Olhos mais profundos que todas as rosas escrita por Vaalas


Capítulo 1
Único ― somente uma coisa em mim compreende.


Notas iniciais do capítulo

e.e cummings é muito amor. Não sei se teria conseguido escrever essa história sem os poemas dele.



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“Somente uma coisa em mim compreende,

que a linguagem dos teus olhos

é mais profunda que todas as rosas.

 

Ninguém, nem mesmo a chuva,

tem mãos tão pequeninas”

― e.e cummings

 

Na primeira manhã de primavera, ele surgiu.

Você sentiu, de alguma forma, como um arrepio na pele da sua nuca ou uma puxada sutil nos cabelos, mas não pareceu ser realmente importante na época. Era março e a neve ainda derretia lá fora, com o verde da grama e o colorido das flores brotando sob o branco. Naquele dia em específico, você se inclinou sobre a janela aberta da cozinha e tentou abrir um sorriso para o fim do inverno, mas não conseguiu.

Então voltou-se para dentro e fechou as janelas ― a chaleira começava a chiar às suas costas, então puxou-a de cima do fogo e pôs um fim àquilo porque simplesmente não tinha paciência para qualquer coisa que interrompesse a quietude daquela tarde.

Você deveria sorrir ― e sabia bem disso ― mas não se esforçaria demais. Foi numa primavera assim que ela uma vez havia ido, com seus vestidos de flores e suas sandálias de dedo, os cabelos foscos contra a luz do sol. E você a amava e você não esquecia e você simplesmente não iria sorrir naquela tarde, nem tarde depois daquela e nem achava que sorriria algum dia novamente, principalmente em uma primavera, onde tudo à sua volta parecia sorrir e viver demais ― você não queria viver, muito menos sorrir.

Havia, no entanto, aquele puxão de orelha, aquela teia de fios transparentes à sua volta, enroscando-se em você como uma jiboia, e os fios dessa teia puxavam mais e mais, tentando atiçá-lo de algum modo, apertando seus dedos até o sangue ficar preso e as unhas ficarem brancas.

Então você resolveu puxar de volta ― e pela primeira vez, em muito tempo, alguma coisa pareceu fazer sentido.

X

Ele nasceu sem permissão no meio da sua plantação de hortelã. Primeiro você pensou que não passava de uma erva daninha, mas agora que a neve começava a sumir e você abaixou o olhar um pouco mais conseguiu ver o broto vermelho surgindo na ponta do caule. Se perguntou se aquilo viria a ser uma flor, e se fosse, você deveria admitir, seria uma flor estranha, crescendo solitária com aroma de hortelã.

Talvez o certo fosse retirar aquela flor selvagem dali ― era primavera, e na primavera as coisas nascem em desordem e se jogam sem sentido sobre a vida ―, porém por uma série de motivos que nem você saberia explicar no futuro, talvez guiado pela curiosidade ou pela suspeita, deixou que ela ficasse ali, esperando para ver o que sairia daquele jovem broto.

Ou talvez, você cogitaria no futuro, talvez fosse porque aqueles fios invisíveis estavam lá, à sua volta, puxando e esperando serem puxados também.

X

A flor de fato cresceu. Você fez questão de acompanhar. Todos os dias estava lá, quando as folhas ainda estavam frias pela geada, e encharcava a terra sob as plantas. Em pouco tempo o caule já estava erguido, apenas um pouco curvado para a direita, e você podia ver o leve esforço que as pétalas desempenhavam para se abrirem ao sol. Decidiu então, naquela tarde, que era hora de passar a flor para um vaso e pousá-la na janela do seu quarto.

Parecia ser a coisa certa a se fazer ― principalmente quando a manhã nascia e a flor parecia absorver o calor do sol. Parecia respirar, viva, vibrante, preenchendo aquele quarto cinzento e frio com uma beleza que uma semana antes você poderia não querer. E se era assim sem nem as pétalas estarem abertas, às vezes você se pegava pensando como seria quando se abrissem.

Deveria ter o aroma de verão e hortelã, mesmo que fosse alta primavera lá fora.

X

Na manhã em que a flor se abriu para o mundo havia uma sombra sobre a janela que não permitiu que a luz do sol morno chegasse até sua cama. Primeiro você cerrou os olhos sonolentos e soltou um resmungo insatisfeito, antes de enfim conseguir enxergar o que projetava uma sombra tão comprida dentro do quarto. Quando conseguiu ver, desejou não tê-lo feito.

Havia um garoto sentado no beiral da sua janela, as pernas pendendo para o lado de fora ― e você piscou umaduastrês vezes antes de piscar uma quarta e finalmente se sentar na cama com o transtorno e o espanto cravados em sua face. E sim, havia muito motivos para se estar espantado naquela situação porque 1) havia um rapaz desconhecido em seu quarto, 2) não deveria haver um rapaz desconhecido em seu quarto e 3) o rapaz estava nu.

E você tentava, de todas as formas possíveis e impossíveis, entender o que estava acontecendo ou o que tinha acontecido na noite anterior, mas a lembrança de dormir em silêncio e sozinho naquele quarto cinza era bem clara. Então você olhou para o garoto, mas o garoto não olhou para você de volta. Ele olhava para o sol, nascendo ao leste, bem em frente ao quarto, e não olhou para você nem mesmo quando falou pela primeira vez:

― O calor parece queimar todos os meus ossos, mesmo que talvez eu não tenha nada disso, mesmo que eu seja feito de fibra e seiva e pólen ― apertou as mãos em frente ao corpo, sem desviar o olhar. ― Ainda assim, ainda que seja tão bom, sinto tanto frio.

E deveria mesmo sentir, você pensou, coçando os olhos, o fantasma do inverno ainda corre pela brisa, e você está nu.

 ― O qu... Quem é você? ― era só a primeira de muitas perguntas, mas pareceu ser a mais importante naquele momento.

O garoto virou o rosto para você pela primeira vez, e seus olhos eram escuros como a terra úmida lá fora.

― Eu sou sua flor.

X

Quando você era pequeno, seu pai lhe disse numa noite quente de agosto, enquanto assistiam ao noticiário, que as perguntas guiavam o homem pelo caminho da verdade, e que era só perguntando, indagando, inquirindo e caçando respostas e conceitos e fatos que se chegava a algum resultado. Você assentiu, consciente, aprendendo. E então quinze anos no futuro houve a chance de testar esse aprendizado.

Era primavera uma outra vez e a porta do chalé estava aberta. Ela estava ali, parada na varanda com duas malas grandes e com uma pena intensa ― pena de você, lembre-se ― enterrada nos olhos. Ela olhou para você, você olhou para ela, e o café queimando na xícara em sua mão parecia mais amargo do que nunca.

