Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 16
Felipe


Notas iniciais do capítulo

Quer dizer que é pra ser.



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— O que acabou de acontecer aqui? — Vera se perguntou, rindo.

— Não ri. A Bia acabou de sair correndo e eu acho que a situação piora se eu for atrás dela — falei.

Minha amiga deixou de rir no mesmo momento, parou por uns cinco segundos e saiu em direção a Beatriz sem dar mais explicações. Não foi legal ser chamado de lesma em frente à escola inteira, muito menos quando sua amiga torna a situação ainda mais constrangedora, mas, pelo menos naquele momento, só conseguia pensar se a Bia estava bem.

— O que foi isso? — Renan estava conversando com os outros caras da sala e veio na minha direção assim que Vera saiu de perto.

— Isso que você acabou de ver — respondi, visivelmente irritado.

— Calma, mano. Isso é só crise de menina. Já, já a Bia volta de boas. 

Olhei para ele quase fuzilando com o olhar, mas logo voltei minha visão para o corredor em que Vera havia desaparecido atrás da Beatriz. A situação foi tão constrangedora que nem raiva de Elisa eu consegui sentir na hora, só vergonha. De longe, os outros garotos riam da situação, apontando diretamente para mim.

— Novo casal lesma na área! — Flávio gritou.

Revirei os olhos e levei minha mão à testa, inquieto por está sendo alvo da atenção do colégio inteiro. Nesse momento, Renan deu uma gargalhada que devolvi com a expressão mais séria possível. 

— Grande amigo, você é — não consegui ser menos sarcástico.

— Calma, cara. Só estou rindo da ironia que essa situação toda se tornou.

Ergui uma das minhas sobrancelhas, sem entender bem o que ele queria dizer.

— Quero dizer, eu esperava que você me aproximasse da Vera, mas é a Vera que está te aproximando da Bia. É engraçado, não é?

— Você é inacreditável — balbuciei. Mal consegui absorver o que tinha acabado de ouvir. Num momento como aqueles, meu amigo só conseguia pensar em si mesmo. Relevei, pois é o que sempre faço em situações assim.

Olhei para o meu celular, pensei se deveria mandar uma mensagem, mas concluí que era melhor ficar na minha por enquanto. Algum tempo depois, vi Vera voltando do corredor. 

— Está tudo bem — ela avisou.

Respirei aliviado. Já sou ansioso, mas estava à beira de um ataque de nervos. Tentei respirar fundo para me manter calmo. Qualquer atitude que eu tomasse poderia piorar tudo.

— É só questão de tempo para pararem de chamar vocês de casal lesma — Renan afirmou, achando que conseguiria amenizar minha frustração. 

— Nunca imaginei que chegaria a esse ponto. Desculpa por ter agitado — Vera admitiu.

Dei um sorriso leve e balancei negativamente a cabeça, sinalizando que estava tudo bem, especialmente porque a Vera é o tipo de pessoa que tem sempre as melhores intenções. Ela me puxou para o canto e deixou Renan só, fazendo-o voltar para o grupo em que estava. Acho que ele ficou meio contrariado, mas ele estava merecendo.

— Amigo, sinto muito ter que te dizer isso, mas é agora ou nunca. Você viaja em menos de três meses, mas ainda te restam quase três meses por aqui. E, sinceramente, eu não sei se ela saiu por vergonha ou porque sabe que o que a Elisa falou é pura verdade.

Ohei para ela sem saber nem o que dizer. Eu simplesmente não tinha mais argumentos.

— É isso? Você não vai conversar com a Bia? Não vai fazer nada? — Vera parecia contrariada.

— E o que é que eu posso fazer? 

Ela revirou os olhos impacientemente e ficou com aquela expressão pensativa de quem está elaborando planos mirabolantes. Percebi que seu comportamento estava voltando ao que era antes desde que a Bia se reaproximou dela. Um tempo depois, ela olhou para mim com certo desdém.

— E você está disposto?

