Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 12
Beatriz


Notas iniciais do capítulo

Prova da minha imaturidade.



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Era domingo, então aproveitei o tempo livre para assistir uma comédia nacional com as minhas amigas. Fazia muito tempo que eu não saia só com elas. Tainá mostrou um desenho que Cecília havia feito para ela, junto com um origami de canguru, que representava Tetê. Eu e Elisa quase choramos juntas. Nunca pensei que Cecília tinha um lado tão sensível. Elisa até pensou em pedir para Cecília mostrar as obras dela em seu canal no YouTube, mas Tainá falou que era melhor não, pois nossa colega era muito reservada e preferia guardar seus desenhos para si.

Preferimos não assistir um romance nesse dia por motivos óbvios. Elisa estava esbanjando confiança desde que provou na frente da gente que havia superado Daniel, colocando-o em seu devido lugar. Acho que ele está tentando se reaproximar depois que descobriu o quanto ela é querida na internet, mas se depender de mim isso não vai acontecer.

Quanto a mim, também não estava no clima de comédias românticas. Tudo que eu pensava era no resultado do vestibular. Olhava para o meu celular a cada cinco minutos, procurando pela mensagem com a minha nota. Foi no dia do cinema, quando eu voltava para casa de táxi, que eu recebi uma mensagem.

Grupo – Squad das musas

Tainá (17:30) - Gente!!! Saiu o resultado!!!

Tainá (17:31) – 702,1!!!! Eu consegui! Universidade, aí vou eu.

Elisa (17:34) – AAAAAAA Parabéns!

Elisa (17:34) – Socorro! Não estou conseguindo acessar o site.

Olhei para a quantidade de bateria disponível e me desesperei, pois só restavam cinco por cento. Abri a página do vestibular, mas estava fora do ar. Carregava e a página nunca abria. Meu coração acelerou. Atualizei a página novamente. Meu celular descarregou.

— Mais que porra! — gritei.

O taxista fez uma cara feia para mim, julgando a linguagem inapropriada.

— Desculpa, moço. Meu celular descarregou na pior hora.

Pelo espelho do retrovisor, pude ver que ele apenas repuxou o canto dos lábios, indicando seu desprezo, e continuou de olho na estrada.

Quando cheguei em casa, praticamente corri da portaria até o elevador. Foram seis minutos da entrada do prédio até o momento em que me sentei em frente ao notebook, contados no relógio. Abri a página do vestibular novamente e ainda não estava carregando. O sistema deveria estar sobrecarregado. Minhas mãos estavam suando frio e o mouse ficou escorregadio. Atualizei a página mais umas dez vezes, até que aquele resultado tão esperado apareceu. Meus batimentos deveriam estar numa frequência altíssima. Mesmo parada, eu estava ofegante.

Lá, num fundo laranja e verde claro, um quadro cheio de números apareceu. Notas divididas numa tabela por área do conhecimento. Achei que era uma lágrima, mas era uma gota de suor que tinha caído na minha bochecha. Respirei fundo. Gritei.

— O que foi, menina? — Jô correu até o meu quarto.

— Saiu, Jô! Saiu a nota! Eu vou entrar em medicina ano que vem! — gritei.

— Não é surpresa para ninguém, meu amor. Você é um exemplo de menina. Sua mãe vai amar a notícia — Jô veio até a mim para me dar um abraço emocionado.

— Eu não estou acreditando! — não consegui tirar o sorriso do rosto.

— Pode acreditar, Bia. Você merece. Mas com esse grito eu quase tive um infarto. Acho que vou pedir uns remédios para a dona Emília — Jô estava sorrindo, mas ainda parecia espantada e trazia a mão no coração.

— Desculpa, Jô — falei sorrindo.

Foi uma sensação de estranha. Claro que eu estava muito feliz com a notícia, mas a sensação que prevaleceu foi o alívio. Alívio por não ter falhado, por ter conseguido trilhar o caminho que planejei desde a alfabetização. Quando perguntavam o que eu queria ser quando eu crescesse, eu dizia médica. Eu queria ser tão admirada quanto a minha mãe. Queria que pessoas me parassem no shopping e agradecessem, como faziam com ela.