Então você perguntou, porque não entendia e porque queria a verdade. Perguntou por que ela ia e para onde iria, o que tinha feito, o que havia acontecido e por que e por que e milhões de outros porquês.

Ela disse que era porque assim que as coisas deviam acontecer. Porque uma hora teria que acontecer. Porque se você não seria o primeiro a fazer isso, então seria ela.

E você ficou ali, parado na sala de estar com suas pantufas azuis sobre o chão de madeira polida ― mogno. Ironicamente, ela o escolheu ―, a xícara encaixada nos dedos enquanto ela andava até o carro e ia embora. Para longe, longe e longe. O mais longe que pudesse.

Era melhor assim.

X

Naquela manhã, decidiu que não iria perguntar. Não queria ouvir as repostas.

Então você levantou da cama e saiu do quarto, passou pela cozinha e andou até a sala de estar, mergulhada no silêncio frio com as janelas todas bem fechadas. Abriu a porta da frente, apenas você, aquelas pantufas feias e aquele roupão velho bem fechado sobre o corpo. Lá fora, vazio, nenhum carro, nenhuma moto ou mesmo uma bicicleta. Desceu os degraus da varanda e circundou chalé na esperança de encontrar alguma coisa, mas ainda assim, nada de incomum, apenas sua própria caminhonete velha estacionada no jardim de trás. Uma manhã de sol morno e vento frio, flores brotando, céu limpo e um garoto nu sentado em sua janela, vindo do nada.

Você sabia que ele não podia ter andado até ali da cidade mais próxima. Até porque não havia cidade mais próxima. Havia floresta e mato, uma trilha de terra batida e uma cidade há uma hora de distância de carro.

Não iria perguntar, lembrou-se, então voltou para dentro de casa e fechou a porta atrás de si, respirando fundo antes de voltar para o quarto e confrontar o que quer que estivesse acontecendo.

Ainda parado na janela, sentando ao lado do vaso, o garoto tremia sutilmente e abraçava o próprio corpo. Você encostou-se na porta e conferiu se era tudo verdade antes de abrir o armário e carregar um cobertor pesado até a janela.

― Você deve estar congelando. ― O garoto olhou para você por baixo dos cabelos compridos e você jogou o cobertor sobre seus ombros sem nenhuma gentileza, para evitar que ele olhasse mais afundo. ― Agora desça daí.

Um pouco atônito, o garoto desceu da janela, apertando o cobertor contra si. Você tentou não olhar para ele e ele tentou olhar para você com todas as forças, sugando-o para o buraco negro que eram aqueles olhos. Você sentiu-os em si, quebrando suas barreiras, e saiu do quarto antes que aquilo ficasse mais estranho.

X

Ele tinha cabelos vermelhos como um morango em época de colheita, e às vezes, com a luz do sol, se pareciam com as folhas de outono que caíam por três meses inteiros do lado de fora. Às vezes você encontrava essas folhas sob a cama, no começo da manhã, e as guardava dentro de um livro não lido em sua estante. Assim, quando fosse os ler no futuro, se depararia com aquela folha e lembraria do aconchego do outono e da graça que era encontrar folhas bonitas espalhadas pela casa.

Mas você não havia encontrado aquele garoto sob sua cama, por mais que seus cabelos tivessem o outono neles, aquilo não possuía graça alguma, e não tinha como você guardar ele dentro de um livro. Você então sentou-o na mesa da cozinha e pôs um prato de biscoitos à sua frente, junto à uma xícara de chocolate morno. Sentou-se também, logo ao lado, e desta vez se permitiu encará-lo.

― Pode comer. ― murmurou, tentando soar como um bom anfitrião, mesmo que o garoto não fosse uma visita e que você nunca houvesse sido um bom anfitrião.

O rapaz encarou os biscoitos com uma curiosidade incomum.

― Não tenho fome.

― Tem algo que queira então?

― Quero água. Quero ir lá fora.

Você tentou não suspirar ao se levantar e lhe estender um copo de água. Tentou não suspirar quando abriu a porta e deixou que saísse, os pés descalços afundando na terra fofa do lado de fora. Tentou não suspirar até mesmo quando o garoto sentou-se no chão em um ponto onde o sol batia melhor, com a luz banhando seu rosto, corpo e cabelos por inteiro.

Tentou não suspirar, mas enfim o fez, apoiado no batente da porta, pois sabia que estava metido em um problema enorme ao ver o garoto deitar-se na terra e fechar os olhos, como se o mundo fosse nada e nada fosse o mundo.

E você suspirou mais uma vez, porque não tinha ideia do que estava acontecendo ali.

X

 O garoto entrou no chalé só quando o sol começava a se pôr. Você olhou pela janela da cozinha com um cigarro entre os dentes e o céu era apenas laranja, ouro e vermelho, com leves tons de violeta escuro e azul. Você gostava do pôr do sol e gostava daquele clima que pairava no ar antes da noite de fato começar ― tinha um aroma que lhe lembrava tempos bons, onde as coisas eram mais fáceis e tudo cheirava à sal, mar e ressaca das ondas.

― Tenho sede. ― disse uma voz atrás de você, baixa o suficiente para passar despercebida.

O garoto estava parado sob o arco da porta da cozinha, com terra e folhas presas no seu cabelo e cobertor. O rosto estava uma imundice, assim como as mãos e unhas, mas você fingiu não prestar atenção ao andar até a pia e lhe estender mais um copo com água.

― Não tem fome? ― perguntou, enquanto apoiava os braços no balcão e encarava aquela figura selvagem com o fogo nos cabelos.

― Não.

― Qual a sua idade?

― Não tenho certeza. Dormi por muito tempo.

Você continuou o encarando e assentiu com seriedade, como se aquilo fizesse pleno sentido.

― De onde você veio?

O garoto olhou para o copo agora vazio em suas mãos, parecendo tanto confuso quanto preocupado.

― Não sei também. Vim de longe, carregado pelo vento, até que pousei sobre o chão lá fora, no meio de hortelãs.

A flor, lembrou como se fosse uma memória distante, o garoto disse que era sua flor.

― Você sabe que isso não faz o menor sentido, não é?

Ele deu de ombros, como se não ligasse realmente, e você continuou encarando-o confuso até desistir das respostas. Estava mergulhando de cabeça na bagunça que era aquilo tudo.

