Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 29
Prismas




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Cecília está sentada ao lado da professora Amélia e, apesar de tentar parecer segura de si, sua inquietação é evidente ao segurar seu desenho numa moldura de madeira. Ela sabe que suas mãos estão suando mais do que o normal e que ela será uma das próximas. Por causa disso, enquanto Jorge se apresenta, a professora tenta deixá-la mais tranquila.

— Quer ser a próxima? — Amélia pergunta.

Respondendo com um gesto de cabeça afirmativo, Cecília deixa claro que não quer se apresentar.

— Não se preocupe. Hoje é mais sobre vocês do que suas notas.

— Não estou... — Cecília não encontra as palavras.

— Você quem fez? — a professora aponta para o desenho com curiosidade, mas Cecília mantém a imagem virada para baixo.

— Isso — de um jeito evasivo, ela não olha diretamente para a professora, tentando disfarçar sua ansiedade.

— Então será criativo e singular — Amélia fala e volta a prestar atenção no aluno que está se apresentando.

Significou muito para Cecília ouvir aquele elogio da professora que ela mais admira, mas isso não a acalmou nenhum pouco. Se ela tivesse a oportunidade de desenhar naquele momento, provavelmente desenharia traços finos e corridos de alguém que não sabe o que fazer. Sua amiga Maia, sentada ao seu lado, está morrendo de tédio do texto que Jorge escreveu sobre Vera e não para de olhar para as redes sociais na tela de seu celular.

— Nem acredito que finalmente está acabando — Maia cochicha.

Esboçando um sorriso por educação, Cecília concorda com sua amiga, mas ao mesmo tempo olha para os outros colegas e pensa que sentirá saudades de alguns deles. Só que, ainda assim, seu desejo mais profundo nesse momento é sair correndo com seu desenho numa velocidade em que não pode ser alcançada.

— Sua vez — a fala da professora interrompe as divagações de Cecília e a faz reparar na relatividade do tempo.

Após uma longa inspiração, Cecília agarra o objeto com as duas mãos e vai até o centro da sala, em seguida mostra para todo mundo seu desenho em tinha gouache, nanquim e lápis de cor. Os traços em diversas direções davam um aspecto meio impressionista, mas com um toque moderno. Eram silhuetas de várias pessoas em movimento com algumas meninas um pouco mais coloridas e detalhadas ao centro.

— Bom dia. Hoje eu trouxe um desenho que fiz há um tempo. Gostaria que vocês me dissessem o que acham que é — ela inicia a apresentação.

Ao mostrar o desenho, Cecília passa para Nina e pede para que ela observe um pouco e vá passando a arte para que todos possam observar os detalhes e opinar depois. Uns dez minutos se passam para que a primeira pessoa fale.

— Acho que são dançarinas. Parecem bailarinas numa festa — Felipe fala.

— Discordo. Não acho que pareçam felizes. Acho que são retirantes numa cidade grande — Vera discorre.

Ninguém mais se pronuncia por alguns minutos e alguns colegas tentam adivinhar o que aquele desenho misterioso quer passar. A pergunta de Cecília deixou todos intrigados.

— Acho que nos representa. Somos nós debaixo das luzes de prismas — Tainá conta sua ideia.

— Acho que não. Definitivamente, isso é uma festa cheia de gente se divertindo. Essas pessoas no fundo estão dançando alguma música bem louca — Flávio argumenta.

— Discordo. Claro que são meninas brincando nas luzes — Janaína contra-argumenta.

— Nada a ver. Isso é uma boate — Daniel tem certeza disso.

Nesse momento, um barulho desordenado toma conta da sala de aula e as palavras se tornam incompreensíveis. Nina e Rafaela quase discutem, pois a primeira acha que são crianças dançando e a segunda pensa que é uma festa.

— Um de cada vez! — a professora intervém e aos poucos o barulho se dissipa.

— É você neste desenho, não é? — Maia pergunta.

Como resposta, Cecília cerra os lábios e continua com uma expressão de dúvida, sem ser clara se é uma resposta positiva ou negativa.

— Então, o que é? — Silas pergunta.

— É tudo isso que vocês falaram — ela responde.

Ninguém gosta da resposta e o barulho volta a tomar conta da sala. Quando se faz uma pergunta daquelas, o mínimo que as pessoas esperam é uma resposta direta. “Que idiotice”, Jorge comenta. “Não acredito que ela fez isso”, Nina cochicha. “Deve ser algum tipo de psicologia maluca”, Renan fala.

— Calma, gente. Deixem a colega de vocês terminar o raciocínio — Amélia intervém mais uma vez, apesar de estar gostando de ver todo mundo debater.

— Serei honesta com vocês. Quando fiz esse desenho eu não tinha nada em mente. Aí, ele foi surgindo e pareciam luzes de uma rave.

Do seu canto, Flávio se gaba para Tiago e sussurra “Eu sabia!”, satisfeito por supostamente ter acertado.

— Mas depois eu já não tinha certeza do que era. Eu não tinha a intenção de desenhar uma rave, só que foi o que pareceu a princípio. Então Tainá se aproximou de mim e perguntou se éramos nós dançando sob luzes de prismas. Eu achei aquela ideia bonita, mas engraçada, pois era bem o oposto do que eu tinha pensado e fazia sentido. Então resolvi chamar o quadro de prismas.