Passada a adrenalina do momento, fiquei ansiosa para contar a novidade à minha mãe, mas não queria contar pelo celular. Fiquei repetindo na minha cabeça formas de falar para ela que eu tinha conseguido. Quando Jô saiu, deixou um bolo de cenoura com cobertura de chocolate, meu preferido, para comemorarmos o resultado, mas nem isso me deixou mais calma.

Emília (20:12) – Filha, chego em meia hora. O dia foi pesado.

Eu estava quase cochilando quando minha mãe chegou, acho que já eram quase nove horas. Quando entrou no apartamento, já olhei para ela animada.

— Soube agora que as notas saíram hoje. E aí? — ela também estava apreensiva.

— Acho que eu entro ano que vem, mãe. Tirei 790 — falei.

— Achei que você tiraria mais que oitocentos, pelo tanto que você estudou, mas deve ser suficiente para você entrar no segundo semestre. Só que as aulas provavelmente só começarão em julho. 

— Isso, mãe — respondi, com um sorriso que já estava começando a diminuir.

— Parabéns.

Ela disse isso, deu um beijo na minha testa e foi dormir. Não falou mais nada. Nem viu o bolo de cenoura que nos aguardava na cozinha. Na verdade, eu só a reencontrei dois dias depois, já que ela havia pego mais um plantão de 24 horas.

Resumindo, eu havia passado no curso mais concorrido do estado e foi isso. Sem festa, sem frases como "você é meu orgulho", a não ser as palavras que eu recebi da Jô. Mas Emília Nogueira já havia feito a mesma coisa 25 anos atrás, quando a situação dos meus avós era muito mais complicada que a nossa. Eu não podia reclamar.

Senti-me tão só que comecei a atacar o bolo de cenoura, direto da boleira, com um garfo. Quando já estava chegando a um quarto do bolo, decidi parar de ter pena de mim mesma. Peguei meu telefone e, num ato de fraqueza, mandei uma mensagem para o Felipe.

Bia (21:12) - Oi, Felipe. Saiu o resultado da prova. Fui bem. Vamos comemorar?

Lipe (21:12) - Uhul. Pizza agora? Eu pago.

Bia (21:13) - Pizza!

Lipe (21:13) – Já estava com saudades nos nossos papos existenciais aleatórios 

Lipe (21:13) - E parabéns, minha doutora. 

Olhei para o celular e pensei: “Minha? Que pronome estranho de se usar...”. Senti um embrulho no estômago. Eu não queria admitir, mas foi nesse dia que finalmente reparei que poderiam haver outras coisas do mundo além da medicina que já faziam meu coração bater mais forte.

Eu era muito mais do que um monte de número numa tabela ou uma continuação da existência da Dra. Emília Nogueira. Aliás, eu sou. Foi o Felipe quem me lembrou disso pela primeira vez. Sou uma garota extremamente teimosa que dificilmente dá o braço a torcer. Sou o tipo de pessoa que planeja manter contato com as minhas amigas até ficar velhinha. Se eu pudesse ter um superpoder, seria teletransporte. Morro de saudades do meu pai. Preciso de um hobby, por mais idiota que seja. Eu quero ser médica, mas quero construir meu próprio caminho. E concluí que tudo isso foi pensado enquanto eu me entupia de bolo de cenoura. Naquele momento, nem me importei com o meu futuro, eu queria encontrar Felipe o mais rápido possível. Estava disposta a dar o braço a torcer.

Enquanto me arrumava, fiquei planejando o que diria. Pensei em dizer: “Ei. Sumi um pouco, mas senti sua falta”. Ou algo como “Talvez eu possa te encontrar na Espanha”, mas acho que isso seria um tanto precipitado. Certamente, a coisa mais honesta a falar seria “eu sei que temos pouco tempo, mas eu queria ficar o maior tempo possível contigo”.

Troquei de vestido umas quatro vezes. Coloquei batom vermelho e depois tirei, pois não era prático. Eu nunca conseguia decidir rapidamente qual roupa usar. Chamei um táxi e deixei um recado em cima da mesa, que provavelmente nem seria notado. Cheguei na pizzaria. Achei que minha frequência cardíaca já havia chegado ao máximo naquele dia, mas fui surpreendida com uma frequência ainda maior. Sentei-me numa mesa e pedi um refrigerante de limão. Ele chegou uns cinco minutos depois, com o jeans de sempre e uma camiseta de listras de manga longa. Acenou para mim e sorriu espontaneamente. Abracei-o por um tempo quase constrangedor quando ele se aproximou.