Dei uma risadinha meio desesperada e fiz que sim com a cabeça.

***

Felipe (19:01) - Obrigada, Cecília. Quanto ficou? Pode ficar tranquila que não conto para ninguém que foi você quem fez o desenho.

Cecília (19:03) - Não custou nada. Fiquei meio mal pelo que fizeram com vocês no intervalo. Achei a ideia muito legal. A Verinha nem precisou pedir duas vezes para me convencer.

Felipe (19:10) - Tem certeza? Pode falar o preço... Você desenhou muito rápido!

Cecília (19:12) - Fique tranquilo, não custou nada. E eu adoraria ver a cara da Beatriz quando ela ver esse quadro hahaha

Felipe (08:13) - Obrigadão! Você é 10 ;)

Cecília (08:14) - Não há de quê :)

Passei na casa de Cecília bem cedo no dia seguinte para pegar o quadro que ela tinha pintado e ofereci carona para irmos juntos até a escola. Meu irmão olhou para ela com estranheza porque Cecília é uma dessas pessoas que se vestem como querem, sem seguir regras. Minha mãe não conseguiu esconder uma risadinha de julgamento quando viu Cecília e suas correntes se aproximarem do carro.

— Mãe! — adverti.

— Desculpa, filho, não foi por mal. E esse quadro que ela está debaixo do braço?

— É para um projeto — menti.

O quadro era relativamente grande e Cecília teve que acomodá-lo com cuidado. Ela entrou no carro, cumprimentou a todos e deu uma piscadela para mim.

— Você é bruxa? — meu irmão perguntou.

— Cala a boca, moleque! — gritei. — Não liga para ele, Cecília. Meu irmão é maluquinho — suei frio.

— E está merecendo um castigo — minha mãe completou.

— Não foi nada — ela falou. — Na verdade, sou da nova comunidade bruxa de Nova Orleans do Norte. Posso te ensinar uns rituais depois, garotinho.

Minha mãe quase engasgou quando ela disse isso e pude ver quando arregalou os olhos e deu uma risadinha sem graça. Cecília percebeu e começou a rir. Adorei ver meu irmão morrendo de medo.

— Estou brincando. Na verdade, eu não acredito em seres sobrenaturais — ela explicou, gargalhando.

Do banco do passageiro, também gargalhei, pois minha mãe ainda estava meio pálida e meu irmão trazia uma expressão de quem não entendeu nada do que Cecília dissera. Depois dessa, por sorte, nenhum comentário desnecessário foi feito para o bem da minha amizade com Cecília. Como planejado, chegamos um pouco mais cedo no colégio. Falei para a minha mãe que tinha que discutir algumas coisas com o professor antes da aula, mas a verdade é que queria falar com a Bia e eu sabia que ela sempre era a primeira a chegar.

— É todo seu, menino lesma — Cecília entregou o quadro embrulhado em papel reciclado para mim.

— Obrigado e saudações, Bruxa da  nova comunidade de Nova Orleans do Norte. 

— Não foi nada — Cecília piscou para mim. — E boa sorte. Vou aguardar um pouco aqui fora.

Como esperado, Bia tinha sido a primeira a chegar. Ela estava lendo algum desses livros antigos de literatura que ficam na biblioteca esperando por algum aluno mais interessado. Fiquei tão nervoso que o quadro quase escorregou da minha mão. Cheguei perto dela e, devido ao estado de concentração em que ela estava, dei-lhe um susto.

— Desculpa.

— É... Tudo bem. Quer algo? — ela parecia nervosa. Olhava para a porta de vez em quando, provavelmente pela vergonha que passamos no intervalo pouco tempo antes.

— É para você. Abra mais tarde, com calma, quando estiver sozinha — falei isso e entreguei o quadro.