X

Hoje, quando você lembra da confusão que foi aquele primeiro dia, do garoto sentado na janela ou da imagem dele rolando na terra lá fora, você sorri. É um sorriso cheio de lembranças boas e de um sentimento agradável no peito, abrindo e fechando, puxando e empurrando, soltando e apertando bem forte, com punhos firmes ― e você o aperta com essa mesma força em sua mente, com medo que tudo aquilo suma como um sonho bobo. Mas não some e você deita na cama em silêncio, olha para o teto e agradece a qualquer coisa que seja, apenas pelo prazer de se agarrar àquilo e saber que sim, foi real.

X

Você acorda às quatro da manhã e sente algo pesado prendendo seu braço e sua perna esquerda, abre o olho e só vê o escuro do quarto e a sombra dos objetos pela lanterna ligada no cômodo ao lado da cama, então você olha pro lado e vê cabelos vermelhos que cheiram a shampoo ― ao seu shampoo ― e duas mãos pequeninas apertando o seu braço. Ele dorme, o peito subindo e descendo, crescendo e diminuindo, a respiração branda batendo em seu ombro, e você percebe que está acordado e que o garoto dorme ao seu lado por alguma razão desconhecida.

Você tira as mãos dele de você e desenrosca aquela perna preguiçosa que se enrolou à sua como se fossem uma só, então sai da cama e fica em pé à sua frente, olhando para aquele corpo de um desconhecido jogando em sua cama. Aquilo era tão errado quanto era possível ser, e você já teria chamado a polícia local se houvesse algum maldito sinal de área no chalé ― mas não havia, e ela já havia reclamado muito disso no passado, então você se recusou a reclamar também.

― Não estou dormindo, sabe ― o garoto sussurra, abrindo um dos olhos para olhá-lo. ― Apenas tentei imitá-lo.

Você olha para ele fixamente e se pergunta como ainda não o empurrou porta à fora para começo de história.

― Volte para o sofá. Você não vai dormir aqui.

― Não. ― ele senta na cama ― Eu não sou capaz de dormir, de qualquer modo. Se quiser posso sentar ali e ficar vendo você dormir até o sol nascer.

― Garoto. Sala. Sofá. ― Você aponta para a porta aberta e tenta o soar o mais ameaçador possível, mas o garoto apenas lhe encara sem palavras, aqueles olhos profundos transbordando tristeza.

Ele então levanta e fica em pé à sua frente. Não é mais alto que seu ombro, mas parece maior do que você com aquele olhar de pura incompreensão. Não incompreensão por parte dele, você nota, mas por parte sua.

― Você não entende mesmo.

E, antes de sair pela porta do quarto, agarra o vaso da flor com as duas mãos e o abraça.

Naquele momento, quando a luz da lanterna bate em seus pés descalços e sobe para seus cabelos, você nota que a cor deles é exatamente ― minimamente, perfeitamente e extremamente ― igual a cor das pétalas da flor, quase abertas totalmente para o mundo.

E na hora em que você nota isso, parado no meio do quarto cinzento e frio, percebe o quão louco está se tornando, com aqueles fios engraçados fazendo cócegas nos seus dedos.

Então você decide puxá-los mais uma vez só para ver o que acontece.

X

Na manhã seguinte você pegou uma maça vermelha na fruteira e um copo de água antes de sair de casa. Ele está lá fora, como você já esperava. Está deitado sobre a grama recém-aparada, os cabelos espalhados embaixo de sua cabeça e os olhos fechados tão tranquilamente que você podia achar que estava dormindo. Mas não estava, porque ele não podia dormir. E mesmo que não quisesse acreditar naquela baboseira toda de flores, o consumo de água apenas e a necessidade do sol na pele e da terra entre os dedos lhe traziam aquele pensamento um tanto desconcertante do impossível.

Puxara os fios na noite anterior e resolveu acreditar, mesmo que apenas um pouco, naquela ideia um tanto extraordinária. Você nunca fora um cara cético ― ou pelo menos gostava de dizer que não.

Quando se aproximou do garoto e se sentou do seu lado na grama, ele abriu os dois olhos e virou-se na sua direção, sem dizer nada. Tinha olhos de um castanho tão escuro que não se saberia dizer onde terminava a pupila e começava a retina, e você, mesmo não querendo admitir, gostava daquilo.

Estendeu para ele o copo de água e esticou as pernas. O calor do sol beijava seus braços.

― Tem nome?

O garoto acenou negativamente, bebericando a água.

― Não conheço nenhuma flor que tenha nome.

― Bem, nomes próprios não, mas as flores têm nomes para sua espécie. Tipo rosa ou tulipa.

Ele sorriu com as pontas dos dentes aparecendo, uma espécie de sorriso torto que você achou engraçado, mas não sorriu de volta. Se perguntou por um breve instante se ainda era capaz de sorrir.

― Isso continua não sendo um nome. Se for assim seu nome é Humano e o meu é Flor Selvagem. ― os dedos compridos dele batucaram o copo de vidro ― Você tem nome?

Houve um aceno positivo.

― Não gosto de nomes. Acho que ficaremos melhor sem eles. E vamos ser só eu e você aqui, de todo modo. Não vai ser preciso.

O garoto assentiu sério e você só então notou como sua frase soou aos próprios ouvidos, convidando-o a ficar ali, realmente ficar. Você não sabia quem ele era, exceto que alegava ser uma flor e que você cada vez mais e mais estava acreditando naquilo.

― Humano?

Você lhe encarou, atordoado, e cruzou as pernas diante de si.

― Sim?

― Obrigado por cuidar de mim ― sorriu do jeito torto de antes ― desde o dia no pé de hortelã até agora. Obrigado.

No futuro você diria que foi naquele momento que passou a acreditar de verdade naquela circunstância impossível. Seu pai ficaria desapontado: não foram necessárias muitas perguntas para chegar até ali.

X

Passaram a seguir uma rotina desde então. De manhã, o garoto sentava-se à mesa e bebia água enquanto você tomava café, comia biscoitos ou torradas quentes com queijo e tentava preencher o silêncio com algumas palavras, mas o assunto logo morria e só recomeçava quando o garoto queria. Então você apanhava algum livro da estante e saía do chalé com ele para se sentarem naquele ponto do jardim onde o sol batia certeiro.

Você comentava como ele deveria parar com esse hábito ruim de enfiar os dedos profundamente na terra ― mais tarde, após o jantar, você o empurrava para o banheiro e fazia o possível para limpar unha por unha, mesmo que ele se esperneasse e tentasse impedir o seu êxito ― e ele respondia que aquilo o fazia se sentir melhor, então você se calava.

Em alguns trechos da tarde, quando ainda havia sol, você entrava no chalé novamente porque ficar lá fora vegetando lhe entediava, e sentava ao sofá para ver tevê. Era, no entanto, difícil achar algum canal que estivesse pegando naquele lugar, então no fim você acabava desligando a tevê e indo preparar algo para comer.