— Bia, você não imagina como eu estou feliz por você. Deve ter sido uma emoção e tanto o que você sentiu.

— Foi surreal. Parecia que meu coração estava pulando.

— Você merece. Não conheço nenhuma pessoa no mundo mais determinada. Você inspira todo mundo que te conhece.

— É... Vamos pedir a pizza? — mudei de assunto para desviar a atenção do meu rubor.

O tempo com ele passava depressa. Conversamos sobre como as coisas lá na sala estavam diferentes, até a conformação das carteiras mudava diariamente. Felipe me contou que havia tirado setecentos e sessenta pontos no vestibular, o que me fez lembrar do tempo em que eu inventava uma competição entre a gente. Tenho certeza que se ele se esforçasse um pouco mais conseguiria passar de oitocentos pontos facilmente, mas isso era só mais uma qualidade nele.

— Vi que sua mãe criou o perfil para vender os bolos. Eu amei.

— Ajudou muito a aumentar as vendas. Só podia ter sido ideia sua. Sério, agora até temos que rejeitar alguns pedidos.

— Mas que dia de notícias boas. Um brinde?

Ergui minha taça e ele terminou o brinde.

— Ao sucesso! — Felipe brincou.

— Ao sucesso! — finalizei.

O nervosismo que eu estava sentindo foi sumindo naturalmente. Era impossível não ficar à vontade com ele. Até os silêncios constrangedores eram esperados. Mas, como sempre, algo tinha que me incomodar e estragar minha noite.

Quando Felipe se retirou para ir ao banheiro, seu celular vibrou. Olhei para os lados e pensei se deveria ver quem era. Então o celular vibrou mais uma vez. Ignorei. Da terceira vez, resolvi olhar. E lá estava uma confirmação de compra.

Parabéns, seu pedido foi processado com sucesso.

Sua passagem para o dia 30 de novembro com destino a Madrid já está confirmada.

As informações a respeito da bagagem despachada podem ser conferidas no site.

Aquilo me deixou triste e possessa. Trinta de novembro eram dois dias depois do fim das aulas. Ele nem tinha me falado nada. Eu sabia que Felipe já tinha planejado essa viajem há muito tempo, mas não achei que precisava ser tão cedo. Logo fiz mil suposições e concluí que ele não dava a mínima importância para o que estávamos vivendo, seja lá o que aquilo fosse. Ou pior, talvez fosse eu quem estivesse dando importância demais. Aquilo fez minha ansiedade tirar minha paz.

Em vez de falar alguma coisa, fiquei monossilábica. Alterei meu comportamento bruscamente. Olhei mais para o celular que para ele. Acho que chegou uma hora que nem ele teve ânimo para tentar continuar a conversa. Deixei claro que estava irritada. Pedi um táxi pelo aplicativo sem nem avisar.

— Está tudo bem? — Felipe parecia preocupado.

— Está — respondi.

Não estava, mas eu não queria conversar sobre isso. A ideia de dar o braço a torcer parecia idiota naquele momento.

Olhei para a mensagem no meu celular: Seu motorista está a dois minutos de distância.

— Desculpa, tenho que ir agora. Sabe como é... Já está tarde. Vou deixar um dinheiro aqui para ajudar na conta. 

 — Não é necessário — ele avisou. Parecia tão chateado quanto eu.

Não dei ouvidos. Tirei uma nota de cinquenta reais da carteira e deixei lá. Saí com tanta pressa para entrar no carro que nem deu tempo de me despedir direito ou de Felipe devolver a nota. Só virei para trás quando eu estava na porta do restaurante.

Seu motorista está no local combinado. Outra mensagem.

Olhei para ele, que olhava para a tela do celular. Felipe parecia triste. Senti algum remorso. “Será que eu o deixei assim, quando tudo que ele esperou por muito tempo foi essa viagem?”, pensei. Concluí que era melhor deixá-lo ir em paz.

Boa noite, senhora. Estou aguardando. O motorista escreveu no aplicativo.