Como a peguei de surpresa, Bia nem reagiu, só acomodou o quadro no canto da parede e continuou sua leitura. Acredito que ela estava evitando uma conversa mais longa na sala de aula. O problema é que, como eu previa, Beatriz não conseguia tirar aquele quadro da cabeça e ficava olhando para mim a cada três minutos. Algumas vezes, ela olhava em tom de súplica, como que pedindo autorização para abrir o pacote, mas eu simplesmente balançava a cabeça negativamente. Nada diferente do que eu suspeitava, o suspense estava tirando seu sossego.

No terceiro tempo, tivemos aula com a professora Amélia, o que significava que o assunto da biografia viria à tona. O semestre já tinha passado da metade e por isso deveríamos estar com nossos trabalhos direcionados. Ocasionalmente, a professora nos perguntava sobre nossos projetos, mas eu desejava que o trabalho durasse muito mais tempo que o planejado.

— Hoje teremos um exercício divertido — Amélia avisou.

No mesmo instante, Bia olhou para mim mais uma vez e não pude conter a risada quando percebi o sofrimento que a curiosidade estava lhe causando. 

— Já recebi alguns materiais e confesso que a turma de vocês está me surpreendendo. Flávio, estou dando atenção especial à sua redação, muito bem escrita.

Todo mundo se olhou nessa hora, pois Flávio não era o tipo de aluno que recebe elogio por trabalhos bem feitos. Ele sempre estava de recuperação e não parecia se importar com os estudos.

— Hoje eu quero que vocês se perguntem o que mudou na sua vida depois de conhecer essa pessoa que fez dupla com você. Por exemplo, o que Capitu fez com Bentinho? Ou o que a Baleia significou para o Fabiano. O que aconteceu com Rita Baiana e Jerônimo? — Amélia parou um pouco e deve ter notado a indiferença de alguns dos meus  colegas. — E gostaria de informar aos que desconhecem estes personagens que eu sinto muito por isso. São personagens de histórias incríveis que eu recomendo muitíssimo.

Pude ver Beatriz fazendo um leve gesto afirmativo, afinal ela gostava desses clássicos da literatura. Aposto que metade da sala não sabia que Baleia era um cachorro ou que Jerônimo era um português safado.

— E eu quero que vocês escolham hoje um personagem da literatura que tenha alguma semelhança com a sua dupla. Escrevam uma breve redação sobre os motivos da escolha. Boa sorte.

***

— Funcionou? — Vera perguntou assim que saímos da sala para o intervalo.

— Falei para ela ver o quadro mais tarde.

— Você é uma lesma mesmo — Renan debochou, mas ele é a  última  pessoa que poderia dizer isso, pois  conseguia ser mais lerdo que eu.

Vera deu um leve empurrão nele, tentando informá-lo que estava sendo desnecessário, como ele já sabia.

— Não quero levar um fora em frente ao colégio inteiro — expliquei.

— Mas você não sabe se vai levar um fora — Vera lembrou, deixando-me um pouco mais confiante. Percebi que Renan levou a mão ao pescoço, nervoso, quando ela falou isso.

Quis deixar Beatriz ansiosa para ver o quadro, mas eu também estava incrivelmente ansioso em descobrir como ela reagiria, então passei boa parte do tempo inteiro pensando nisso e olhando para o celular. No meio de uma partida on line de xadrez, recebi uma mensagem da Bia.

Bia (09:17) - Estou no parque. Preciso perguntar algo.

Mostrei a mensagem para Vera, que ficou tão animada quanto eu e me empurrou na direção do parque das crianças menores. Dei passos lentos devido à minha apreensão. O parquinho tinha algumas árvores e estava vazio, já que era o horário de aula do ensino fundamental. Bia estava sentada num balanço enferrujado no canto. Sentei-me no balanço ao lado.

— Oi? — falei num tom de voz baixo, timidamente.

— Oi. Preciso perguntar uma coisa — ela estava séria.

É fato que eu estava bem nervoso. Tudo podia dar errado e as chances eram de que Beatriz ainda estava com raiva de mim por ter visto a passagem comprada para logo depois do fim das aulas. Eu queria ter adiado um pouco minha ida, mas era o dia mais barato. 