Acabava sempre voltando para o lado do garoto, sentando e tentando se ocupar, pois já não conseguia lembrar de como era quando ele não estava ali, nem do que costumava fazer para não cair num abismo de tédio sufocante.

Quando o sol caía, vocês entravam e se sentavam para jantar. Bem, você sentava para jantar. O garoto ou bebia água ou só o observava durante aquele processo, e para você aquilo nunca ficava normal.

Na hora do banho, costumava haver uma briga em que você sempre acabava ganhando, não sem uma resistência plena dele. O garoto se segurava no batente da porta e na ponta da banheira, mas quando você ligava o chuveiro, ele sempre ria, naquele som alegre e alto que já estava se habituando a escutar ― às vezes você o escutava rindo nos seus sonhos, e quando abria os olhos e o via sentado na cadeira ao lado da janela, olhando a lua, você parecia ouvir de novo, mesmo que não viesse dele, como se o riso já estivesse gravado nas paredes e sempre que ventava, o vento passava e levava um pedaço dele para seus ouvidos ― e se aquietava no banho enquanto você ia para o quarto e se sentava na cama, com o fantasma de um sorriso nos lábios.

E então você enfiava uma blusa e uma calça sua nele ― as mangas da camisa ficavam penduradas e era preciso dobrar as pernas da calça duas vezes para que ele não tropeçasse ― e se deitava na cama enquanto ele se sentava na cadeira ao pé da janela.

Você dormia, e quando amanhecia, ele ainda estava ali, na cadeira, sorrindo com segurança para você, como que para garantir que não iria fugir enquanto você dormisse.

X

― Você parece ter... crescido.

Você esticou as costas em frente a ele e o encarou nos olhos, ― profundos, selvagens e risonhos ― bufando ao notar que o garoto já pouco parecia um garoto, estando apenas um palmo mais baixo que você.

― Há menos de um mês e meio você batia no meu ombro. Como...

O garoto olhou para a flor, apoiada no batente da janela. Estava toda aberta àquele ponto, toda feita de carmesim com rastros de pólen amarelo, o caule apontando para cima como um dedo apontando para Deus.

― Em pouco tempo devo passar de você ― ele abriu um sorriso.

Você não notou na época, mas no futuro você iria lembrar daquela fala e daquele sorriso e iria se sentir triste. Mas ainda não era o futuro, e tudo o que o você de agora notaria seria a provocação naquela sentença. Os cabelos vermelhos dele estariam pingando água do banho no seu tapete e você só o empurraria na cama e esfregaria a toalha contra sua cabeça.

― Bem, ainda não passou, então cale a boca.

Então você sorriu. Não notou isso até o sorriso já estar ali, pendurado em seus dentes, nem parou para pensar em quantos outros sorrisos já havia soltado sem notar ao decorrer dos dias, mas naquele dia você sorriu e notou em silêncio. O garoto também não disse nada, só continuou sentado esperando que você terminasse de secar seu cabelo ― mas ele havia notado e você sabia disso.

Pendurou a toalha molhada na janela aberta e olhou de canto de olho enquanto o garoto se levantava e esticava os braços para trás.

― Bem, boa noite. A noite vai ser mais quente hoje.

Você olhou para ele e viu o quanto havia mudado. Os ombros estavam mais largos do que antes, a linha do maxilar mais óbvia ao olhar. Os olhos eram os mesmos, aquela confusão de tons escuros e abissais, redondos naquele rosto de tez bronzeada. Você nem notou enquanto erguia a mão para aquele cabelo liso na cor de vinho pela umidade e o puxou para baixo.

― Está grande. Devíamos cortar.

O garoto lhe encarava nos olhos e apenas assentiu, como se sentisse o quanto estavam próximos ou o quão pouco faltava para as coisas mudarem. Você via que ele já não era aquele poço de ingenuidade que fora uma vez, semanas antes, um garoto no início da adolescência com braços finos e ombros estreitos. Tocou no seu rosto carinhosamente antes de decidir que era melhor se afastar.

― Boa noite, garoto.

Já debaixo das cobertas, você virou-se para ele, em pé em frente à janela, e ficou o encarando por boa parte da noite, até ele enfim se sentar na cadeira e perceber seu olhar. Já devia ser madrugada, e você não conseguia pregar os olhos ― não havia risos reverberando nas paredes nem nada para lhe manter insone naquela noite, mas havia o garoto, andando pelo quarto como um frágil cão de guarda, esperando o sol nascer de novo.

Mais uma vez naquela primavera, você sentiu os fios. Eles se enrolavam em seus pulsos dessa vez, e você não conseguia enfiar seus dedos entre eles e puxá-los, então resolveu puxar com o braço todo ― nem que fosse uma última vez ― e deixar tudo acontecer do jeito que deveria.

― Garoto ― você disse com a voz rouca de sono ― Deite comigo.

X

Os cabelos dele cheiravam ao seu shampoo e a uma mistura de sais de banho diferentes, mas também tinham um outro cheiro cravado neles, do tipo que não sairia com qualquer lavagem ― era algo preso não fora do corpo, como sujeira, mas dentro, como parte dele em tudo o que era ―, era o cheiro de terra, folhas frescas e orvalho.

Você passou a mão por seus cabelos e seus dedos deslizaram com facilidade por entre os fios, como se passassem por um rastro de sangue. A mão deslizou dos cabelos por uma linha na costa e parou no ombro, segurando-o com certo tipo de firmeza.

― Sua pele está fria.

― Bem, eu não estou com frio. ― Você fingiria que não, mas sentiu um caos se instalando em seu estômago quando a respiração dele bateu forte na pele do seu pescoço, como uma friagem de verão.

Puxou a coberta para cima de ambos e permitiu que o garoto deitasse sobre seu braço, os cabelos espalhados por seu travesseiro e aqueles olhos lhe encarando no escuro parcial como duas avelãs.

― Por que isso hoje? ― perguntou, a voz num sussurro.

Deu de ombros, como se não tivesse importância.

― Não sei. Apenas senti que deveria... ― balançou a cabeça ― queria, na verdade.

Você sentiu quando os dedos dele se enroscaram na parte da frente da sua camisa, se encaixando nos espaços entre os botões. Eram frios contra a pele do seu peito, mas você os deixou lá, talvez por ser tolo demais ou por saber que era o que deveria ser feito ― jurou tê-los sentido ali a noite toda, até mesmo durante o sono, em que sonhava sonhos mornos.

― Boa noite, Humano.

Você passou seu braço pela cintura dele e o puxou um pouco mais para perto, apenas o suficiente para sentir a respiração dele no seu pescoço novamente.