Saí do restaurante e entrei no carro. Minha mãe continuava dormindo. Joguei fora o bilhete que havia escrito para ela. O silêncio que encontrei quando cheguei em casa fez meu humor piorar. A verdade é que me senti só, e o pior é que daquela vez fui eu quem me deixei só. Não sabia o quão egoísta eu conseguia ser. Dormi terrivelmente mal.

Sei que eu não tinha o direito de exigir nada, mas ao mesmo tempo não consegui evitar. Aquilo me denunciou. Sim, eu me importava, não queria que ele fosse tão rápido, queria ser informada que já estava tudo pronto para ir. Sim, eu não tinha razão, prova da minha imaturidade. O que fiz para demostrar isso foi exatamente o contrário do que eu deveria fazer. Nem eu mesma me entendo.

 

***

Encontrei um envelope com cinquenta reais na minha carteira. Na parte de fora do envelope havia um recado que dizia "Eu disse que pagaria. Cumpro com a minha palavra". Virei-me e olhei para Felipe, que estava sentado em seu lugar, dei um sorriso sem graça e voltei para minha posição. Eu já estava arrependida do que fizera, mas não queria me aproximar. Deixá-lo ir sem dramas era o melhor para ambos.

Nos afastamos depois daquele dia. Pensando agora, sei que me afastei por medo. Já não estava preparada para me despedir, então fiquei com receio de ter que ir depois de me jogar de corpo inteiro. Senti como se simplesmente fosse a hora errada, puro azar.

Eu já não era mais a mesma, é fato. E todos a minha volta repararam que eu havia mudado. Passei a falar menos dos outros, a me importar menos com as minhas notas, a criticar menos, a prestar menos atenção nas coisas que antigamente não deixaria passar. Não admiti para mim mesma na hora, mas eu estava cada vez mais parecida com ele. E o pior de tudo era essa sensação de que as coisas estavam indo rápido demais, que o tempo estava acelerando, quando eu só queria que as coisas andassem mais devagar.

— Quando você vai admitir que está sendo teimosa? — Tainá perguntou.

— Como? — eu estava com o pensamento longe. 

— Vai lá falar com ele — Elisa sugeriu. 

— Ah... Eu não tenho o que falar com ele. 

— E quando se chama quando você não tem o que falar com alguém e mesmo assim precisa falar com essa pessoa? — Tainá continuou com aquelas perguntas capciosas.

Dei de ombros. 

— Não tem nenhum motivo para não ir — Elisa falou.

— Não tem para quê. Não iria adiantar de nada, de qualquer jeito. Ele vai para a Espanha assim que as aulas acabarem... E não vai voltar tão cedo — expliquei.

— Então você tem mais um motivo para ir falar com ele. Seu tempo está acabando. Está se ouvindo? Você está incomodada com o fato de que ele vai passar um tempo longe. Isso só quer dizer uma coisa, Bia — Tainá continuou.

Respirei fundo e abaixei a cabeça. Tainá me abraçou de lado e eu me senti menos só por alguns segundos. Não fui falar com ele.

 

***

— Bia, posso falar contigo por um minuto? — Felipe chegou, interrompendo minha conversa durante o intervalo. Estávamos rindo sobre as tentativas frustradas de Daniel tentando se aproximar de Elisa.

Nos falamos poucas vezes depois do dia na pizzaria. Aos poucos, eu estava me acostumando a não o ter por perto, mas quando ele se aproximava era mais difícil.

Não gostei da expressão no rosto dele, era um misto de preocupação e pressa. Elisa e Tainá se entreolharam novamente, e todo mundo já sabia o que elas queriam dizer sem dizer nada. Fiquei com medo de ele vir tirar satisfações sobre meu afastamento ou algo do tipo. Meu intuito inicial era fugir da conversa, mas senti que era urgente. Nos distanciamos um pouco das meninas para conversar.

— Bia, eu juro que se não fosse importante eu não te incomodava, mas eu preciso de ajuda — ele falou com mais pressa, deixando-me preocupada.

— Pode falar.

— É a Vera, Bia. Ela foi ao banheiro há mais de trinta minutos e não saiu desde então. A Janaína está com o Silas e eu não sei como fazer para tirar a Vera de lá. Eu estou preocupado com ela.

— Como ela está? Ainda está abalada com a história do Marcelo? — perguntei.

