, Rachel?”. Eu já não sabia o que fazer. Meus olhos alternavam repetidamente entre Angel e Carl. Ele se ajoelhou pra ficar da minha altura e me perguntou alguma coisa com a mesma cara sorridente de antes, mas a única coisa que fiz foi deixar uma lágrima solitária escapar. 

— Meu Deus, o que é que aconteceu?  

— Nada, eu só... Nada  

— Querida, se tiver alguma coisa errada, pode me falar. — Angel me abraçou. — Carl me dá um minuto com ela... Por favor... 

— Claro. — Ele se afastou um pouco. 

— Pode falar, linda. — Minha garganta travou de medo. 

— Eh... eh... Eu... eh...  — Mais lágrimas caíram até que ela segurou minhas mãos e olhou nos fundos dos meus olhos. 

— Fica calma, respira. — Ela respirou fundo comigo. — Não tenha pressa. 

— Você vai ficar brava comigo... — disse baixinho. 

— Magina, por que eu ficaria brava com você, fofa? Ninguém consegue ficar brava com você! 

— Eu tenho que ir... eu... eu esqueci que a Aline tem um cliente hoje... não posso me atrasar — menti. 

— Tudo bem... vai lá. — Ela não acreditou muito, mas me beijou e foi embora. 

Eu me virei andei alguns passos e comecei a correr desesperada de volta para casa. Minha mente repetia “Yo soy libre” incansavelmente tentando manter a calma e não chorar mais uma vez hoje. Eu não acredito que Angel iria me trair! Me levando direto para um deles! Não... talvez ela tenha sido seduzida... talvez ela não saiba de nada... Jenny estava certa de não gostar dela. 

Enquanto, com as mãos no rosto, eu desviava das pessoas a minha frente, percebi que estava sozinha olhei em volta, mas todas aquelas pessoas faziam todos os caminhos parecerem iguais. O medo voltou a mim quando percebi que estava perdida. Comecei a tentar me esticar para achar alguma rota para o portão leste, mas a única coisa que vi foram mais pessoas fardadas. Caminhando na tentativa de não ser notada fugi dos militares apenas para encontrar mais deles. Eu não quero voltar. Não. Não. Não!!! Eu recuo lentamente ao notar que um me viu e vinha na minha direção. Minha espinha gela e eu travo ao sentir uma mão pequena suavemente tocar meu ombro. Me viro assim que vejo o militar ir embora e me deparo sob a sombra de Marcus onde estava Emily que, com sua voz rápida e preocupada, me chamou: 

— Rachel, o que que tá acontecendo? Por que você tá sozin... — Foi quando ela notou minhas lágrimas começando a rolar. — Meu Deus, o que aconteceu com você? — Marcus, também preocupado, se ajoelhou.  

— Você falou que ia almoçar com... — Antes que ele pudesse terminar eu abracei Emily  

— Não deixem eles me levarem — suplico. 

Os dois se entre olharam sem entender nada ao passo que ela me afagava minha nuca falando que estava tudo bem enquanto eu repetia as mesmas palavras. Largos feixes de lágrimas molhavam as finas costas de Emily enquanto eu soluçava e gemia. Eu estava com tanto medo. Eu não quero sentir mais dor! Eu quero ser protegida. Eu quero ser livre! Eu não sei em quem confiar! Ninguém é confiável aqui. Sarah eu quero você de volta! Eu preciso de você, Sarah! Não... Jenny! A Jenny nunca mentiu para mim. Se ela falou que Emily e Marcus iam cuidar de mim é por que eles vão. 

— Você quer voltar para casa querida? — Pergunta Marcus quando eu lentamente solto Emily. Eu balanço a cabeça que sim — Eu vou pegar nossa comida, você a leva para casa, Emily? Eu já vou. 

— Claro. — Emily responde baixo levemente empurrando minhas costas.   

...________... 

Pela primeira vez eu vi a pequena e elétrica Emily calma. Ela estava realmente preocupada comigo. Ela olhava para as pessoas com seus olhos acelerados e desviava delas com seu tamanho. Mesmo assim ela parecia tão maior que eu. Seus dedos finos se moviam rapidamente estalando um a um. Quando ela olha para trás para me ver lutando para a acompanhar nos becos do portão oeste noto que ela está com ambos os olhos vermelhos.   

Não demora muito para chegarmos em casa. Emily fica impressionada com limpeza que eu fiz e me agradece antes de me sentar no sofá já dominado pelas roupas suadas do trabalho de Emily e Marcus. 

— O que aconteceu, Rachel? — Emily pergunta. 

— Eu estava sozinha.... 

— Mas você escreveu que ia almoçar com a Angel. 

— Eu ia, mas... 

— Mas? — Ela olhava no fundo dos meus olhos segurando meus braços. 

— Mas ai um deles apareceu e eu decidi voltar para casa, mas mais dele apareceram e eu fiquei com medo. 

— Eles quem? 

— Militares. Angel ia me levar direto pra um deles ai eu dei uma desculpa e fui embora, mas me perdi no meio das pessoas. 