― Boa noite, Flor Selvagem.

Pôde jurar que seu coração falhou algumas batidas antes que o permitisse dormir.

X

Você nunca se esqueceria da manhã seguinte, em que o sol estava alto lá fora e sua cama continuava preenchida, mesmo após dois anos dormindo sozinho e acordando cedo. Abriu os olhos e viu que ele lhe encarava ― que tinha lhe encarado a noite toda e boa parte da manhã ―, aqueles dois abismos em que não se conseguia ver o fundo, por mais que tentasse com tudo o que possuía.

E por Deus! Ele era uma flor, não um oceano, mas senti-lo contra sua pele ao acordar lhe dava a sensação de mil ondas, batendo contra seu peito, seu estômago e sua alma, afogando-o tão intensamente que você não conseguiria nadar à tona tão cedo ― primeiro porque não tinha ideia de que lado ficava a superfície, segundo porque simplesmente não queria deixar de afogar ―, então você levantou a mão e tocou o seu rosto com os dedos ― e naquele momento, não foi preciso fio invisível algum para tudo fazer sentido.

― Bom dia.

Ele sorriu com aquele desnível nos lábios, aquele sorriso torto que só ele parecia ser capaz de fazer, e você sorriu de volta.

X

Às vezes, quando o sol da tarde batia no seu rosto ― o ar cheirava à flores silvestres, grama e terra úmida e seus dedos estavam entrelaçados nos dele ― você percebia que o amava. O amava pelas coisas mais simples como as sardas do nariz ou o reflexo do sol nos seus cabelos, pelo modo como respirava, como fechava os dedos nos seus ou dava de ombros. E você o amava, simples assim, como se não pudesse ser diferente.

E às vezes, quando o pegava olhando para você do outro lado da mesa na hora do café, ou quando sentia os dedos dele nos seus cabelos nas tardes de leitura ao ar livre, você sabia que ele o amava também.

Então de noite você apagava as luzes ― até mesmo a da lanterna em cima da cômoda, que antes mesmo de você notar estava desligada e guardada dentro da gaveta ―, abraçava ele e se embrulhava dos pés à cabeça. E então distribuía pequenos beijos na sua testa, rosto e pescoço, descia os beijos pelos seus ombros e ria contra sua pele. E então você beijava os seus lábios ― de forma doce e tranquila, sem pressa, como se cantasse uma música delicada ― e beijava seu nariz, suas sardas e seu corpo todo. E então você dizia que o amava ― e era verdade ― e o abraçava mais uma vez.

E então, no escuro, com o rosto enterrado nos cabelos vermelhos dele, pele na pele, você o ouvia responder. E por Deus, nada parecia mais certo ― apenas você, ele, as roupas frias no chão e suor com cheiro de sexo pairando no ar.

X

Havia uma pequena nuvem vermelha sob seus pés. Você pisava nela apenas porque era muito macia e fofa entre seus dedos. Alguns fios flutuavam ao seu redor como poeira. O garoto lhe olhou por cima do ombro nu, parecendo preocupado com a quantidade de cabelo caindo, mas logo voltou a se virar para a janela e deixou que terminasse o serviço ― não havia como voltar atrás, de todo modo.

Você lembrou que ela costumava cortar o seu cabelo do mesmo jeito que você cortava o dele naquele momento. Sentava-se em uma cadeira em frente ao espelho do banheiro e logo os fios castanhos caíam, tais como caíam em vermelho ali. Você olhava para o espelho no fim e odiava o corte, mas não dizia nada e sorria para animá-la.

― Está ficando até aceitável. ― comentou, um pouco surpreso ― Jurava que ficaria torto e estranho, mas agora você parece... pouco selvagem. Quase um garoto decente.

O cabelo estava curto na nuca e com uma franja pequena, mas até que ele estava... bonito. O antigo cabelo quase chegava aos seus ombros e agora a maior parte dele estava no chão, no ápice de vermelhidão.

Você olhou para a flor sob o arco da janela e soube que ela não floresceria mais do que aquilo, estava no apogeu do seu porte, erguida para o alto e tão imponente quanto uma flor podia ser. E ele, bem, ele estava mais bonito do que nunca, os cabelos vermelhos como fogo, a pele brilhando dourada ao sol, junto àqueles olhos redondos e sem fundo, como um poço em direção à perdição ― no qual você caiu sem querer, sem controle, e então passou a afundar mais e mais, até desejar nunca ver a luz do dia novamente.

― É estranho, parece que o fantasma do cabelo ainda está aqui. ― ele balançou a cabeça, mas não houve movimento algum. ― Acho que vou tomar banho.

Você assentiu e disse que limparia aquilo tudo enquanto isso. O garoto-flor sorriu por cima do ombro e coçou a nuca, onde os fios cortados irritavam sua pele e a deixavam vermelha. Quando ele se foi, você ficou parado no quarto escutando o som do chuveiro sendo ligado do outro lado do corredor e apoiou a tesoura na cômoda. Aos seus pés, o tapete de sangue se estendia.

Você apanhou uma vassoura e começou aquele trabalho que não era desagradável de todo modo. Levou os cabelos até o canto da parede e abaixou-se para varrer embaixo da cama.

Algumas mechas compridas vieram de lá, brilhantes como ouro vermelho. Você as apanhou sem notar, porque eram os fios mais compridos dali do chão e, ironicamente, estavam sob sua cama. Aquilo lhe trouxe uma sensação boa e engraçada que não sentia desde o outono, então amarrou a mecha com uma liga e a levou até a estante.

Fechou os olhos, escolheu um livro com os dedos ― e não olhou, nem uma espiadinha sequer, mas sentiu que a capa era dura e que o livro era grosso ― e guardou o a mecha de cabelo numa página aleatória, como a folha de outono que era, planando no ar como um sonho fresco, até dentro do quarto e, coincidentemente, abaixo de onde dormia e sonhava.

(um sonho doce como geleia de morango, do tipo que se espera que dure para sempre, e que quando acaba sem querer deixa um rastro de saudades.)

X

Você se pega pensando que há algo errado ― tendo a certeza desconfortante de uma falha naquilo tudo ―, mas nada lhe vem em mente. Sabe, era tudo tão agradável e bom que não parecia haver modo de terminar mal. O garoto era tudo o que você precisava ali, principalmente em uma primavera, e sem nem pensar muito sobre tudo isso você sabe que esteve esperando por ele por muito tempo, só não tinha olhado atentamente.

Mas mesmo sabendo disso e tendo certeza da sua felicidade, havia aqueles fios ― agora frágeis ao toque, como teias de aranhas de verdade ― roçando suavemente na ponta do seu dedão, como que tentando lhe preparar mesmo que só um pouco para o que estava por vir.