— Acho que sim. Você se lembra de que eu fui com ela até o cemitério? Desde aquele dia ela anda estranha. Essa história está afetando a Vera demais. Ela está faltando, falando menos, agindo como se fosse outra pessoa. Por favor, me ajude com isso, eu já não sei mais como posso ajudá-la. Sei que ela gosta de você, então pode me ajudar?

— Tudo bem, eu vou lá. Tente relaxar um pouco.

Pensei por alguns minutos porque eu também não sabia direito como agir. Uma palavra errada e as coisas poderiam piorar. Eu conhecia Vera há muitos anos, mas não éramos mais tão próximas. Resolvi seguir minha intuição.

Entrei no banheiro e notei que havia uma porta trancada. As meninas entravam e saíam e não percebiam que havia alguém ali, só pensavam que a cabine estava interditada. Esperei o sinal tocar, até todo mundo sair dali, e bati na porta. Ninguém respondeu, então bati novamente. Vera só respondeu na quarta tentativa.

— Tem gente.

— Oi, Vera. É a Bia. Queria ver como você está.

— Estou bem. Quer dizer, estou com dor de barriga, Bia. Isso é meio constrangedor.

— Todo mundo tem dor de barriga. Eu tenho alguns remédios para enjoo na minha bolsa, quer alguma coisa?

 — Obrigada, estou bem. 

Fiquei esperando ali por uns cinco minutos. Não ouvi nenhum barulho nesse tempo.

— Vera?

— Sério, Bia. Pode ir para aula. Já estou quase acabando.

— Certo. Sem problemas, eu te espero.

Vera só ficou ali por mais uns dois minutos, continuou em silêncio, deu uma descarga e abriu a porta. Deu para ver que seus olhos estavam levemente inchados. Ela lavou as mãos lentamente e tentou esconder o rosto o máximo que pôde.

— Pronto. Vamos? — ela disse.

Olhei para Vera e parei por alguns segundos. Fiquei pensando no que falar, mas não me veio nada à cabeça. Então eu caminhei em sua direção e a abracei bem forte, daqueles tipos de abraço feitos para dividir um pouco da dor entre os ombros. Ela tentou se segurar, mas derramou algumas lágrimas nesse meio tempo. Não falamos nada, apenas ficamos ali esperando ela se refazer. 

— Eu queria ser forte como você é — falei.

— É óbvio que você é a mais forte de nós duas.

— Nada disso. Venha à minha casa quando estiver se sentindo assim.

— Obrigada.

— Você sabe que é sempre bem-vinda lá em casa. Lembra de quando sua mãe deixava você lá a tarde para brincar comigo e a Jô? Aí você se aproximou dos meninos e...

— Quer dizer... Obrigada por estar aqui — ela me interrompeu.

Segurei no braço dela e fomos assim para sala de aula. Felipe olhou para mim tentando entender a situação. Sorri para ele, que sorriu de volta. Um jeito interessante de conhecer alguém é ver como essa pessoa trata as pessoas à sua volta.

 

***

Desde o episódio no banheiro passei a conversar mais com a Vera. Acho que quando as pessoas ficam deprimidas o melhor a fazer é ficar ao lado delas, mostrar que existem pessoas que se importam. Então isso acabou nos aproximando.

Bia (08:30) - Oie! Bom dia :) Hoje tá um sol lindo. Vamos caminhar?

Vera (09:01) - Acordei agora. Não estou muito afim

Bia (09:04) - Por favor, vamos! Passei a manhã preparando um lanche para a gente comer depois do passeio. Soube que o parque municipal está lindo.

Vera (09:13) - Eita, não queria te dar trabalho

Bia (09:14) - Trabalho nenhum, mas os lanches vão estragar

Vera (09:15) - Não, não. Eu vou, então.

Bia (09:18) - Aê! Nos vemos lá no parque às 10.

Vera (09:19) - Até lá.

Pedi para Jô preparar uns sanduíches às pressas, enquanto eu me arrumava, pois eu não havia preparado lanche nenhum. Senti que Vera tinha se afastado um pouco, então não quis deixá-la ficar em casa durante todo o fim de semana.

— O dia está lindo — comentei.

— Mas está frio — Vera constatou.

Ela estava falando pouco. Os cabelos longos e castanhos estavam presos num rabo de cavalo baixo. Sentamos embaixo de uma árvore. Algumas crianças corriam ao nosso redor.