Ficamos meio sem jeito por um tempo, quando ela se levantou e foi em direção a uma árvore, onde encostou. Levantei-me do balanço e fui em sua direção.

 — O que é que você quer perguntar? — questionei.

Beatriz respirou fundo, também transparecendo nervosismo.

— Que personagem eu sou? — ela disse isso e tirou uma caneta e aquele caderninho azul que sempre levava quando falávamos sobre a biografia do bolso.  Ficou olhando para mim com papel e caneta na mão.

Bufei, desapontado. Não acreditei na pergunta. Beatriz poderia perguntar qualquer coisa. Poderia questionar por que não fui atrás dela quando zombaram da gente. Poderia perguntar por que comprei a passagem para a data mais próxima possível. Poderia perguntar se eu gostava dela. Poderia até me dar um grande fora de uma vez por todas.

— Elizabeth Bennet. Orgulho e... — respondi, mas fui interrompido.

— Preconceito — ela continuou, sorrindo. Parecia estar satisfeita com a minha escolha.

Do nada, sem nenhum sinal, Beatriz anotou rapidamente algumas palavras, deixou o papel e a caneta no balanço, se aproximou e me beijou. Foi tão repentino que mal reagi. E enquanto ela me beijava, eu fazia comentários com a fala ofegante.

— Comprei a passagem... Porque preciso economiz... — minhas falas foram entrecortadas pelo beijo dela.

— Eu sei — ela explicou e voltou a se aproximar.

— Não quero... ir... embora... 

— Eu sei.

— Não sei... o que quero... da vida. Minha ansiedade... Tenho medo... De decepcionar... Minha família.

— Eu sei.

Então eu apenas me rendi, mas a realidade é que isso já estava acontecendo há muito tempo. Fui rendido desde as primeiras perguntas, quando ela não conseguia esconder sua impaciência e falava as verdades da forma mais direta possível, achando que poderia acabar com aquele trabalho mais rapidamente. Fui rendido desde a primeira vez que pesquisei qual o tempo do voo para a Espanha. Rendido quando passei mais tempo que o necessário me perguntando se deveria comprar aquela passagem na promoção mais imperdível de todos os meses em que busquei por uma passagem.

— Você viu o quadro — concluí, sorri, afastei-me um segundo e comentei.

Beatriz apenas sorriu de volta, se denunciando.

— Você não conseguiria se aguentar de curiosidade, não é mesmo? — brinquei.

Ela fez que não com a cabeça e me abraçou.

— Está disposta a aguentar todo mundo te chamando de lesma?

— Claro. Se você está disposto, eu também estou. 

Então eu a abracei mais forte. Cecília havia me mandado uma cópia do quadro, que deixei salva na galeria do meu celular. Quem olhasse de longe, veria uma floresta tropical comum, mas vendo de perto dava para notar duas lesmas em cima de um pedaço de madeira. Era uma besteira, mas significava muito para mim.

***

Ainda não tinha conhecido Dra. Emília Nogueira. Estava passando tanto tempo com Beatriz que já havia me acostumado a chamar a mãe dela assim. Era jeito irônico que Bia usava para se afastar emocionalmente dela. Jô, a senhora que trabalhava em sua casa, tinha mais contato com a Bia do que sua própria mãe. E mesmo como o pouco contato com Emília, Bia queria ser igualzinha a ela. 

— Boa tarde — Emília chegou de surpresa. Nem Bia esperou por isso.

— Oi... Mãe. Esse é o Felipe... Eu te falei sobre ele.

— Ah... Acho que estou lembrada — ela estendeu a mão e nos cumprimentamos de um jeito bem formal.

— Prazer, senhora. 

— Desculpe, garotos. Tenho que sair daqui a pouco. Fiquei de dar uma palestra daqui a algumas horas, mas fiquem à vontade. A Jô está aqui se precisarem de qualquer coisa. 

