Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 2
Depois das férias


Notas iniciais do capítulo

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Não havia política de lugar marcado no colégio Milano, mas depois de anos estudando na mesma turma, os alunos sempre acabavam numa mesma formação. Grupinhos se juntavam e as salas terminavam divididas por afinidade.

Na juventude, a professora Amélia tinha dificuldade em se incluir naqueles grupos porque gostava de falar com todo mundo, então acabou sendo colega de todos, mas não era íntima de ninguém. Por esta razão ela não gostava de olhar para aqueles jovens divididos em suas tribos enquanto dava aula.

Numa noite enquanto escrevia seu planejamento mensal, Amélia teve uma ideia que a deixou entusiasmada. Para fazer seus alunos se conhecerem melhor, independentemente do grupo ao qual pertenciam, ela pensaria em atividades que os unisse. Desde esse dia, Amélia passou boa parte do tempo conhecendo seus alunos a fundo para poder reunir as pessoas mais diferentes.

Não era sempre que o plano dava certo. Apesar das boas intenções, os alunos não aceitavam novas regras tão facilmente. Um aluno chegou a oferecer dinheiro para que ela mudasse suas condições, mas acabou sendo suspenso pela tentativa de suborno. Sem falar nas inúmeras confusões e brigas no meio das aulas.

Mesmo diante de tantas adversidades, Amélia não perdia o brilho nos olhos que surgia quando ela conhecia novos alunos, porque cada turma era diferente e trazia consigo novos desafios. Nada dava tanta alegria para ela que formar novas amizades e descobrir talentos. Em tantos anos de profissão, só houve uma situação em que desejou não estar à frente de uma sala de aula.

Numa dessas tentativas de aproximar os alunos, a professora resolveu juntar um aluno extrovertido com um aluno extremamente fechado. Naquele ano, ela pediu para que Renato e Marcelo se reunissem para apresentar uma história por trás de uma foto famosa. Ambos eram excelentes alunos, mas Renato nunca se cansava de falar, enquanto Marcelo mal abria a boca. Quando o primeiro fez suas pesquisas e decidiu que eles falariam sobre a foto de Phan Thi Kim Phúc, realizada por Huynh Cong Ut, Marcelo apenas concordou. 

A foto icônica ganhou o Prêmio Pulitzer de 1973 e virou símbolo da guerra do Vietnã. Mostrava uma menina, cujo nome intitula a foto, queimada em desespero, nua, após seu lar ser bombardeado. Em suas pesquisas, Marcelo descobriu que a menina teve mais de a metade do seu corpo queimado após procurar refúgio num templo, depois que viu sua vila ser destruída e seus familiares serem mortos. Era o que há de mais feio no mundo. Com nove anos na época, a menina passou mais de um ano no hospital por causa do episódio. Quando viu seu corpo nu exposto para o mundo, ela entrou em desespero. O então presidente dos Estados Unidos, Nixon, duvidou da autenticidade da foto. Phan Thi Kim Phúc sobreviveu, se mudou para o Canadá e fundou uma instituição que cuida de crianças traumatizadas pela guerra.

Ao conhecer a história por trás da fotografia, Marcelo ficou devastado, mas não surpreso, quando se deparou com o fato de que até hoje existem crianças sendo traumatizadas por guerras.

Baseado nessa foto, os alunos realizaram um ótimo trabalho, mas eles não se tornaram amigos como Amélia esperava, mesmo depois de horas trabalhando juntos. Renato, que adorava fazer novos amigos, até que tentou se aproximar, mas Marcelo estava numa fase complicada. Desde os quinze anos, tomava escondido os remédios para dormir de sua mãe. Apesar de quase ninguém notar, ele não se importava com mais nada que acontecesse ao seu redor.

O trabalho de Amélia foi a única coisa que despertou o interesse de Marcelo em muito tempo. Algo no desespero de Phan Thi Kim Phúc acordou um sentimento dentro dele. Todos que falavam com ele acabavam ouvindo um pouco da história dela. Marcelo sentiu como se aquilo fosse o sinal que ele estava esperando. Vera, uma das poucas amizades que ele tinha no colégio, ouviu da boca dele que aquela foto era a coisa que mais se aproximava do que ele estava sentindo. Até as aulas de guitarra foram trocadas por longas horas trancado no quarto, pesquisando sobre a guerra.

Não demorou muito para todos ficarem preocupados com o garoto. Seus familiares e poucos amigos o orientaram a tentar mudar aquele comportamento. Ele sorria mecanicamente e prometeu que mudaria. As coisas só pareceram melhorar depois de apresentar o trabalho com Renato. Até o cabelo na altura dos ombros ele resolveu cortar. Infelizmente, era tudo aparência. Ele estava se preparando.

Alguns dias depois de apresentar o trabalho, Marcelo foi encontrado sem vida em seu quarto. Ele amarrou uma corda no pescoço e se enforcou. Talvez estivesse se sentindo sufocado há muito tempo. Sua mãe saiu de casa desesperada e duvidou de Deus por não ter chegado alguns minutos antes. 