— Então qual é a resposta? São luzes de uma festa ou são prismas? — Elisa está curiosa.

— Também fiquei muito tempo procurando essa resposta. Nós gostamos de respostas simples. Mas o que tem depois da morte? Por que injustiças acontecem? Há vida inteligente em outros planetas? De onde vem a consciência? Esses são exemplos de perguntas que não têm respostas simples. Somos obrigados a conviver com perguntas sem resposta.

— Mas você decidiu sobre o que é o desenho? — Tiago questiona.

Bem mais tranquila do que no início de sua apresentação, Cecília dá de ombros e o deixa sem resposta.

— É por isso que gosto de ciência. Há um método a ser seguido e sempre dá a oportunidade de refutação. Não inventa respostas mitológicas para perguntas difíceis — Felipe argumenta.

Todos já sabiam que Felipe é muito inteligente, mas algumas coisas que ele falava, como esse pensamento, o davam um certo ar de maturidade que impressionava. Isso era acentuado pelo fato de Felipe falar pouco, então qualquer coisa surpreendia.

— Mas isso não responde tudo. Não sei explicar como, mas eu sei que não sou nada sem minha fé — Tainá se manifesta.

— A questão não é essa. Cada um tem suas opiniões. São coisas que nos dizem respeito. Eu, como o Felipe, acredito na ciência. Não gosto de suposições ou dogmas. Não vejo sentindo que um livro criado há milhares de ano possa ditar meu jeito de agir. Mas a Tainá não é assim. A Tainá procura as respostas dela nas coisas que sente. E quem sou eu para dizer o que ela deve pensar? — Cecília continua.

— Mas como eu vou acreditar em algo que não tem provas? — Silas pergunta.

— Isso é fé. É maravilhoso e pessoal — Elisa responde.

— É crer para poder sentir — Tainá continua.

— Como falei, isso não vem ao caso. Eu convivi esses últimos meses com a Tainá e continuo precisando de provas para acreditar nas coisas. Continuo achando a igreja uma perda de tempo. Ainda penso que muitas regras religiosas são antiquadas e desnecessárias. Não mudei meu raciocínio quanto a essas coisas.

Um pouco de frustração incomodou Tainá quando ouviu sua amiga proferir aquelas palavras. Por mais que discordassem tanto, ela esperava que as conversas tivessem oferecido a Cecília um novo modo de ver o mundo. Por um momento, parecia que nada tinha mudado e que Cecília ainda a achava antiquada e chata.

— Mas eu aceitei que algumas pessoas veem balé enquanto outras enxergam boates. Umas pessoas pensam em retirantes e outras pensam em crianças.  Somos resultado de tudo de a gente viveu. Somos nossas experiências, nossos pais e nossos amigos. Também somos nossos traumas e as pessoas ruins que passaram em nossas vidas. E, sim, Maia, tem um pouco de mim nesse desenho, porque eu acho que eu também sou todos os meus desenhos.

Essas últimas frases fizeram Elisa refletir nas péssimas experiências que teve nos meses anteriores. Ela se sentia bem mais forte. Mesmo do jeito difícil, aprendeu que as pessoas optam por caminhos diferentes e devem aceitar as consequências de suas escolhas. Tudo que queria fazer era ser um bom exemplo para as pessoas que a assistiam.

— A principal questão aqui não é se você vê prismas ou raves, o importante é perceber se você consegue conviver com a ideia de que a pessoa ao seu lado discorda de você. Acredite que saturno exerce efeito na sua vida, tudo bem, mas aceite que para mim saturno é um mero planeta, um grão de areia no infinito. Algumas perguntas não têm respostas simples e pronto. Não há o que fazer. Minhas experiências me trouxeram aqui. Mas a convivência com uma pessoa totalmente diferente de mim me mudou de alguma maneira. Talvez essa seja uma resposta simples. As pessoas mudam as pessoas, de uma forma ou de outra. Tainá me mostrou que não somos definidos por nossas opiniões sobre a origem do universo. Ou pela forma como nos vestimos. Ou pelo jeito de falar, com ou sem palavrões. Ou por um comentário feito na hora errada e no momento errado. Somos mais do que pessoas que enxergam prismas ou festas.

Foi quando Tainá deu um largo sorriso e entendeu o que Cecília queria dizer. Ela sempre se surpreendia quando conseguia sentir um toque divino em momentos como esse.

— Sim, nós somos tudo isso, mas outras coisas também. Como os tracinhos de uma pintura que no final formam uma imagem só, complexa. Espero que, quando o colégio acabar, nós possamos conviver com isso.

Então Cecília voltou para o seu lugar, sendo precedida por aplausos. Algumas pessoas não gostaram da resposta, mas ela já esperava aquilo. “Artistas não podem precisar da unanimidade”, Cecília pensou. Então ela entregou o quadro para a professora e sentou-se em seu lugar.

— Amei. Guardarei com muito carinho — Amélia ficou agradecida. — Acertei na mosca: criativo e singular.

Ali, com uma enorme sensação de alívio, Cecília olhou para a sala e concluiu que, surpreendentemente, sentiria saudades de todos.


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