Quando disse isso, de um jeito apressado, Emília correu para o seu quarto. Pude ver o ar de desapontamento no rosto da Bia, mas era como se ela já estivesse acostumada. Dei-lhe um beijo carinhoso na testa.

— Não se preocupe, minha biografia já está ótima com o material que você me forneceu — eu me adiantei.

Como resposta, só obtive um sorriso triste. Ficamos assistindo a uma série antiga de comédia juntos, abraçados. Emília passou correndo novamente com uma roupa elegante e se despediu rapidamente. Ela tinha um dom de deixar Beatriz desanimada. Quando Emília saiu, Jô se aproximou para retirar os copos de suco que estavam em cima da mesa de centro.

—  Jô, você trabalha aqui a muito tempo? — puxei assunto.

— Desde que a Bia era uma menina, Felipe. 

— Como ela era como criança? — perguntei.

— Sempre foi uma menina muito comportada. Nunca tive trabalho com ela. A Bia gostava de arrumar as próprias coisinhas desde muito pequeninha.

— Então quer dizer que ela já era uma idosa desde os cinco anos de idade? — tentei fazer uma piada boba para alegrar Bia. 

A minha ideia funcionou e Bia desviou a atenção da televisão, dando uma risada.

— Ela se recusava a tomar leite, só queria café, para você ter uma ideia.

— Daí que vem o vício em café — concluí, com a mão no queixo, fingindo analisar a situação.

— Jô! — Bia reclamou.

— E não é verdade? — Jô continuou, se dirigindo à cozinha.

Voltamos nossa atenção ao seriado e ficamos abraçados até o final do episódio. Pouco tempo depois, Jô passou com sua bolsa a tiracolo e se despediu dando um beijo em mim e outro na Bia. Continuamos maratonando a série de televisão.

— Na verdade, Jô se enganou em uma coisa — Beatriz comentou, do nada, já na metade do outro episódio.

Uma ruga surgiu em minha testa, pois fiquei sem entender muito o que ela quis dizer com isso.

— Nem sempre sou comportada — ela continuou, olhando fixamente para a televisão com um sorriso sutil que tirava minha concentração.

Cada coisa que eu descobria sobre ela me deixava com vontade de saber mais. Cada centímetro dela me deixava com vontade de descobrir mais. Às vezes, eu me perguntava se a merecia. 

***

— Não sei se terei condições de pagar a conta do mês — encostei meu ouvido na porta do quarto dos meu pais e ouvi meu pai falar.

— Tivemos um grande prejuízo, mas vamos resolver isso juntos — minha mãe conseguia manter a calma nos piores momentos.

— O prejuízo foi muito grande, não sei se pagaremos a mensalidade da escola dos meninos. As contas estão todas atrasadas — ele continuou.

— A gente vê isso depois. Vamos dormir, meu bem.

Quem não conseguiu dormir fui eu. Passamos a semana nos preparativos dessa grande festa de casamento que aconteceria nesse dia. Um dia antes da festa, o noivo desistiu e foi para outro estado. Boatos diziam que ele tinha arrumado uma mulher rica e fugido com o dinheiro do casamento. Resultado: uma noiva sem um tostão e milhares de reais gastos em comida sem previsão de retorno nenhum, já que minha mãe tinha o péssimo hábito de dar ótimas condições de pagamento para novos casais.

Só que havia um jeito de pagar as contas que estavam atrasadas, o que significava que eu teria que abdicar do dinheiro que economizei por tanto tempo. A ideia de abandonar o plano de ir para a Espanha não era nem tão ruim agora que eu e Beatriz estávamos juntos. Planejei mochilar sozinho desde os meus doze anos de idade e junto dinheiro desde essa época para isso. Foram anos dando aulas particulares, limpando piscinas e consertando computadores para conseguir conhecer o mundo.

A situação da minha família nunca foi boa. Meus pais sempre batalharam muito para dar boas condições para mim e meu irmão.  As aulas particulares que dei me garantiram boas notas e um bom abatimento na mensalidade da escola, mas meu pai tem problemas cardíacos e gastamos muito dinheiro com remédios, o que sobra é suficiente para vivermos, apesar do aperto no fim do mês. Só que esse acontecimento do casamento deixou um belo rombo no nosso orçamento. 