Poucas pessoas foram ao enterro e Amélia era uma delas. Ela viu Vera abraçando a mãe de Marcelo e não conseguiu chegar perto do corpo dele. Como as aulas já estavam acabando, a maioria dos alunos acabou faltando, mas Amélia sentiu que os poucos presentes colocaram parte da culpa nela. Ela se perguntou por meses como não conseguira perceber o que estava acontecendo.

Renato não faltou nenhuma aula depois do evento traumático, mas se tornou a pessoa mais quieta da turma.

Para complicar a situação ainda mais, Amélia passou por uma terrível perda em sua família pouco tempo depois. Demorou um pouco, mas quando finalmente conseguiu se recuperar o suficiente, ela decidiu que queria formar novos laços. A professora queria que seus alunos também se dessem conta do que ela mesma havia aprendido: é melhor descobrir o que as pessoas guardam dentro de si antes que seja tarde demais, antes que as aulas acabem, que as pessoas se mudem para longe  ou  que algo terrível aconteça. Depois de pensar muito, ela decidiu qual seria a última lição para aquela outra turma. Assim que as férias do meio do ano acabassem, os alunos se juntariam em duplas e teriam que escrever a biografia um do outro. E não poderia ser qualquer biografia, Amélia queria a pesquisa completa com histórias detalhadas e entrevistas.

***

— Bem-vindos de volta. Espero que tenham aproveitado bem as férias. Animados com o último semestre do ensino médio?

Todos responderam afirmativamente, a maioria com ironia.

— Não sei vocês, mas eu amo ler. Na maioria das vezes eu me envolvo com os personagens e descubro se gosto ou não deles no decorrer da leitura. Mas quando o assunto é biografias a situação é diferente.

Rafaela e Nina se entreolharam, já imaginando o que viria pela frente.

— É maravilhoso descobrir detalhes curiosos da vida de pessoas que só conhecemos pela televisão ou pelos jornais. Mas aí eu fiquei pensando... Como será ler a biografia de uma pessoa que conheço pessoalmente? E é aí que vocês entram na história.

— Imagina ler uma biografia sobre a Maia! Quase o  Animal Channel — Daniel caçoa.

Alguns riram da piada. Maia só reagiu com um olhar de desprezo.

— É bem o contrário disso, Daniel. Podem haver coisas maravilhosas sobre a Maia de que você não faz ideia — Amélia intercedeu.

— Uh... Coisas maravilhosas... — Flávio brinca, com um ar malicioso. Daniel responde com um ar de nojo e volta a prestar atenção.

— Por isso o trabalho final de vocês é escrever uma pequena biografia de um colega de classe.  Valerá cinquenta por cento da nota, então quero tudo bem caprichado. O vestibular está chegando e sei que vocês têm tudo para tirar nota mil nessa redação. Teremos nossas aulas normais para treinamento de redação às terças e às quintas discutiremos outros assuntos. Para começar, quero que descrevam cada um dos seus colegas em até três linhas e me entreguem no final da aula. Não se esqueçam de colocar pelo menos um defeito nessa descrição. Começando agora.

Depois que a professora falou isso, todos abriram os cadernos e começaram a fazer o que foi pedido. Como ela sempre passava atividades diferentes, a sala nunca ficava muito entediada. Os alunos se olhavam e pensavam em adjetivos e, de vez em quando, dava para se ouvir algumas brincadeiras.

— Jorge. Um metro e oitenta. Lesado para caral... — Daniel falou e Jorge o interrompeu, dando-lhe um tapa na cabeça.

Com aquela atividade, Amélia queria saber o quanto os alunos se conheciam para juntar os menos chegados ou os mais diferentes. Ela corrigia outras atividades quando Beatriz a abordou.

— Professora, posso falar um pouco com a senhora?

Amélia assentiu.

— Não quero ser indelicada nem nada, mas o vestibular está bem aí. Não acha que o momento não é o ideal para gastarmos nosso tempo escrevendo essas biografias?

— Vocês terão cinco meses para isso. Fique tranquila, Beatriz. Tenho certeza de que você já foi bem orientada para fazer uma ótima redação no vestibular. 

— A questão é que há outras matérias para estudar. Tenho que aproveitar meu tempo livre para revisar.

— Tenho certeza que haverá tempo para tudo. A vida não é só revisar. Além disso, há sempre o que aprender com os outros, não acha?

— Eu sei. Mas é que...

Beatriz ficou sem argumentos e foi se sentar em sua cadeira. Ela já tinha certa implicância com a professora, mas aquilo a aborreceu mais do que esperava. Preferia métodos de ensino tradicionais e nunca foi muito fã dos métodos de Amélia, ao contrário dos outros colegas. Ainda assim, era uma das melhores alunas.

Renan e Vera discutiram um pouco e logo entregaram suas anotações. Daniel estava com preguiça e só escreveu poucas palavras. Nina e Rafaela eram tão amigas que praticamente escreveram as mesmas coisas. Mário teve muita dificuldade para terminar. Aos poucos, todos foram entregando suas tarefas.

— Até a próxima aula com mais orientações — disse Amélia, quando o sinal tocou.


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Notas finais do capítulo

What have I become
My sweetest friend
Everyone I know
Goes away in the end

https://youtu.be/yL0RzgUpGjk



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