Você ignorou os fios ― ou o que sobrava deles ― porque estava muito feliz para ter tempo para preocupações. Naquele dia você lê um exemplar surrado de contos do Edgar Allan Poe para ele, tomando cuidado de entoar a voz do modo certo, mas ele não parece prestar muita atenção. Ouve distante, os cabelos meio opacos se derramando na sua coxa e grama, os olhos turvos encarando o céu azul ― muito, muito azul ― logo acima.

Mas não há nada errado e não haveria por um longo tempo ― você espera, meio que rezando para ser verdade.

X

De repente você acorda num novo dia, e ele está ao seu lado como sempre ― nu, porque a primavera enfim se tornou quente, e seus cabelos grudam na nuca quando vocês dois se tornam um só na madrugada. ―, lhe olha nos olhos como sempre olha pela manhã, e você sorri, encaixando sua perna no meio das dele.

Ele, no entanto, não sorri de volta. Você o encara sem entender, mas ele nem precisa lhe explicar para a compreensão ― ou pelo menos uma parte dela, algo como uma sensação ― estapear seu rosto. Ali, mesmo sem saber como, você compreende um pouco ― não sabia de fato o que era, mas era algo pinicando em sua pele como o vento com pedrinhas batendo em seu rosto em uma corrida de moto sem capacete. E de repente você para de se afogar naquele oceano que tinha se perdido e é puxado para a realidade, mesmo não querendo ― mesmo desejando as águas salgadas em seus pulmões e ouvidos, levando-o à inconsciência.

Tudo o que você faz é puxá-lo para si e o abraçar forte, os braços em torno dos seus ombros, mas o garoto ― o homem ― não fala nada e sequer o abraça de volta. Ficam assim por alguns minutos, perdidos naquele momento, e você sabe que já passou do meio-dia e que a partir daquele instante tudo iria mudar ― e sabe também que nunca quis tanto que algo não acontecesse.

Você não precisa perguntar nada. Ele se senta na cama, o tronco desnudo se inclinando em direção à janela e o olhar se dirige até o vaso postado no beiral. Seu rosto é tristeza e pesar e você não sabe se tapa os ouvidos para não escutar ou se simplesmente começa a chorar.

― Vou partir em breve. ― ele se estica e apanha o vaso, inclinando-o na sua direção. ― As pétalas já começaram a cair. No fim da primavera já devo ter partido.

Há duas pétalas caídas na terra do vaso, tingidas de vinho e não de vermelho. As outras pétalas já não estão tão vermelhas também, e você levanta o olhar até o garoto e observa seus cabelos. Você não sabe como não notou ― ou se notou e decidiu ignorar ―, mas os cabelos antes de um rubro tão vivo, crepitando como fogo, agora se encontram opacos, como se alguma borracha houvesse deslizado de leve no que antes fora pintado de lápis vermelho.

Você ergueu a mão e a pôs no topo da sua cabeça, correndo os dedos entre os fios agora mais curtos, e decidiu que não iria ficar triste sobre isso. Ele não podia ir assim, e mesmo se fosse, ainda faltavam três semanas para o fim da primavera. Parecia ― deveria ― ser o suficiente para o que quer que fosse, para resolverem esse problema, se possível.

Claro, foi isso que você disse a si mesmo, tentando de forma absurda acreditar, mas falhando miseravelmente. Por dentro, lá no fundo do seu peito, o oceano começava a secar e a terra embaixo dele rachava e se quebrava sob seus pés. Você se inclinou para longe da cratera, mas sentiu que era tarde demais.

E de repente você não estava mais afogando, e sim caindo.

X

A pele dele pareceu perder o bronze do sol nos dias seguintes ― até mesmo as sardas de seu rosto estavam mais claras, com medo de se mostrarem ―, tornando-se pálida num tom pouco natural. Os cabelos escureceram para um tom de vermelho acastanhando, muito semelhante a licor de cereja, e você temeu que estivesse emagrecendo ou ficando mais fraco a cada dia.

Mas ele ainda era ele. Um pouco triste e cada vez mais pensativo, talvez, mas ainda ele; o rapaz que deitava sob o sol e partilhava de sua cama. Ele ainda sentava-se à mesa e não comia nada, sorrindo do outro lado com seu copo d’água, mesmo que houvesse uma sombra sob seus lábios que desconcertasse você.

Naquela tarde ele escolheu se sentar perto à plantação de hortelã, cruzando as pernas à frente do corpo e encarando aquele ponto de terra úmida em que ele surgiu pela primeira vez, mais de dois meses antes. Você arrancou e mascou algumas folhas de menta antes de falar algo, as pernas esticadas em frente ao corpo.

― Como isso funciona? Seu corpo, digo. ― ele lhe direcionou o olhar e sorriu de canto ― Como pode estar aqui e estar naquele vaso sob formas diferentes?

O garoto se inclinou para trás, as mãos em contato com a terra, parecendo pensar sobre o assunto.

― É um pouco complicado de explicar.

― Bem, tente, temos bastante tempo ― o sol era morno e pálido acima de vocês.

― É como se eu não estivesse de fato aqui, sabe? Apenas projetei meu espírito para fora, e poderia ter escolhido a forma de qualquer ser vivo para fazer isso. Pensei em uma raposa a princípio, gosto de raposas, mas não sabia como falar com você desse modo. ― Ele olhou por cima do ombro, para trás de vocês, em direção à trilha de terra cercada de árvores ― Qualquer árvore ou planta consciente pode fazer isso, até mesmo rios e represas antigas, não que você consiga ver, é claro.

Seus olhos pareciam seguir alguma coisa atrás dali, e você se virou, curioso, mas não havia nada. Apenas o pio distante de um pássaro e o farfalhar de folhas ao vento.

― É complicado ― tentou se consertar, tornando a olhar para você ― As árvores costumam assumir formas móveis para se reunir com espíritos antigos, de animais na maior parte das vezes. Costumo observá-los pela janela durante a noite. Eles ficam sentados e aguardando a hora de serem chamados. Existem mais coisas com alma na terra do que vocês humanos acham.

Você não era um cara cético ― lembrou-se, principalmente depois do que vinha vivendo nos últimos meses ―, mas precisou piscar algumas vezes antes de assentir, tentando aceitar toda aquela informação. O rosto do garoto parecia gelado, e não havia cor rosa alguma nas bochechas... parecia pálido e febril, mas tão sério que você não ousou comentar sobre sua saúde.

― Você nunca saiu daqui para essas reuniões ― observou, inclinando a cabeça em sua direção com um riso gentil. Ele lhe retornou com um sorriso triste.