E eu nem sei o que quero ser. Queria ser como a Bia, decidido a ponto de ter meu plano para o futuro, mas não sou assim. Tenho uma ansiedade que me faz ficar várias noites em claro. Já precisei tomar remédio para dormir algumas vezes. As pessoas me acham calmo, mas sinto como se eu fosse uma piscina, calma na superfície, tempestade no fundo. Às vezes, procurava imagens de pontos turísticos na internet só para me acalmar, fingindo que estava nesses lugares. Sei de muita história por causa dessas minhas pesquisas.

Só que diante daquela situação, a viagem talvez devesse ser adiada. Não sabia o que fazer. Fui para a escola e a presença da Bia me deixou balançado pela opção de dar o meu dinheiro para os meus pais. 

Bia nem percebeu minha preocupação a princípio porque Elisa,  a garota que nos expôs em frente a toda a escola, tinha um canal no Youtube que estava ficando cada vez mais famoso. Ela tinha feito um vídeo com Daniel e isso era a nova fofoca da escola. Foi um alívio, pois permitiu que eu pudesse abraçar a Bia na frente de todo mundo sem ser chamado de "Garoto Lesma". Nem pude acreditar quando passei desapercebido por todo o intervalo. Tudo que eu precisava era paz.

— Ainda estou meio chateada com a Elisa, mas ela teve os motivos dela — Bia comentou.

— Sei que não tenho nada a ver com isso, mas o Daniel não é o tipo de cara que fica com uma garota só — adverti.

— Não precisa falar nada. Ela sabe disso. Falou que é só amizade.

— Duvido que ele queira só isso.

— Eu também.

Elisa se aproximou e sentou-se do lado da Bia.

— Está vendo. Eu tinha razão — ela se gabou, fazendo Beatriz olhar para ela como se Elisa fosse uma criança teimosa. — Daqui a pouco ele está de volta dessa viagem e vocês vão rir dessa situação.

Esse comentário fez com que lembrássemos mais uma vez que cada dia era um dia mais perto da minha ida. Fiquei meio desanimado e pude notar que Bia também ficou meio cabisbaixa. Elisa percebeu nosso desânimo e saiu um pouco depois, quando algumas meninas do sexto ano vieram conversar com ela para tietá-la.

— Nem sei se terei condições de ir — comentei.

— Como assim? — ela se espantou.

Achei que Beatriz ficaria feliz em saber que eu ficaria, mas ela pareceu chateada com a situação. Estranhei essa reação na hora.

— Aconteceu alguma coisa? — Bia se adiantou.

— Minha mãe recebeu uma grande encomenda e os clientes desistiram em cima da hora. Meu pai está precisando de ajuda para pagar as contas. Acho que vou dar o dinheiro da viagem para ajudá-los.

— Mas não é justo... — Beatriz pareceu triste.

Cerrei os lábios, exprimindo minha falta de opções. Não tinha muito o que fazer.

— Você não ficou feliz por eu ter que ficar? — perguntei, depois de longos minutos em silêncio.

— Não é isso. É que é seu sonho. Não quero que você fique por mim, eu quero que você realize todos os seus sonhos. E se na volta você quiser voltar para mim e eu estiver aqui por você, então quer dizer que é para ser.

Ela me explicou como se isso fosse óbvio. E deveria ser. Sorri. Eram essas coisas que ela dizia que me deixavam mais tranquilo com a possibilidade de ter que ficar.

— Tive uma ideia — Bia falou com aquela expressão de empolgação.

Depois disso, ela foi até Elisa e conversaram por alguns minutos. Bia me explicou sua ideia e achei que não daria certo no início, mas a verdade é que ela tinha toda a razão. No dia seguinte, abri a página no Youtube e lá estava um vídeo que Elisa tinha prometido.