— Esse militar deve ser o Carl, o namorado da Angel... Bem... Tudo bem pelo menos você não se machucou, a Jenny vai me matar se eu deixar você se machucar ainda mais por causa de um militar. — Esse comentário desperta minha curiosidade. 

— Por que “ainda mais por causa de um militar”? — Fiz cara de curiosa quando Marcus chega entregando nossos pratos com carne, vegetais e raízes cozidos. Ele se senta do lado dela nos espremendo no sofá para dois. 

— Bem... — Emily hesita. — Você sabe que ela é meio que temperamental, então quando eu a conheci ela era pior. Costumava brigar em todo lugar que ia. Eu até lembro da primeira festa que fomos num casarão da zona sul, eu tive que implorar pra ela vir comigo, até emprestei um vestido pra ela. Tínhamos de 14 pra 15 anos... — Ela falava sem parar para respirar. 

— Foi nessa festa que nos conhecemos, não foi? — interrompeu Marcus. 

— Você ainda lembra?! —Emily abre um sorriso dando beijo na bochecha do rapaz e acariciando sua coxa — Então, Rachel, Jenny e eu dançamos e bebemos juntas até que Marcus apareceu e “me tirou pra dançar”.— Emily fez aspas com os dedos. Eu estava completamente entretida. 

— Próxima coisa que vimos foi ela no meio de um aglomerado socando um cara que sangrava no chão. Sabe, eu considerei nunca mais falar com você nesse dia — disse Marcus para Emily 

— Nossa eu tive uma vontade de fingir que não conhecia e fugir na hora, mas como o gatinho aqui já sabia eu a conhecia eu não podia dar uma de traíra, então tirei ela de cima do homem e fomos pra casa. Depois ela me explicou que o cara era um folgado que tinha passado a mão nela. A maioria das meninas teria ido embora, dado um tapa, uma resposta grossa, mas não a Jenny. Ela quebrou todos os dentes da frente do cara depois de quebrar uma garrafa na cabeça dele. Isso não seria mais do que uma gafe se o cara não fosse um militar. — Eu arfei pasma cobrindo minha boca com as mãos e consequentemente a sujando com comida. A exploradora me olhou estranho. 

— Continua. — Eu estava muito aflita e comia sem olhar para o prato em minhas pernas. 

— No final das contas Jenny foi presa e depois de contar o que aconteceu foi liberada. Coronel Dulcan executou o cara por fazer os militares passarem vergonha — Eu fiquei espantada com a história que Emily contava com os olhos estalados. — Nesse momento Jenny declarou seu ódio aos militares, aos vestidos e a qualquer tipo de evento social, aliás, ela odeia pessoas sociais. Claro que ela melhorou muito quando começou a namorar o Will. 

— Nossa... — Eu me pus a pensar sobre a história de Jenny. — Mas ela foi sempre tão raivosa e impulsiva assim? 

— Não sei, ela tem um passado bem nebuloso, mas acho que deve ter alguma coisa haver com o trauma do sumiço da irmã dela. Não era raro encontrar ela falando sozinha com a memória da irmã, bem... pelo menos não era quando estudávamos juntas.  

— Calma, a Jenny tem uma irmã? Que sumiu?! 

— Pois, é... Ela se chamava Dakota... ninguém nunca descobriu o que aconteceu com ela porque o militar que investigava o caso se suicidou e ninguém quis assumir o caso.  — Era muita informação nova que eu tentava processar ao mesmo tempo, mas tudo que eu consegui fazer foi travar com os olhos estalados e a boca aberta 

Eu estava sem palavras perdida numa tempestade de pensamentos sobre o que poderia ter acontecido com Jenny. Emily continuou falando com sua voz aguda e ininterrupta durante todo o almoço contando sobre suas aventuras com a raivosa Jenny, mas eu já não prestava mais atenção, nem conseguia. Na verdade, foi um milagre ter conseguido terminar o almoço, porém minha mente continuou perturbada o resto do dia, me levando a um estado letárgico durantes todas as minhas atividades.  

Depois do almoço o casal foi dormir e eu fui para o galpão da Aline para uma aula sobre jaquetas de couro. A mestra perguntou o que havia me deixado tão abatida, mas eu dei uma desculpa qualquer evitando exigir muito da minha mente, pois tudo que a ocupava agora era o passado cheio de mistérios que moldaram aquela mulher forte e decidida cuja imagem me impressionava tal como Sarah. Apesar de ter convivido pouco tempo com Jenny eu achei que soubesse tudo sobre ela, mas agora descobri que ninguém a conhecia de verdade. Entre tanto eu queria conhecê-la melhor, descobrir o que ela escondia de todos e, principalmente, o porquê escondia. Eu queria descobrir todos os mistérios que fizeram Jenny ser quem é, tal como não pude fazer com Sarah.   

    


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Notas finais do capítulo

Obrigado pela leitura! Espero que tenha te entretido, não esquece de deixar seu joinha, favoritagem, recomendação e, principalmente seu comentário. Tenha um ótimo dia!



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