― As árvores duram séculos e séculos, algumas até milênios. Essas reuniões são necessárias para elas e outros espíritos que precisam viver entre si. Mas eu ― ele se virou para frente, abraçando os joelhos com os olhos presos às folhas de hortelã ―, bem, eu sou uma flor que mal consegue durar uma primavera inteira. Não há espaço para mim em um ciclo tão longo.

Havia um traço escuro sob seus olhos e você notou o quão cansado ele parecia estar, um tanto mais velho também, com pequenas rugas se formando no canto da boca. Você se aproximou dele e passou o braço sobre seus ombros, aquecendo sua pele fria.

― Isso não cansa? Ficar nessa forma. ― ele assentiu, tocando a mão em seu ombro com os dedos livres. ― Então porque não volta à forma original? Talvez seja por isso que as pétalas estejam caindo tão rapidamente, você está esgotado.

O garoto olhou para você e sorriu de verdade ― lábios desnivelados, ponta dos dentes aparecendo. Um sorriso torto tão quente quanto uma tarde de verão ―, do jeito que você sorria quando as coisas faziam sentido, e tocou seu rosto com a ponta dos dedos compridos.

― Não vale a pena, sabe. Continuo nessa forma pelo mesmo motivo que vim pela primeira vez, no começo da primavera. Vim porque queria falar com você e ver você com olhos de verdade. Queria tocar no seu braço e seguir você nas suas tarefas do dia, porque você cuidou de mim quando eu era um broto sem futuro, ali, no canto de terra molhado. ― seus dedos se enterraram no lugar onde ele nascera, quase como se sentisse aquela força poderosa remanescente de suas origens. ― Ainda estou aqui, Humano, porque você me cativou tanto que não faria sentido passar meus últimos dias naquela forma, mesmo que com isso eu negue minha própria natureza e morra ainda mais rápido, porque simplesmente não vai fazer sentido eu voltar para aquele vaso, sentir os dias se passarem, e não poder nem ver nem tocar você, apenas sentir o toque dos seus dedos em minhas pétalas.

“Eu disse uma vez, sentado na sua janela naquele amanhecer, que eu era feito de seiva, pólen e fibra, e é o que eu sou, Humano, mas não é o que eu gostaria de ser. Queria ser carne, ossos e sangue, e talvez seja isso o que esteja me consumindo tão rapidamente. Esse desejo de ser humano e de permanecer.

Você olhou para o rosto dele e viu que ele chorava. Não lágrimas salgadas, você notou ao limpá-las e segurar seu rosto com suas mãos, mas gotas de orvalho frio, escorrendo daqueles poços fundos e abissais que eram seus olhos.

― Você não precisa de nada disso, Flor Selvagem. Não é necessário ter carne, ossos ou sangue para segurar minha mão ou me abraçar ― você sorriu, apertando seus dedos nos dele ― A única coisa que precisa é ser você, e nenhum outro.

O garoto esfregou as palmas das mãos no rosto, limpando as lágrimas.

― Você parecia tão triste ao me regar pelas manhãs ― confidenciou ―  E eu já o amava tanto, que mesmo não tendo o poder de uma árvore, me vi sentado em sua janela, sentindo o calor do sol devorando meu corpo pela manhã. E quando você me tirou dali, por melhor que fosse o sol, eu o amei muito, muito mais.

Algo dentro do seu peito quebrou em mil pedacinhos e de modo irreversível, como um copo de vidro que se torna pó ao cair. Você era aquilo, era areia beijando pés na beira da praia, ondas quebrando-se ao ar ― você não era a onda, mas era arrastado por ela.

E você o amava tanto ― e o disse tantas outras vezes ―, mas naquele dia apenas o abraçou forte. Não entendia nada do que acontecia. Não sabia sobre árvores ou espíritos, tampouco sobre a necessidade de voltar à forma de flor, nem da dor que era durar uma única primavera, mas sabia que o amava e que aquilo não duraria para sempre. Isso machucava fundo no peito de ambos, tão fundo ― como os olhos dele ― que isso bastava.

(bastava)

X

Ele se foi no último dia de primavera.

Você não chorou.

X

Na noite de sua ida, ele lhe alertou, sentado na cama com os olhos fixos na flor iluminada pelo luar. Sobravam duas pétalas escuras, penduradas tão levemente no caule torto que qualquer sopro de vento poderia desfazê-la. Você temia isso e até mesmo tentou tirar a flor da janela, mas ele disse que não ― queria estar banhado de luar quando partisse, olhando para o mundo lá fora e permitindo que todos os seres que habitavam seu jardim o vissem, e vissem como ele escolheu viver, por mais errado que fosse ― como ele escolheu viver ao lado de um humano até seu último suspiro.

Você embrulhou-se com ele bem cedo na cama, com seu melhor cobertor. Não havia luz alguma no ambiente, do mesmo jeito que era todas as noites, e o corpo dele se encaixava no seu como se fosse feito para estar ali. Sua garganta estava seca. Essa é minha última noite, ele falou, então me abrace.

Você abraçou com força, mesmo que possuísse medo de o quebrar, porque sabia que se abraçasse mais fraco correria o risco de escorregar daquele abraço e cair ― você queria afogar. Mesmo que o oceano agora fosse uma poça sobre o asfalto. ―, então o pressionou contra seu peito, sentindo seu próprio coração nas costas dele.

― Recita aquele poema pra mim, aquele que eu gosto. ― ele pediu em um sussurro ― Aquele da rosa.

Você se apoiou nos cotovelos e se ergueu para conseguir vê-lo melhor, esforçando-se para enxergá-lo naquela escuridão. Sabia que ele estava lindo ali, os cabelos agora escuros se enredando no tecido do travesseiro, o olhar vago e terno fixo na flor sobre o beiral.

Afastou um fio de cabelo castanho avermelhando para longe do ouvido dele antes de começar. Citou palavra por palavra, com um ritmo lento, namorando cada som e cada entonação que saía de sua garganta. Ergueu a voz e enterrou dentro de si a pronúncia daquelas palavras, e então aproximou os lábios para perto do ouvido dele, que tão pacientemente esperava pela estrofe preferida.

Você inclinou-se para sussurrá-la ― e naquele momento ela fez mais sentido do que nunca. Era o seu poema, o poema de vocês, e você entendeu porque ele o amava tanto e constantemente pedia para que o relesse. As palavras estalaram em sua língua quando a poesia chegou ao fim.

Abriu os olhos, o coração batucando no peito. Você olhou para o garoto, a mão bem apertada à sua, e viu que dormia, cochilando febrilmente seu último sonho de primavera, com aquela respiração desregular de um menino com pressa.

Na janela, a última pétala caiu.