— Eu ainda estou aqui — lembrei. Parecíamos duas desconhecidas sem assunto.

Ela deu um sorriu tímido e ficou em silêncio. Não insisti. Comemos os sanduíches que Jô preparou e não dissemos quase nada. Assistimos as crianças correrem e de algum modo aquilo a fez sorrir um pouco mais.

— Sabe, Bia, ao contrário do que muita gente pensa, eu não estou assim por causa do Marcelo. Quer dizer... Não só por causa disso.

Apertei os lábios. Finalmente ela estava se abrindo comigo. Vera olhou para as crianças em silêncio por mais um tempo, como se estivesse se preparando para desabafar.

— Começou com essa história. Depois descobri que eu era uma das poucas pessoas que visitaram o túmulo dele. Então caí num poço sem fundo. Tenho sono o dia inteiro. Minhas notas baixaram, como esperado. Aí eu fiquei com menos vontade de estudar. Acho que emagreci uns sete quilos em pouco tempo. As notas pioraram ainda mais.

Como Vera sempre foi magra, não havia reparado na perda de peso, mas, quando parei para observar, era bem perceptível. A clavícula dela estava bem aparente. Em relação às notas, eu nem estava mais pensando atenção nisso.

— Minha nota do vestibular foi péssima, Bia. Praticamente arruinei o esforço de dois anos em alguns meses. Tirei seiscentos e dois. Preciso de muito mais que isso.

— O que você planeja cursar? — perguntei.

— Eu sempre quis ser pediatra. Não me imagino fazendo outra coisa.

Engoli seco. Entendi a expressão dela vendo as crianças correrem. Tínhamos objetivos parecidos, mas eu já estava com um pé na melhor escola de medicina do estado. O que eu poderia dizer que a faria se sentir melhor? Eu não poderia ser hipócrita. Fiquei visivelmente sem jeito.

— Imagino que você tenha ido bem, Bia. Não é novidade, você merece. Foi esforço seu. Queria ser determinada assim. Eu que queria ser forte como você.

Olhei para ela e fiz que não com a cabeça, sem acreditar no que tinha acabado de ouvir.

— Como é que é? Isso não é questão de força, Vera. Ser forte é sobreviver às adversidades. Você quem é mestre nisso. O que acontece é que às vezes os nossos neurotransmissores ficam desregulados, o que leva a muitas dessas coisas que você está sentindo. Não foi culpa sua. Pode acontecer com qualquer um. E daí que sua nota foi baixa esse ano? Entrar agora ou daqui a cinco anos não me faz melhor ou pior que você. Ou mais forte. São duas histórias de vida diferentes. Cada um tem seu tempo. A gente tem a vida inteira pela frente.

Nem acreditei que eu tinha falado tudo aquilo. Meu eu de antes diria que atrasar um ano da sua vida era estupidez. Estupidez é acreditar nisso.

— Mas eu nem sei o que eu vou fazer agora... — Vera quase sussurrou.

— Se quer uma opinião, devemos procurar ajuda médica. E se você quer ser pediatra, você será. Eu te ajudo.

Então ela deu um sorriso largo, como os de antigamente, e olhou para mim com um ar de esperança.

 

***

— Dr. Val é amigo da minha família, se formou na turma da minha mãe. Ele é uma pessoa maravilhosa — contei.

— Eu sei que já tenho idade para entrar sozinha, mas você poderia ir comigo? — ela pediu.

Assenti com a cabeça. Vera estava extremamente nervosa e quase não haviam mais unhas para roer. Olhava para o relógio a cada três minutos. Quando o nome dela foi chamado, levantei primeiro, estendi a mão e a guiei pelo corredor até o consultório.

Foi uma consulta longa. Dr. Val permitiu que eu ficasse por lá, se era isso que Vera queria. Ele demonstrava interesse genuíno e perguntava coisas sobre os mais diversos aspectos da vida dela. Ao final, receitou alguns remédios e sugeriu algumas atividades, como entrar num esporte e iniciar um novo hobby – segundo ele, a vida dele mudou depois que passou a se dedicar à alvenaria.

Foi mais de uma hora de catarse. Minha amiga colocou para fora todas as suas frustações por não ter conseguido ajudar seu amigo, por não ter conseguido entrar na faculdade que queria, por estar se afastando das pessoas, por ter medo de decepcionar seus pais. Ao final, parecia que ela estava muito mais tranquila que antes.

