Histórias de Horror e Suspense escrita por V M Gonsalez


Capítulo 2
Feliz Aniversário




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Acordou.

Ainda havia saliva seca em sua boca e o cheiro desgraçado de cigarros empestiava o ar mofoso do quarto. O cigarro aceso não havia causado um incêndio essa noite. De novo.

Se levantou e foi ao banheiro. A água mal escorria da torneira enferrujada, que pingava durante a noite em gotas agonizantes. Ah, o tempo que se esvai como a água de uma maldita torneira... Quando tudo havia se tornado tão podre e cinzento se perguntava, quando o brilho da vida havia sido apunhalado pela desgraça e seu sangue escorrera amargo pela boca do desesperado? Não sabia e não importava se sabia, dava no mesmo.

Lavou o rosto e foi comer uma parca refeição, estava na hora de vender sua alma.

O ambiente fabril era sombrio e quente. Aqueles que acreditavam no inferno podiam ter uma amostra grátis de seu destino nas escaldantes linhas de montagem. A fumaça, ah, a divina fumaça, o ópio dos deuses caídos, que gozam de júbilo do sufoco humano. Ah, fumaça que alimenta as feras de metal que trituram carne, aço e alma em suas presas duras de progresso. A branca alma ébria dos desafortunados.

Doze horas.

Em pé, breve almoço, em pé. Suas pernas doíam, maldita artrite, mas permanecia de pé, duro como aço, morto como a natureza na era do concreto. Martelava uma, duas, tantas vezes, não pensava, martelava suas dores para dentro das peças de metal sem brilho ou forma. Há uma beleza singular nas crias da indústria: são peças vazias que podem ser preenchidas com pedaços amargos das almas desgraçadas que as fizeram. A beleza é uma questão de ponto de vista.

Oito e meia, hora de voltar.

O grande relógio ressoava seu sino. Os demônios no inferno chamavam mais uma vez seus lacaios para outra noite de pesadelos mais doces que a vida que viviam. Olhou o relógio como tantas vezes, velho e imponente, a única coisa que se movia para frente naquela maldição de cidade.

Era seu aniversário.

Ninguém se lembrara disso. Ninguém. Olhando o relógio lembrava-se. Havia sido construído no dia de seu nascimento. E agora estavam velhos e acabados. E sozinhos na eternidade vaporosa.

Casa escura e fria. Sempre escura e fria.

Foi direto ao banheiro, se lavou e vestiu sua melhor roupa, um blazer sujo, um suéter encardido e a gravata de um morto. Se olhou no espelho, estava grisalho e enrugado, sentia a necessidade de morrer. Mas também sentia fome, sede e solidão, o que era mais um sentimento vazio num livro de poesias?

Teria sua melhor janta essa noite. Comeria a ração de dois dias. Passaria fome depois, mas a vida é uma inconsequência da natureza, afinal... que ironia, a mãe que dá a luz à própria assassina. Foi até a mesa da cozinha.

Havia um bolo sobre a mesa.

Assustou-se. Não comprara bolo algum. Seus pais e entes estavam mortos, não havia amantes, não havia amigos. Havia um bolo. Era róseo como as entranhas jovens e frescas. Se olhar bem, pareciam mesmo intestinos moídos e batidos numa forma cilíndrica e enfeitada. Sorriu com o pensamento e se aproximou. Tinha um cheiro doce, lembrava de sua infância a tanto tempo atrás, memórias há muito perdidas, mas que lhe doíam no peito como facada recente.

Sentou-se, agarrou garfo e faca.

Sentiu algo mover-se atrás de si, mas ignorou, devia ser apenas seu passado incômodo o observando. Olhou para o bolo, que agora realmente parecia viscoso como vísceras de açúcar.

Sentiu um toque frio sobre os ombros.

Foi rápido, tão rápido quanto a felicidade, depois uma dor enlouquecida das consequências. Sentia a região tocada necrosar lentamente, a morte chegar célula a célula. Era esse o sentimento de apodrecer enquanto se está vivo? Sensação de todo aquele que já amou na vida. Paralisou. Não conseguia se mover, mesmo que tentasse. Sentiu a presença se mover atrás de si.

Era uma forma vestida de preto, inteiramente, encapuzada e usando uma máscara medicinal em forma de bico de corvo. A máscara era a única coisa branca, parecia flutuar na imensidão escura, e talvez o estivesse.

Feliz aniversário, disse a forma. Sua voz era abafada pela máscara, mas ela não falava pela boca. Ela falava. As duas orbes vazias - olhos? - fitavam incólumes. A noite caia a passos cada vez mais lentos lá fora.

Estava imóvel, observava a forma com um medo indiferença daqueles que sonham com demônios sorridentes. Ele sabia o que era, que momento era aquele. Sabia que as batidas do relógio eram sombrias lá longe em sua inconsciência. Observou novamente o bolo, parecia tão doce. Desejava-o, mas não conseguia mover seus braços, estavam congelados, presos como garras aos talheres. Sentia a dor necrosa descendo por seu corpo, um beijo sensual de dor. Infestava suas veias como um frio escaldante que abria a força sua passagem.

Espero que seja tão doce quanto sempre sonhou, pensou a forma, em voz alta, talvez não em voz alta. O ambiente parecia com ela, ao mesmo tempo que ela parecia com o ambiente, uma máscara branca flutuava no ar, fitando, vazia, o evento. O bolo se mexia lentamente, pulsava e guinchava. Protuberâncias estranhas brotavam de sua superfície, nojentas e assustadoras até que, com um pequeno estalo visceral, irromperam do doce formas escuras e rastejantes, insetos agourentos, rastejando sobre as entranhas açucaradas espalhadas sobre a mesa.

Infestação. Infestação de sombras e veneno. A peste que se arrasta sobre os sonhos tumultuosos da vida, quebrando e rasgando seu frágil tecido onírico. Bestas tão pequenas quanto o significado de cada vida são esses insetos de sombras. Rastejavam sobre seu corpo e o mordiam, deliciavam-se com sua carne já sem sensualidade. A carne fria daqueles que morreram por dentro. Cada gota de sangue era como um júbilo para o frenesi pestilento daquelas bestas, a raiva que se alimenta da vida. E lentamente morria, o quarto lentamente se encobria, as feras guinchavam e explodiam gosmentas de sangue e muco, a máscara voava e a noite caia lenta lenta e lenta.

Então o silêncio, o silêncio e o silêncio.

No dia seguinte, nada. Nas semanas seguintes, o cheiro podre de um corpo infartado atraiu policiais indiferentes que removeram o empecilho humano caído sobre o bolo.


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