X

Você sabe que não foi um sonho.

O corpo dele sumiu naquela noite sem que você tivesse a chance de enterrá-lo ― você sentiu, na hora em que a última pétala se soltou, os dedos dele se dissolvendo entre os seus em uma chuva de pó prateado ―, mas a flor continuou lá, apenas o caule seco curvado sobre o vaso de barro, tão nua quanto ele estava no dia em que o conheceu.

Você enterrou o vaso no jardim de trás, por mais estranho que possa parecer para alguém de fora, e montou uma aspirante à cripta feita de gesso que você mesmo entalhou em casa, como se fosse uma lápide profissional:

Aqui jaz uma flor selvagem

Nascida no começo da primavera

Com os olhos mais profundos que todas as rosas.

Não era um texto mais comum para uma lápide, mas você não se importou. Seu amor por ele e os meses que passaram juntos não eram comuns.

O amor deles era insano. O garoto era uma flor falecida, mas mesmo agora, você ainda sente aquelas ondas arremessando-o contra as rochas, tentando, mesmo sem forças, arrastá-lo de volta ao oceano.

X

Você sentiu os fios invisíveis duas vezes enquanto envelhecia.

A primeira vez aconteceu em um passeio pela cidade mais próxima, nove anos depois da morte dele. O céu tinha uma cor de chumbo tempestuoso e era verão. Não demorou muito a chover pesadamente ― do tipo que alaga as ruas em trinta segundos e o obriga a correr para um abrigo mais próximo. Você correu, o casaco encharcado, e parou sob a tenda mais próxima para secar o que dava do cabelo e da roupa.

A tenda pertencia a uma floricultura.

Você riu com uma ironia ácida antes de roçar a palma da mão esquerda no fio. Foi sem querer, mas você não ignoraria aquele toque ― nunca, nunca mais ignoraria os fios.

Saiu da floricultura com três flores selvagens novas e as plantou sob a sombra de uma árvore enorme que dava pra o seu jardim ― você notaria mais tarde, após se inclinar sobre a janela do quarto, que a visão daquela árvore era clara e perfeita dali, e você lembrou do garoto, sentado na cadeira com os olhos fixos para o lado de fora.

(no dia seguinte você se aproximou da árvore e a encarou cheio de desafio, mas não houve resposta alguma)

X

Quando os anos se tornaram décadas, as lembranças sobre a flor eram nebulosas. Às vezes, mesmo sem querer ― mesmo que por apenas cinco segundos ― você se perguntava se tinha sido real.

Não havia nada que provasse a presença daquele garoto na casa, com exceção do cheiro de hortelã e orvalho que impregnou no travesseiro e cobertor, além de algumas roupas. Nada concreto, nada físico.

Mas você sabia que havia sido real. Poderia estar sendo um velho tolo ― e sim, você estava velho ―, mas acreditava plenamente naquilo. Acreditava porque às vezes, quando deitava sozinho na cama e se virava para a parede, escutava seu riso ― e aquilo lhe assustava certas noites, o mantendo acordado boa parte da madrugada em que o vento batia sem pudor na sua janela ―, acreditava também porque quando tomava café da manhã, sozinho na cozinha com suas torradas e ovos, podia sentir a presença dele na cadeira vazia do outro lado da mesa.

E é claro que isso não o deixava mais são. Mas acreditava principalmente porque sentia saudades, todos os dias, e não achava que era possível sentir falta do que nunca existiu.

Hoje é seu aniversário de sessenta e sete anos, e você acorda cedo porque os sente. Pela última vez em sua vida, você sente os fios se enroscando em seus dedos, pulsos e braços, e eles puxam você para fora da cama, respeitando a sua idade o máximo que podem. Você anda pela cozinha, remexe os armários e prepara seu bolo. Enquanto o bolo assa, você volta para o quarto.

E então você está parado em frente à sua estante antiga. É novembro agora e o outono está alto lá fora, com certo cheiro de inverno se aproximando. À sua frente a estante está uma bagunça, com livros empilhados uns sobre os outros e a madeira dos nichos entortando pelo peso.

Os fios lhe dão um puxão de alerta e então se desmancham de você, soltando-se em um laço frágil. Agora você está por conta própria. E parado ali, na mesma estante que você vê e remexe todo dia, não sabe o que deveria fazer ― o que querem que faça.

O bolo de miritilo já está cheirando na cozinha ― o cheiro doce de um aniversário solitário ― e você decide checar a estante uma outra hora. No entanto, quando está para dar um passo para fora do quarto, você para. Vira-se com cuidado até a prateleira do meio e se aproxima. Um livro de capa dura verde chamou sua atenção, então você o toma nas mãos e assopra a poeira da capa para longe.

O título se revela. “Mil poemas e poesias”, uma coletânea que você sabe que nunca abriu e que sequer notou na estante por todo esse tempo. Você esfrega a capa com o dedo e o abre, meramente curioso, numa página já marcada, no meio do livro.

Página 107, um punhado de cabelos vermelhos.

Você pisca, e então olha para sua cama ― é outono e você tem certeza que vai encontrar folhas lá embaixo ― e volta-se para os cabelos vermelhos, vivos e brilhantes contra a página amarelada, como se houvessem sido cortados no mesmo dia. De repente você se vê quarenta anos antes, com os cabelos vermelhos voando ao redor como poeira e se acumulando sob seus pés. O garoto está no banheiro e você precisa terminar de limpar tudo antes que ele volte.

Você sorri e passa os dedos agora enrugados e velhos pelos fios vermelhos, no ápice da cor. Olha então além dele, para o poema que ele marca, e solta um suspiro grave.

É um poema de rosas ― de pétalas, de olhos e de mãos ―, e você chora pela primeira vez desde que ele morreu ― e você sabe que as lágrimas não são orvalho, e sim, sal, ressaca e mar.

Sua flor selvagem, nascida no primeiro dia de primavera, com abismos nos olhos e vermelho nos cabelos...

(e aquele suave cheiro de alvorada e hortelã)

X

“Tu sempre abres pétala por pétala do meu ser

Como a primavera quando toca cuidadosa

e misteriosamente sua primeira rosa”

― e.e cummings

FIM


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Notas finais do capítulo

Foram quase 10 mil palavras que eu adorei escrever e me diverti desenvolvendo. Pensei que seria uma vasilona nesse Delipa, porque já era dia 16 e eu não tinha escrito nada, mas de repente comecei a escrever e terminei tudo em dois dias.

Espero que tenham gostado de ler do jeito que gostei de escrever. Podem criticar, falar o que desejarem, contanto que não seja ofensivo, que eu vou adorar ler e responder ♥
Até logo