— Olá, terráqueos. Bem vindos ao canal Elisa Bitz. Antes do vídeo de hoje eu tenho que fazer uma recomendação. Se vocês moram aqui na minha cidade vocês precisam conhecer os doces da Dona Simone. E vou logo avisando que não é publi! Os preços são maravilhosos e o sabor é coisa de outro mundo. Procurem pelos Doces da Dona Simone. Eu vou deixar o link do site dela na descrição do vídeo. Minha dica é o bolo de ameixa. Juro que vocês não vão se arrepender. 

Poucos minutos depois, o telefone da minha mãe não parava de receber ligações. Eram tantas encomendas que nunca vi minha mãe tão grudada no celular. Pelos meus cálculos, esgotaríamos o material comprado para o casamento em menos de dois dias. E recebemos encomendas para meses depois. Elisa tinha um poder de influência que eu nunca poderia imaginar.

— Filho, o que foi isso? — minha mãe perguntou, assustada. Eu havia falado que ela provavelmente receberia algumas encomendas, mas ela nunca esperou algo daquela proporção.

— Foi um vídeo da ElisaBitz, mãe. Ela recomendou seus doces para milhares de seguidores — expliquei.

— Que incrível!  Mas de onde você conhece ela? 

— Estuda no colégio. É a melhor amiga da Bia.

Minha mãe esboçou um grande sorriso, como se já tivesse entendido o que estava acontecendo.

— Você vai sentir saudades dessa menina quando for para a Europa, não vai?

— Você ainda pergunta, mãe?

***

Deitados à beira da piscina do prédio da Bia, nós dois olhávamos para o céu sem falar nada, provavelmente pensando nas coisas que haviam acontecido em tão pouco tempo. Não conseguia parar de me perguntar como a única pessoa que me fazia querer ficar era a pessoa que me ajudou a ir. Olhei para ela, que estava num maiô vermelho, e fiquei rindo comigo mesmo.

— O que foi? — ela perguntou.

— Você sabe que sou um cara socialmente educado a base de séries, filmes e livros...

— Você é um nerd. É isso que quer dizer? — ela zombou.

— Isso também — ri junto. — Mas o que eu quero dizer é que tenho uma visão enviesada de relacionamentos. Para mim relacionamentos têm sempre uma grande complicação. Há sempre um cara ansioso, como eu, que conhece a garota aparentemente perfeita que trará um milhão de problemas, mas vai animar a vida do protagonista e fazer ele descobrir coisas surpreendentes sobre si mesmo.

— Acho que estamos num livro, então, porque essa sua ida vai ser uma complicação e tanto, não acha? — ela continuou olhando para as nuvens com seus óculos de sol meio quadrados.

Acho que também me perdi olhando para o céu por uns segundos, sem querer pensar no último dia de aula.

— Mas lembre-se de que, como já falei, eu jamais iria querer que você deixasse de viver suas experiências por mim — ela continuou, como se estivesse se explicando por ter chamado a viagem de complicação.

Ri comigo mesmo mais uma vez, mas, ao mesmo tempo, permaneci um pouco calado. Bia percebeu e segurou minha mão, afastada apenas pelo espaço entre as cadeiras de praia.

— Está vendo? — comentei.

— O que foi? — ela levou a mão à testa para diminuir a intensidade da luz solar em seu rosto.

— Essa viagem nem é uma complicação tão grande. Na verdade, é só um detalhe. Vai passar. Ter pressa é pura idiotice. Gostar de você é muito simples.

Ela sorriu de volta e concordou com um movimento de cabeça, se curvou e deu um beijo leve em meus lábios. Tive certeza de que eu sentiria saudades de casa.

— E eu não sou perfeita nem aparentemente — Bia brincou.

— E quem é? 

 


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Notas finais do capítulo

Got me in my feelings
What the hell you doing to me?
I can't help what I'm feeling
https://www.youtube.com/watch?v=YFNGCR-xqwo



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