— E lembre-se da nossa conversa sobre a terapia. Eu recomendo para os meus amigos e para os meus pacientes. Faz bem para todo mundo — ele disse, enquanto se despedia.

Dr. Val era muito melhor do que as pessoas me contaram. Desejei ser uma médica como ele no futuro. Uma médica que faz as pessoas saírem diferentes do consultório em relação a como entraram, que faz diferença na vida das pessoas e prioriza o cuidado.

Quando coloquei os pés para fora do consultório, prestei atenção nela. Vera estava calma e trazia os olhos um pouco irritados, pois tinha se emocionado algumas vezes. Nós duas estávamos felizes. Senti como se dali em diante estivéssemos muito mais ligadas que antes. Peguei um ônibus até a casa dela, só para acompanhá-la. Quando eu estava prestes a ir embora, Vera me abraçou de repente.

— Mil vezes obrigada. Não tem nem como te recompensar por isso — ela agradeceu.

— É só prometer que vai seguir à risca tudo que o Dr. Val falou — dei uma piscadela.

— Você é incrível. É por isso que ele sente tanto sua falta.

Arregalei os olhos e levei a mão ao rosto, morrendo de vergonha.

— É sério. Ele sente muito a sua falta.

— Mas vai embora — retruquei, triste.

— Por favor, que isso fique só entre a gente, mas ele imaginou que você viu a confirmação da passagem e não quer te magoar indo embora, mas ele precisa disso. O Felipe passou a vida inteira abdicando de muita coisa pela família dele. Pela primeira vez, ele precisa fazer algo por si mesmo.

— Pois é... Não tem porque investir em algo que vai acabar.

Vera ergueu uma sobrancelha e continuou.

— Sabe, nos meus piores dias eu olhava para o teto por horas imaginando o que se passava na cabeça do Marcelo. Acho que ele pensava justamente assim... Que algo finito não vale a pena... Que o sofrimento é mais forte que todo o resto.

— É diferente... — respondi.

— Não é a duração de algo que faz ser mais ou menos especial. Existem plantas que florescem por poucos dias e atraem pessoas do mundo inteiro que querem admirá-las. E não dá para prever tudo, Bia.

— Não sei se aguento isso.

— E desse jeito é mais fácil? Se afastando do que te faz bem? E o pior, sofrendo por antecipação. É complicado, eu sei, mas vai falar com ele. Sejam honestos. Não fiquem pensando demais como eu. Não esperem mais um minuto. Um minuto pode fazer diferença lá na frente.

Eu fiz que sim com a cabeça, a abracei novamente e saí. Na volta, tive um choque de realidade. Vera estava muito certa. Ao chegar em casa, foi uma dessas ocasiões raras em que minha mãe já estava me esperando. 

— Boa noite, Bia — eu já ia direto para o quarto, mas ela estava a fim de conversar.

— Oi, mãe.

— Valdemir me mandou uma mensagem. Ele disse que você ficou com sua amiga o tempo inteiro. Ela está bem?

— Está melhor agora.

— Sei que não sou muito boa com as palavras, mas você é uma ótima filha. Minhas amigas falam que eu tenho muita sorte e é verdade.

Fui até a mesa para abraçá-la. Era até estranho ouvi-la falar daquele jeito.

— Bia, já que você terá um semestre de descanso, que tal aproveitar para fazer um curso?

Respirei fundo. Era bom demais para ser verdade. 

— Mãe, eu queria tirar um tem... Quero dizer, se você acha...

— Que desânimo, Beatriz. Estou pensando num curso fora do país. Você poderá ficar com sua tia Raquel, se quiser. Seis meses se dedicando a um idioma. Não seria maravilhoso?

— Mas mãe, é caro e... — fiquei boquiaberta.

— Você merece. 

Mal acreditei no que tinha ouvido. As pessoas estavam dizendo tanto aquelas palavras para mim que não tinha mais como desacreditar. Corri para abraçá-la novamente. Minha vida estava virando de ponta-cabeça.


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Notas finais do capítulo

https://www.youtube.com/watch?v=izXScOqVhMM

There's too much broke to feel this
Well I love you, I love you
And all of your pieces



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